A dell’Arte da In Bust: Notas sobre como aguar o tempo – Por Edson Fernando
Montagem Teatral: "Aguar o Tempo"
Montagem: In Bust Teatro com Bonecos
Edson Fernando[1]
Quem nos conta detalhes é Dario Fo: "Na realidade, em nosso caso, o termo 'arte' é ligado ao ofício". (...) Assim, antes de tudo, Commedia dell'Arte significa comédia encenada por atores profissionais, associados mediante um estatuto próprio de leis e regras, através do qual os cômicos se comprometiam a proteger-se e respeitar-se reciprocamente" (2004, p.20). Esclareço, no entanto, que as notas dispostas aqui se dirigem a uma Cia de atores profissionais que formulam seu "estatuto próprio de leis e regras" que, no meu entendimento, colocam "atuante e boneco", "atuante e objetos", "atuante e matéria", ou ainda "atuante e coisas" numa relação dialética de criação, poetização e/ou inventividade para instaurar uma encenação que os enreda a tal ponto de um ser imprescindível ao outro. Não obstante, o cômico pode ser considerado traço comum ao longo dos seus vinte e sete anos de produção teatral e, por isso, não é de todo descabido, artificial ou forçado o uso das palavras de Dario Fo para categorizar a In Bust Teatro com Bonecos.
Tentativas de cercar o tempo: agora, instante, momento, século, intervalo, hoje, acontecimento, fase, dia, segundo, enquanto, ciclo, data, ontem, situação, etapa, mês, idade, era, ocorrência, período, minuto, ano, ocasião, época, estágio, hora, amanhã..., mas cercam mesmo o tempo? E por quanto tempo?
Numa tradução literal bem rasteira temos "no busto". Uma Cia de teatro que
"tem peito", que "mete o peito", que não se acanha e enfrenta as adversidades
de se viver profissionalmente de teatro numa cidade do norte do Brasil, ou
ainda uma Cia de teatro que peita os conceitos rígidos e ao invés de seguir a
convencional linha de atuação do teatro DE bonecos, resolve fazer o teatro COM
bonecos. Talvez essas conclusões/definições iniciais não estejam de todo erradas,
mas já ouvi os próprios fundadores da Cia remeterem a "embuste"; não o
"embuste" articulado a ideia de uma mentira, de uma astúcia mal-intencionada
com o objetivo de enganar, passar pra trás, colocar alguém numa situação
enrascada para tirar proveito próprio, como nos quer fazer acreditar o verbete dos
dicionários. Entendo "embuste" da In Bust, antes de qualquer coisa, a
partir de uma articulação direta com o "brincar": o trocadilho entre as
palavras, como numa brincadeira de criança de inventar a própria língua, mas
também a brincadeira de desvelar aquele que dá anima ao boneco, dá anima
aos objetos, dá anima a matéria, dá anima as coisas; a
brincadeira, portanto, de ser atuante-manipulador ou manipulador-atuante num
jogo de complementaridades que faz nascer o elo necessário para a contracena
COM o boneco, COM o objeto, COM a matéria e COM as coisas.
Imprecisões ou pequenas trapaças no tempo: Ontonti, de repente, só um segundinho, parumês, rapidolamente, cedinho, nem sempre, paruano, quando der, do tempo do puta-merda, dinoitinha, três minutinhos, uma vida, ditardinha, às vezes, chá de cadeiras, depressa, bora logo, altas horas, peraí, do tempo do ronca, depois da chuva, qualquer dia desses..., ainda assim ele escapa, mas, pelo menos, trapaceamos e escapamos dele também.
Conversando novamente com Dario Fo: "Grammelot é uma palavra de origem francesa, inventada pelos cômicos dell'arte e italianizada pelos venezianos (...). Apesar de não possuir um significado intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do discurso. Trata-se, portanto, de um jogo onomatopéico, articulado com arbitrariedade, mas capaz de transmitir, com o acréscimo de gestos, ritmos e sonoridades particulares, um discurso completo" (Ibidem, p.97). E por esta via vejo nascer os seres mascarados que tem o poder de aguar o tempo: Partida, Retorno e Encontro. Numa atmosfera mágica tudo me é dito por esses seres divinos, tudo me é revelado, tudo me é falado sem palavras e tudo fica claro sem que a intrometida e arrogante semântica priorize e centralize o sentido; na presença desses seres divinos e mascarados quem assume o protagonismo é a semiótica que instaura outras relações e outros modos de humanidade entre nós; sinto o tempo escorrer pra dentro de mim naqueles breves momentos (poxa, podia ter muito, muito, muito, muito, muito mais!!!) ao lado dos seres mascarados: inevitavelmente sou levado a nadar nas minhas reminiscências de criança de quando também brincava de ter minha própria língua inventada e imaginária; daí escorro até as primeiras montagens teatrais que pude assisti e que foram criadas sem uma única palavra com sentido direto ou mesmo outras que exploravam a expressividade corporal como linguagem estruturante, a exemplo de Violetango, da Cia Atores Contemporâneos, que tive oportunidade de assistir e me deslumbrar pela primeira vez em 1995, vindo a participar dela como atuante em 2001; num fluxo continuo de sensações e percepções continuo me escorrendo finalmente até a proposta poética de experimentação do Teatro de Crueldade de Antonin Artaud em "Quando a música terminar..." (2007), experimentação que foi meu fio condutor na pesquisa de dissertação de mestrado e que explorou a dimensão mágica da palavra e do gesto pelos quais tudo que era dito explorava a sonoridade dos termos falados literalmente de sárt arp etnerf . E nesse movimento de me escorrer pra dentro que os seres mascarados da In Bust colocam em cena tudo vai ficando cada vez mais fácil de acompanhar, cada vez mais prazeroso e cada vez mais emocionante. "Obviamente, os gestos, os ritmos, os tons e principalmente a simplicidade contribuem para que o idioma desconhecido não se torne um obstáculo intransponível ao entendimento. Mas isso é insuficiente para explicar o fenômeno. Pode-se notar a existência de algo subterrâneo, mágico, compelindo nosso cérebro a intuir tudo aquilo que não é expresso clara e completamente" (Ibidem, pg. 101). Mas quando tudo me fazia acreditar que essas águas encantadas se manteriam fortes até o fim da jornada, eis que a intrometida e arrogante semântica arranca as máscaras e me trazem pra realidade dos significados outra vez. Foi um duro golpe e a vontade era de gritar: "Mais semiótica e menos semântica, por favor!!!"
