Il Tabarro (O Capote) – Por Raphael Andrade.

29/09/2021

Montagem: Il Tabarro (O Capote)

Montagem Operística: XX Festival de Ópera do Theatro da Paz

Raphael Andrade[1]

Nessun dorma, nessun dorma! Nous avons un beau Théâtre! Se as grandes Catedrais católicas têm como características arquitetônicas a grandiosidade para mostrar poder e mostrar o quão somos pequenos perante Deus, ao estar à frente a primeira casa de espetáculos construída na Amazônia, é impossível não fazer uma analogia de como o prédio teatral também era pensado para criar essa atmosfera de grandiosidade, de poder, da pequenez do indivíduo perante à Arte.

E este pensamento não foi diferente ao pensarem na construção do imponente Theatro da Paz (inaugurado em 1878), que abriu novamente suas centenárias portas para o público no final de agosto deste ano, após um hiato de mais de um ano por conta da pandemia de Covid-19 e, concomitantemente, seus mais de nove meses de restauro, para que não deixassem apagar o brilho de sua característica neoclássica híbrida.

Apequenar-se diante de sua arquitetura é a palavra de ordem, desvelando o pensamento da elite/governo da época de sua construção (idos do Ciclo da Borracha), em que não podíamos ficar à margem dos grandes teatros operísticos da Europa, haja vista que queríamos ser "Paris na América", mormente ao copiar as tendências europeias; ou melhor dizendo, amalgamando estilos europeus junto aos da cultura Amazônica.

É o que podemos ver logo no seu Hall de entrada. Como passar despercebido um lustre francês e dos ferros ingleses que fazem referência a cachos, fruto do Guaraná da Amazônia? ou das pedras portuguesas em combinação de formas geométricas de arabescos da flora Amazônica? Sem contar com as estátuas de figuras mitológicas (moças de Karyai) que fitam com seu semblante os que sobem seus degraus de mármore de Carrara, contrastado pelos pisos de madeira regional de acapú e pau amarelo em formato de "cruz gamada" (símbolo de várias civilizações) que, os mais desavisados, pensarão que é uma homenagem à suástica hitlerista, mesmo que o Theatro tenha sido inaugurado onze anos antes do nascedouro do ditador do Reich Alemão. TSC.TSC.

Ao adentrarmos à sala de espetáculo com seus atuais novecentos lugares, parece que céu desceu à terra, pois a grande pintura feita pelas mãos do italiano com sobrenome de anjo, Domenico De Angelis (1852-1900), que utiliza elementos da mitologia greco-romana e figuras que lembram anjos barrocos, faz com que tenhamos essa impressão singular ao fazer um cruzamento simbiótico entre a fauna, flora e os povos indígenas. Além, claro, do pomposo lustre central americano que imita a silhueta de uma vitória Régia. Nesse enredo, o "Da Paz" e suas arrebatadoras nuances, possibilita que fiquemos um pouco nômade ao sair do mundo concreto que vivemos, para passearmos na noção do "Belo", da "Perfeição", que Platão consideraria o "mundo das ideias", que sua teoria defende.

Ao tocar a sineta pela terceira vez, acordamos da utopia e nos concentramos no começo do espetáculo, mas antes, somos agraciados pelos acordes do trecho da ópera "O Guarani", de Carlos Gomes (1836-1896), adaptação do romance de José de Alencar (1829-1877), em que as luzes vão se apagando lentamente e conflagra à luz na ribalta da caixa mágica teatral, à la palco italiano (elemento arquitetônico incorporado desde o século XVII), de estrutura de proscênio que garante, tanto na funcionalidade como na praticidade, a obtenção de efeitos favorecedores à cenografia e atuantes.

Começa-se, portanto, a ópera Il Tabarro (1913), do mesmo autor da minha ópera favorita Turandot, ou seja, o italiano Giacomo Puccini (1858-1924), que escreve uma ópera-conto de um dos seus Trittico - que também é composta por "Suor Angelica" concerto só de mulheres e da cômica "Gianni Schicchi". Já a obra em questão, "O capote" (ou A Capa) é uma peça curta, de uma única noite (soirée), contudo, com um libreto de enorme densidade da trama de faina rude.

Faz-se importante mencionar que o espetáculo faz parte do XX Festival de Ópera do Theatro da Paz, que além de apresentar um espetáculo operístico, tem como cerne a formação de novos profissionais em artes cênicas e do canto lírico, no qual faço parte desde 2020 como técnico teatral, entremeado pelo Curso de Formação em Ópera (vindouro teatro-escola), no qual oportunizou que eu ficasse mais à vontade de escrever esta crítica sobre ópera, mormente por ter oportunizado o estudo sobre a história, aprendido a ler partitura, preparação de legendas (Mapear o libreto da ópera), e ademais conhecimentos que concernem à especificidade do gênero operístico.

