Os extensores/brinquedos de Pacha – Por Edson Fernando

30/04/2019

Espetáculo Solo: Caravana

Montagem de Aníbal Pacha 

Edson Fernando[1]

Comentando criticamente alguns trabalhos apresentados na segunda edição do Festival Territórios de Teatro - evento ocorrido em Belém, em Julho de 2009 - o crítico paraense Kil Abreu classificou Querela-Eu como uma montagem teatral "de ponta", não no sentido de ser melhor que as outras, mas "porque se colocava na beira, na área de risco da investigação teatral". Como diretor dessa montagem, recebi essa crítica com bastante entusiasmo, pois Querela-Eu - livre adaptação feita a partir do romance Querelle de Brest, de Jean Genet - era o primeiro trabalho produzido pelo GITA e, segundo Kil, ela se comportava como um produto inacabado que testava os limites formais da linguagem teatral "sem resultados redondos, perfeitos - porque o 'redondo' já teria um paradigma formal estabelecido". Era exatamente isso que pretendíamos com a montagem cuja pesquisa segue até hoje fundamentada no treinamento psicofísico com artes marciais e meditativas asiáticas que o grupo pratica regularmente.

Quase dez anos depois, sentado na plateia do teatro Cláudio Barradas para conferir Caravana, espetáculo solo de Aníbal Pacha, sou tomado por impressões semelhantes, pensamentos e percepções que, de algum modo, vão ao encontro das sentenças de Kil. Na minha percepção em nenhum momento Caravana deseja se estruturar ou se apresentar como obra formal e acabada, sendo avessa, portanto, a qualquer verniz dramático possível: não identifiquei fábula, nem personagens, trama, reviravoltas ou qualquer elemento que me permitisse a fruição pelo gênero dramático. O que observo é o livre exercício dos objetos de cena manipulados pelo atuante solitário que se enreda num jogo de exploração sensorial consigo mesmo e com o espaço. Aníbal parece incansável na tarefa de se exercitar com e/ou por meio dos objetos, de se repetir neles, de se colocar como uma espécie de homem-máquina tateando seus próprios componentes. Percebo nobreza nessa empresa, pois tudo que ele se compromete a fazer nesse jogo de experimentação tátil com os objetos e, por conseguinte, consigo mesmo, é realizado numa dimensão lúdica, sincera e sem nenhum tipo de representação espetacular ou espetaculosa.

Desde o início o palco está nu, vazio... e essa atmosfera desabitada de cores e sentidos me arremessa, intuitivamente, em busca das articulações de significância a partir do menor estímulo sensorial provocado pelo solista. No entanto, à medida que Aníbal se estabelece como aquela espécie de homem-máquina e explora seu corpo, extensores e espaço ele continua me mantendo atado a dimensão do laboratório, do exercício, da tentativa, da manipulação quase técnica, enfim, me sinto atado a dimensão de atos de improviso. A meu ver os gestos, movimentos e "ações" parecem esbarrar no limite estabelecido por essa dimensão laboratorial que estou arriscando chamar de atos de improviso. E por essa perspectiva apreendo que o palco continua nu, como também estão nus os extensores - as varas e o fio - e, fundamentalmente, o próprio atuante, pois o que observo é a inteireza da nudez do ator-manipulador como talvez nunca ele tenha se mostrado em nenhum outro trabalho da In Bust Teatro com Bonecos. Não se trata de uma simples demonstração da manipulação técnica de seus instrumentos de trabalho - os extensores -, mas de uma operação que lhe permite mergulhar em sua própria memória e história de vida por meio da relação e exploração lúdica com os objetos. Trata-se, portanto, da nudez de Aníbal enquanto homem-ator-manipulador.

Mas se por um lado percebo essa entrega total nesse jogo que lhe permite acessar seu portal pessoal, por outro a dimensão laboratorial do trabalho continua prendendo minha atenção para a nudez do palco e dos objetos. É como se ele abrisse o portal para si, mas não me oferecesse pistas ou chaves de como acessá-lo do lugar em que me encontro, e isso me incomoda. Talvez essa seja uma questão interessante: sentado numa plateia colocada em posição frontal - estilo que lembra a perspectiva do palco italiano - o lugar em que me encontro oferece uma distância segura para todas as minhas maquinações cognitivas e análises teóricas. E ao me sentir apartado das operações que Aníbal desempenha com integridade não consigo penetrar no universo do seu imaginário e nem constituir o meu próprio, posto que a obra se assente como um eterno exercício e tentativa não formal. O inacabado da obra estabelece uma fronteira, um limite que me deixa fora do principal elemento do jogo do atuante: o lúdico. E se a ênfase da experiência de Aníbal no palco é tátil, na plateia a ênfase da minha experiência é visual.

Desse modo, tal como Kil sinalizara para o Querela-Eu apontando que a montagem se colocara numa "área de risco da investigação teatral", penso algo semelhante sobre Caravana. O risco nesse caso seria não ultrapassar a fronteira clássica entre atuante e espectador numa montagem cujo potencial de exploração sensorial é enorme. E sobre esse aspecto o último "ato" realizado por Aníbal em "cena" me parece demonstrar o quanto essa fronteira (atuante/espectador) precisa ser olhada com carinho. Falo do momento em que Aníbal se relaciona diretamente com o público e oferece sua "caixa" de teatro, em formato de tronco humano, para nossa experiência estética. Ocorre que nessa linguagem específica do Teatro de Caixa - que eu e Aníbal nos dedicamos há alguns anos - acreditamos que a relação com o público deve ser realizada preparando o olhar do publico para o que será encontrado no interior da caixa. O Teatro de Caixa que investigamos e exercitamos no Coletivo de Animadores de Caixa subverte a relação clássica que segrega atuante e espectador e convoca o público para uma dimensão ativa, pois entendemos o publico como um co-partícipe do acontecimento que é mediada pela "caixa" como objeto performático. Em Caravana, sem essa preparação do olhar do público para o interior da "caixa" a relação se estabelece pela dimensão do espectador. Compreendo que o fato da "caixa" também estar nua, vazia, desprovida de dramaturgia - tal como concebemos no Coletivo de Animadores de Caixa - desobriga essa preparação do olhar do publico, mas também reforça a fronteira que separa o atuante do público e arremessa esse último para a condição de espectador. E esse me parece um risco que talvez possa ser reconsiderado sem prejuízo para a natureza inacabada da própria obra e, portanto, respeitando o ponto central da poética e da encenação.

Desejo que a Caravana de Aníbal siga trilhando as bordas e áreas de risco, testando os limites e fronteiras das linguagens que ele conhece muito bem - Cenografia, Teatro, Figurino, Encenação, Performance dentre outras - por ser um dos poucos artistas da cidade que tem competência e experiência de um verdadeiro multiartista.

Evoé.

30 de abril de 2019.

[1] Ator e diretor teatral; Coordenador do projeto TRIBUNA DO CRETINO. 

Ficha Técnica

Caravana

Atuação e Encenação:

Aníbal Pacha

Laboratório de Vivência Háptica:

Iara Souza

Visualidade:

Iara Souza