O VOO DA MATINTA: herança afetiva e memórias-cipós no fio do Tempo – Por Hellen Katiuscia de Sá

10/03/2024

Montagem: Matinta dos Botões

Ato Performativo de Aníbal Pacha 

Hellen Katiuscia de Sá

Hoje encontrei uma Matinta em São Paulo. Ela voou tão alto..., atravessou as matas amazônicas, encontrou-se com os arranha-céus da Av. Paulista e pousou onde eu pude vê-la! Isso me mostrou, que nossas lendas, nossa ancestralidade, nossa cultura é grandiosa e rica de significados, ela está onde quer que estejamos. Ela nos abraça e nos compreende.

Em qualquer lugar do mundo onde houver alguém das matas de Belém do Pará ou da região Norte do País, existirá a Encantaria...

Era um domingo, final de fevereiro de 2024. Nas ruas ainda havia resquícios de Carnaval: pessoas com leves adereços de folia, algumas passavam fantasiadas de fato como pede a ocasião, outras apenas curtiam a leveza e embriaguez que o Carnaval solta na atmosfera, feito aquele pozinho do sono que Hipnos sopra aos olhos dos sonâmbulos o qual deixa tudo mais solto e feliz.

Foi na avenida-cartão postal da cidade... lá estava ela caminhando em meio ao povo apressado e intrigantemente desorientado do que viam: uma Matinta! A maioria (senão todos) nem sabiam o que era aquela figura fantasmagórica afrontando o dia ensolarado de último domingo do carnaval paulistano.

Sua face pálida, sua manta bordada com escritas de branco, seus cabelos longos de cipós emaranhados jamais passavam desapercebidos junto aos transeuntes. Alguns sorriam timidamente surpresos com o que viam. Outros a evitavam. E muitos se assustavam! Porém, havia quem pegasse algo do chão. Era um botão... havia junto um benzimento (ou uma maldição?), eles ficavam intrigados! Porém, o primeiro contato já havia sido estabelecido e a Matinta seguia seu rumo, expandia-se como ramos, folhagens e copas das matas amazônicas alcançando a Terra da Garoa.

Essa foi uma performance do meu professor, colega de ofício e amigo, Prof. Msc. Aníbal José Pacha dentro de seu processo de doutoramento pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Pará. Aníbal é ator bonequeiro, integrante do grupo "In Bust: teatro com Bonecos", é professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA - ETDUFPA, e também artista-pesquisador do espaço cultural colaborativo "Casarão do Boneco" que existe há 20 anos na cidade de Belém do Pará.

A máscara cênica que o ator-pesquisador Aníbal Pacha usa para compor a "Matinta dos Botões", (nome de sua performance), é inspirada no relato das memorias afetivas de Júnior Capela (morador do município de Cametá/PA). São lembranças e relatos da infância de Capela acerca deste ser Encantado da Amazônia. Mas vale lembrar que a Matinta Pêrera é um recorte da história do folclore nortista que narra uma senhorinha, aparentemente inofensiva, assoviando vez por outra, caminhando próximo às cidades ribeirinhas pedindo fumo ou qualquer coisa que a satisfaça e lhe agrade de imediato para ela ir embora dali. A pressa de vê-la longe reside no fato de escapar de alguma praga rogada por ela. Reza a lenda...

Porém, o relato da Matinta se alarga às necessidades de várias famílias. A minha história de Matinta, a que minha avó me contava quando eu era criança, era a versão que dizia que a Matinta aparecia próxima aos vilarejos ribeirinhos sempre à partir das 18h. Daí se ela encontrasse alguma criança fora de casa longe dos pais ou responsáveis, a Matinta vinha e a tomava pelos braços, levando-a para sempre para morar dentro de uma árvore. Eu tinha medo, contudo, eu também queria conhecer como era esse "Outro Mundo" onde vivia a Matinta e os outros seres encantados. Esta e demais histórias sobre as lendas e folclore ribeirinhos da região Norte do Brasil, perpassam minha memória afetiva, assim como acontece com toda pessoa que teve contato com essa cultura.