Retornando à obra de Puccini, denota em primeiro momento a imagem do trabalho subalterno que, aparentemente, seria uma crítica social ferrenha, apesar de ser contrastada por um ambiente alegre e até jocoso, mas logo o autor subverte calmamente a atmosfera para um tom mais noturno, com arroubos pontuais de cordas que dão o efeito sombrio em uma crescente melancolia dos personagens apaixonados e esmorecidos, definidos pelos desenhados no ar pelas mãos da talentosa regência do esmerado Gabriel Rhein-Schirato, transpassado pela luminância intensa da OSTP.

A visualidade detém um belíssimo resultado na arquitetura cenográfica funcional tridimensional de artesanal tarimba (Carlos Dalarmelino) com ambiência do Rio Sena e da parte traseira da catedral de Notre-Dame de Paris, à soturna ambientação de um Péniche, que ambienta, na maior parte das cenas, a ótima triangulação das personas/estivadores, apesar da visualidade entrar em desacordo estético quando a atuante se senta, por duas vezes, ao lado do camarote proscênio de primeira ordem, criando um estranhamento no tom realista. Mas nada que tirasse o brilho da potente montagem.

Os efeitos luminares incisivos (Fabio Retti) são pontuais e alternado em vazados clarões quando há muitos personagens em cena; ou em sombras focais, de acordo com o clima da trama, culminando numa linda tonalidade (fenômeno de dispersão da luz que imita o céu) atrás da silhueta sepulcral de Notre-Dame. Completando-se na sutileza discricionária dos figurinos (Fernando Leite), com participação na confecção do figurino feminino do coro, pelas detentas costureiras do Centro de Referência Feminino (SEAP). Tudo isto agregado pelo olhar apurado e pleno domínio diretorial de Jena Vieira.

No que tange o elenco, houve uma integralizada atuação com demonstração de convincente apuro vocal e gestual, ao lado de um encorpado coro/staff, com um destaque aos quatro personagens aplaudidos pelo público após cada "canção monólogo" - a personagem cativante e com coloratura brilhante de um allegro enérgico, Giorgetta (Eliane Coelho), do desenvolto porte físico à intensidade da tessitura de Michele (Rodolfo Giugliani), da requintada flexibilidade ora mais aveludada ou de degradações expansivas da admirável Giorgetta (Eliane Coelho), ou da qualidade tonal de potente fraseado Moderato de Luigi (Hélenes Lopes).

Por fim, ao apagar as luzes acima do revolto capote mortal da ópera verista dramática, entre o que deveria ser uma dicotomia adequada entre paixão x trabalho x volúpia e da complexa embriaguez utópica x realidade, houve-se, imediatamente, retumbantes aplausos eufóricos pela genialidade pucciniana em nos deixar envoltos à prisão amálgama ao poder engendrar um pensamento tempestuoso da vida através do seu elã sonoro. Tornando a apresentação do Festival de Ópera do Thetrao da Paz, um artífice na missão não só de resgatar um espaço merecedor para a tradição operística, mas também de não a deixar sucumbir.

BRAVO! e molti anni a venire

28 de setembro de 2021

[1] Professor-artista-pesquisador. Especialista em Arte e Educação e Mestrando em Artes.

Ficha Técnica

"Il Tabarro", de Giacomo Puccini.

Elenco:

Giorgetta: Eliane Coelho

Michele: Rodolfo Giugliani

Luigi: Hélenes Lopes

Frugola: Carolina Faria

Talpa: Fellipe Oliveira

Tinca: Antonio Wilson

Vendedor de Canções: Alexsandro Brito

OSTP (Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz).

Regência:

Gabriel Rhein-Schirato.

Direção Cênica:

Jena Vieira.

Direção de Palco:

Cláudio Bastos

Cenografia:

Carlos Dalarmelino

Cenotécnicos:

Jose Ribamar Diniz Monteiro

Nato Rodrigues

Rubens Vieira Almeida.

Figurino:

Fernando Leite

Costureiras:

Detentas do Centro de Referência Feminino

Diretor Geral:

Daniel Araújo

Diretora de Produção:

Nandressa Nuñez

Visagismo:

Omar Junior

Iluminação:

Fabio Retti

Récitas: 25, 27 e 29 de setembro de 2021.