Conversando com a sabedoria popular e tentando aguar outros tempos: "A pressa é inimiga da perfeição" – Tenho procurado não ter pressa e nem querer a perfeição; "Há que dar tempo ao tempo" – Mas quem tem essa paciência toda? Obviamente me permitindo a contradição; "Não há dor que o tempo não cure" – Uma variante mais dramática da anterior com o agravante de termos que confiar na imprecisão do tempo para aliviar o sofrimento imediato ou, em outras palavras, é acreditar que o futuro incerto resolverá a desgraça do presente; "O tempo é o melhor juiz de todas as coisas" – O tempo tem dado uma senhora lição a um suposto juiz;
Depois que as máscaras caem sinto a secura do tempo, ou melhor: é como se o tempo tivesse avançado milênios numa fração de segundos e daquele manancial abundante de outrora houvesse restado apenas o suficiente para manter a esperança de que ainda podemos e devemos aguar o mundo. A partir de então, retorna (?) o jogo que demarca a experimentação que a In Bust desenvolve há tanto tempo. Tendo me afastado da tão prazerosa viagem a dimensão dos tempos imemoriais minha primeira impressão é que os inbusteiros irão me apresentar "mais do mesmo" de tudo que já pude conferir em outros dos seus tantos trabalhos. E de alguma forma isso se dá, pois a brincadeira de dar anima ao papel, dar anima as embalagens plásticas e dar anima aos bonecos acontecem novamente com a naturalidade e delicadeza da contracena COM todos esses elementos, uma contracena que os inbusteiros nos acostumaram a ver. No entanto, superando essa primeira impressão, me permitindo um pouco de tempo – olha ele aí de novo me ensinando alguma coisa – e com algumas conversas com o Amor, consigo perceber e fazer outras leituras para além desse condicionamento técnico do meu olhar: um inbusteiro deseja o ENCONTRO com a Rosinha, o outro inbusteiro não aceita a PARTIDA do seu lugar e, por fim, a inbusteira procura adiar o RETORNO pra casa. Cada um, a seu modo, carrega a ancestralidade dos seres mascarados, mas o tempo foi – e é – implacável e fez todas as coisas se desencantarem, o tempo fez tudo secar e, por isso, é preciso aguar o tempo.
Assim como a anciã Hopi de que nos fala Ailton Krenak (2020), os inbusteiros compartilham as estratégias deles para adiar o fim do mundo.
Minha última tentativa:
senhorita chuva
me conceda a honra
desta contradança
e vamos sair
por esses campos
ao som desta chuva
que cai sobre o teclado
(Leminski)
Evoé
24 de novembro de 2023
[1] Ator, diretor e professor de teatro; coordenador do projeto Tribuna do Cretino;
Referências
FO, Dario. Manual mínimo do ator. Franca Rame (org.); Lucas Baldovico, Carlos David Szlak (Trad.). São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2004, 3ª Edição.
KRENAC, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo, Companhia das Letras, 2020.
Ficha Técnica
Aguar o Tempo
Criação Coletiva
Atuantes:
Adriana Cruz
Anibal Pacha
Cincinato Marques Jr.
Paulo Ricardo Nascimento
Confecção de Bonecos, Objetos, Cenografia e Figurino:
Anibal Pacha
Criação da Musicalidade e Sonoridade:
Cincinato Marques Jr.
Iluminação:
Coletiva com acessória de Tarik Coelho
Dramaturgia:
Adriana Cruz e Assistência de Edson Elias.
Registro Fotográfico do Processo:
Edson Elias
Comunicação e Mídias:
Coletiva
Criação e Elaboração da Visualidade de Divulgação:
Carol Abreu
Produção:
Cristina Costa
Direção:
Coletiva
Realização:
In Bust Teatro Com Bonecos
Parceria:
Espaço Cultural Coletivo Casarão do Boneco e Porta Azul
Projeto contemplado pelo Prêmio FCP de Incentivo à Arte e à Cultura 2023 / Fundação Cultural do Pará/ Governo do Pará