O que percebemos com o exemplo desta história da Matinta é a existência de um relato raiz, que se ramifica em vários braços, fazendo com que a narrativa ganhe novos elementos que se misturam ao cotidiano das pessoas desta região. Traço característico da cultura nortista, mergulhada de influencias indígenas, onde o repasse do conhecimento acontece de forma oral.

Desse modo, a memória afetiva se torna elemento vivo e pulsante de algo que vai se perpetuando de geração em geração, fazendo sentido à ideia de legado ou herança de família, pois a experiência vivida por um núcleo familiar (ou regional) sobre uma cultura mutável, faz com que a mesma se torne algo imortal como aponta Bauman: 

Houve uma época (das fortunas de família passadas de geração em geração, segundo a árvore genealógica, e da posição social hereditária) em que os filhos eram pontes entre a mortalidade e a imortalidade, entre uma vida individual abominavelmente curta e a infinita (esperava-se) duração da família". (pag. 43, 2004)

Sob esse sol esclarecedor, é interessante perceber a perpetuação, repasse e materialização da Matinta acontecendo, neste caso, através da utilização de outro recurso: a performance cênica.

Quando o ator-pesquisador se propõe a narrar a história da Matinta Pêrera, levando-a para outras regiões e cidades fora de onde é sua origem, utilizando apenas uma máscara e uma vestimenta, vemos então, a voz ancestral transfigurada nos gestos e intensões do ator em cena, que escolhe o que contar. Vemos novamente acontecer o que nossos antepassados faziam conosco ao escolher o que narrar dentro desse universo. A desconstrução e readequação de uma linguagem para outra, ocorre. É como diz Garcia Marquez: 

É preciso aprender a jogar fora. A gente conhece um bom escritor não tanto pelo que ele publica, mas pelo que ele joga no lixo. Os outros não ficam sabendo, mas o escritor sim: ele sabe o que joga fora, o que vai deixando de lado e o que vai aproveitando." (pag. 11, 1997).

Quando o artista Aníbal Pacha intercala as memórias de infância de Júnior Capela aos atos narrativos cênicos da sua performance, ele escreve a história de sua Matinta cênica, dá outro sentido para as coisas que escolheu pôr como escrita visual: um botão no chão, não é mais apenas um botão... uma pena de falcão pode ser da asa da Matinta, ou quem sabe um canal de invocação de benzimento... tudo é acolhido e ressignificado pelo espectador conforme sua própria compreensão sobre aqueles objetos, pois: 

(...) as coisas fazem as pessoas tanto quanto as pessoas fazem as coisas. Mas isso soa como eloquente frase de efeito ou como proposta teórica abstrata, a menos que mostremos com mais clareza como as coisas de fato fazem as pessoas. (...) Na maioria dos casos, isso não acontece pela educação formal, mas porque os hábitos e disposições gerais da sociedade lhes são inculcados pelo modo como interagem em suas práticas cotidianas com a ordem já prefigurada nos objetos que encontram em torno de si" (MILLER, pag. 200, 2013).

Aníbal desconstrói esse cotidiano dos objetos, quando se propõe jogar um botão no chão para que um transeunte qualquer o apanhe. E nesse simples ato de apanhar um botão do chão, o jogo cênico acontece, a Matinta se perpetua a novas narrativas, se ramifica ao relato de outras famílias, ganha novas improvisações orais de repasse do conhecimento. E essas narrativas terão agora um sotaque mais paulistano..., e mesmo assim ainda será Matinta, pois em qualquer lugar do mundo onde houver alguém das matas de Belém do Pará ou da região Norte do País, existirá a Encantaria...

São Paulo, 9 de março de 2024.

Ficha Técnica:

Matinta dos Botões

Acontecimento Performativo

Com Máscara, Criação e Atuação:

Bonequeiro Aníbal Pacha.

Confecção da Máscara e Figurino:

Anibal Pacha.

Cartaz de Divulgação:

Estúdio Solar dos Silva  

BIBLIOGRAFIA:

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

MARQUEZ, Gabriel Garcia, Como Contar Um Conto. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial Ltda. 1997. 3° edição).

MILLER, Daniel. Treco, Troços e Coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2013).