Meu amigo inglês: Sobre fragilidades e degeneração – Por Elcio Lima

30/10/2023

Montagem teatral: "Meu Amigo Inglês"

Montagem: Cia 2 de Teatro 

Por Elcio Lima[1]

O teatro na capital paraense parece estar vivendo uma fase de quebra de paradigmas e de desconstrução total de seus elementos, seja lá o que isso queira significar. Há um profundo anseio e muito a dizer ou fazer sentir, sem, contudo, reiteradamente se alcançar êxito em termos mais amplos que não o da própria bolha "experimental" que, por sua vez, corre atrás do próprio rabo há algum tempo e segue fazendo escola. Amiúde, tal alcance sequer ultrapassa os limites da subjetividade de seus idealizadores. Muitos trabalhos mostram atuantes ruminando devaneios, palavras de ordem, dentes à mostra e dedo em riste num discurso maçante sob a égide de poética, mas que no muito flertam com a pura canastrice ou mesmo a panfletagem barata calcada em literaturas que integram a coqueluche do momento. O resultado? Uma arte que parece mirar na lua, mas que no muito alcança a lâmpada de um poste. Os aplausos chegam a fazer eco em muitas cabeças. Mas o importante é sorrir, abstrair e aplaudir. Viva!

Um espetáculo de teatro pode muito dizer não pelo tempo de cena ou pela quantidade de falas, mas sim pelo modo como se aborda determinado tema. Ainda que se trate de uma trama sem grandes reviravoltas, estritamente cotidiana, banal até, por que não? O combustível de uma dramaturgia está na sua abordagem, nas escolhas dos caminhos a serem percorridos pelo atuante, mas também nas pontes e trilhas que indicará às testemunhas, e isto a Cia 2 de Teatro vem fazendo muito bem, como se pode observar em Meu Amigo Inglês.

Escrito por Mário Zumba e sob a direção de Marton Maués, em Meu Amigo Inglês somos apresentados ao palhaço Teodoro (Mario Zumba) e sua companheira na vida e na arte, Madalena (Lu Maués). Ao som da saudosa e dramática voz de Nelson Gonçalves, Madalena surge da penumbra e observa o espaço enquanto a música reverbera pelo recinto emoldurando a personagem em melancólica atmosfera até que a luz mude e haja um sutil deslocamento no tempo. Teodoro aparece esbanjando alegria até desmontar sua animação revelando ter realizado seu último show no picadeiro. O que se segue é um diálogo afetuoso, maduro, cheio de cumplicidade, companheirismo e emoção. Então vem a complicação: Teodoro luta contra o Mal de Parkinson.

Anterior a LAPSUS, onde uma personagem lida com o Alzheimer, a questão da pessoa idosa em relação ao mundo em que se insere (ou não) vem sendo uma constante aos olhos de Mario Zumba. A pessoa idosa que ama, que chora, que mente, que tem desejos, que grita, abraça, sente medo, se arrepende, se excita, se irrita... Em nada diferindo das demais idades senão nas poucas oportunidades que lhe são relegadas quase que a condição de cota ante ao sistema da máquina social. Zumba expõe tais sentimentos e sensações adormecidas no imaginário de gerações mais novas ou mesmo de pessoas menos afeitas à prática da alteridade de modo que a doença degenerativa, que parece sempre ser a grande vilã da trama, acaba por se revelar alegoria de práticas outras cujo conluio, consciente ou não, espraia seus tentáculos sobre muitas culturas, o que, muito pior do que a doença individual, acaba por se apresentar a maior das desgraças, cujos movimentos sorrateiros fincam suas raízes no dia a dia passando desapercebida, cruzando até mesmo nossas relações mais íntimas .

Em quase uma hora de cena, o artista multívago despe-se, literal e figurativamente entregando-se aos cuidados da companheira sem descambar as desventuras de sua vida sobre o público, muito menos deixar-se cair em uma espiral de pieguices, mas de ricas metáforas onde até mesmo a presença do "amigo inglês" e o modo como é referido por Teobaldo, irrompe como uma punhalada quando Madalena revela o significado por trás do resignado termo. Aliás, Zumba trata de assuntos delicados – para não usar o saturado termo "gatilho" – sem cair no clichê da autopiedade. Elenco e direção desenvolvem em tão pouco tempo uma complexidade que parece ter se desenrolado em três horas, mas que quando você percebe já acabou. Diz tanto em tão pouco tempo e deixa reverberar uma saudosa memória ao retomar a música do início: "Volta, fica comigo só mais uma noite, quero viver junto a ti, volta, meu amor..."[2].

No que tange à visualidade, as escolhas, práticas em sua simplicidade, sob olhar cuidadoso da direção de Marton Maués, nada ali está para enfeitar, tudo tem função e significado, das cores às texturas. Há dois ambientes cenográficos, mutáveis, indicados, tanto pelo texto quanto pelo corpo que se move no diminuto espaço da Casa dos Palhaços: um trailer e o picadeiro.

Sou dos que adora uma opulente cenografia, mas também defendo a máxima de que, se o elenco acredita no que sua personagem vê e vive, o expectador também há de crer e verá em detalhes o quão aquele trailer é apertado ou como o picadeiro está rodeado por tanta gente. Os olhos da imaginação infantil são acionados nestas horas.

E assim, sabendo usufruir de tão pouco em termos materiais, valorizando e extraindo o melhor de uma boa ideia, elenco enxuto e uma visualidade simples, a Cia 2 de Teatro vem entregando ótimos espetáculos que não se ancoram na espetacularidade barata ou na desconstrução gratuita de algumas estruturas, que a mim soa mais como uma espécie de degeneração (e aqui cabe perfeitamente esta palavra) sem rumo, sem porquê, sem apropriação ou compromisso com nada senão a risível exaltação de si. Apenas tropeços em palavras, gritos e desejo de aplausos, aplausos, aplausos... Meu Amigo Inglês não é uma obra prima, mas uma obra com alma, bem executada e cuja inteligibilidade cria um elo com seu público. Um teatro maduro e tocante que vale muito ser prestigiado.

30 de outubro de 2023


[1] Elcio Lima é ator, diretor, escritor, dramaturgo e figurinista. Aluno do curso técnico em Figurino cênico e graduando de Licenciatura em Teatro. Colabora com o projeto de pesquisa O Clown Nosso de Cada Dia, e integra o projeto de extensão Tribuna do Cretino.

[2] Trecho da canção "Tortura de amor", de autoria de Waldick Soriano.

Ficha técnica

Meu Amigo Inglês

Realização:

Cia 2 de teatro

Elenco:

Mário Zumba e Lu Maués

Direção:

Marton Maués

Dramaturgia:

Mário Zumba

Visualisalidade:

Marton Maués

Iluminação:

Marcelo Villela

Arte Gráfica:

Aj Takashi

Bilheteria:

Rosana Coral

Apoio:

Alessandra Nogueira

Casa dos Palhaços