Quatrocentos e oitenta e nove dias – Por Edson Fernando

30/06/2021

Montagem teatral: "Fashion Fake - A Roupa Quase Nova do Rei"

Montagem: Cia de Teatro Madalenas 

Edson Fernando[1]

Um reencontro que demorou quatrocentos e oitenta e nove dias para acontecer. Sim, este é o número de dias exatos desde a última vez que estive numa sala de apresentação teatral. Naquela ocasião - no distante fevereiro de 2020 - tive oportunidade de conferir "mEU pOEMA iMUNDO", da Coletiva Xoxós, apresentado no Teatro do Desassossego. E nesse intervalo de tempo de quatrocentos e oitenta e nove dias, o mundo sofreu uma reviravolta inimaginável àquela altura quando, então, começava a ser assolado pela pandemia de Covid-19, status sanitário assim declarado por Tedros Adhanom, diretor geral da Organização Mundial da Saúde, em 11 de março de 2020.

Ao longo desses quatrocentos e oitenta e nove dias, numa velocidade assustadora, a poesia do mundo cedeu espaço para a gravidade letal e o alto grau de contaminação do Novo Corona Vírus, doença respiratória aguda que se propagou por todos os continentes e produziu, rapidamente, cenas de filme de guerra, como a ocorrida em março de 2020 na cidade de Bergamo, norte da Itália, local onde o governo teve que recorrer ao exército para recolher centenas de corpos de vítimas contaminadas, pois os serviços funerários ficaram sobrecarregados.

Esse cenário apocalíptico, contudo, não foi o bastante para nos alertar de uma tragédia em dimensões gigantescas que se derramou - e se derrama - no Brasil ao longo desses mesmos quatrocentos e oitenta e nove dias, pois nossa pátria, outrora cantada em versos de Jorge Bem Jor como o "país tropical / abençoado por Deus", sinônimo de alegria e carnaval, tornou-se de fato uma grande tRAGÉDIA iMUNDA tendo à frente do governo da nação o capitão reformado do Exército que, certa vez, em entrevista - ocorrida em junho de 2017, quando ainda era apenas um candidato a presidente da república - afirmou "Minha especialidade é matar".

O atual presidente da república, infelizmente, não estava brincando ou fazendo frase de efeito quando ligou sua atividade/especialidade de "matar" - desenvolvida como capitão do exército brasileiro - aos seus sucessivos mandatos de deputado federal quando, na ocasião da entrevista, foi perguntado sobre a quantidade de projetos apresentados e/ou aprovados no Congresso Nacional ao longo de sua trajetória de sete mandatos (1991 - 2018). Em resposta taxativa a questão, o então deputado Bolsonaro, mencionou ter participado da aprovação de um "grande" projeto, conhecido com a "pílula do câncer" - droga sem eficácia comprovada cientificamente e que veio a ser proibida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em abril de 2020 - e, então, arrematou: "Estive à frente para aprovar a fosfoetanolamina. Cura ou não cura, não sei. Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar, não é curar ninguém"[2].

Acentuando seu discurso de ódio ele deixava transparecer, desse modo, seu caráter sanguinário que, ao longo desses mesmos quatrocentos e oitenta e nove dias, se reiterou - e continua se reiterando - em diversas oportunidades e ações que confirmam o perfil de sua política genocida pra enfrentar a pandemia: 1 - Crença e defesa da tese da "imunidade de rebanho", isto é, a defesa de uma contaminação em massa da população para gerar, "naturalmente", a elevação da imunidade e, assim, controlar surtos de doenças, tese esta reprovada cientificamente e eticamente desumana; 2 - Apologia ao kit de "tratamento precoce" cuja base é o uso de hidroxicloroquina, medicamento certificado pela comunidade médica como comprovadamente ineficaz contra a Covid-19 e que ainda pode gerar graves problemas cardíacos nos pacientes; 3 - Boicote sistemático à todas as tentativas de ações restritivas ao comércio e circulação de pessoas nas cidades impostas pelos dos governadores, chegando inclusive a recorrer ao STF para barrar o lockdown e toque de recolher em todos os estados brasileiros; 4 - Desincentivo ao uso de máscara e promoção de vários eventos gerando aglomerações, inclusive quando supostamente testou positivo para Covid-19, ocasião onde cumprimentou diversos apoiadores sem usar máscara; 5 - Omissão do governo federal no caso da crise de falta de oxigênio em Manaus, omissão confirmada pelo próprio Eduardo Pazuello - então, ministro da saúde - em depoimento a CPI da Covid-19, no qual confirmou que o presidente Bolsonaro estava presente na reunião interministerial em que foi negado socorro ao governo do Amazonas; 6 - Recusas reiteradas de compra da vacina Pfizer - 53 e-mail foram enviados pela farmacêutica Pfizer pedindo posicionamento do governo brasileiro para aquisição da vacina oferecida por metade do preço ofertado a países como EUA, Reino Unido e até a União Europeia; 7 - Prevaricação do próprio presidente no caso das vacinas da Covaxin, revelado recentemente na CPI da Coivid-19, no qual mostra que Bolsonaro sabia do esquema ilegal da compra bilionária da vacina indiana com preço 1000% mais alto - sabia e não tomou nenhuma providencia para evitar o negócio.

Todas essas ações corroboram a tese do "bolsovírus", defendida e publicada em artigo[3] do jornal Folha de São Paulo, em junho de 2020. A tese é do filósofo Paulo Ghiraldelli Júnior que apregoa a fusão do vírus com a pessoa do presidente para, assim, entender o aceleramento da política de deterioração das instituições republicanas durante o período da pandemia.

E assim, sob a tutela presidencial do bolsovírus, o Brasil, ao longo desses quatrocentos e oitenta e nove dias, mergulhou numa crise sanitária sem precedentes em nossa história alcançando mais de quinhentas e quatorze mil pessoas mortas por Covid-19. Em cálculos aproximados é como se morrerem mais de mil brasileiros todos os dias, durante quatrocentos e oitenta e nove dias - e isso infelizmente ainda está longe de terminar, pois continuamos com média diária de mais de mil e quinhentas mortes por Covid-19. Essa tem sido nossa tRAGÉDIA iMUNDA - o "imunda" fica por conta da política de genocídio do próprio presidente. Perdemos a alegria, suspendemos o carnaval, a quadra junina, os eventos esportivos, os eventos culturais... os teatros fecharam as portas... e até as procissões do Círio de Nazaré foram canceladas.

Diante de tudo isso, quando recebi o convite para conferir a montagem teatral "Fashion Fake - A Roupa Quase Nova do Rei", da Cia de Teatro Madalenas - numa sessão especial para convidados, então, realizada no Teatro Gabriel Hermes - fui, naturalmente, tomado por um misto de sensações: entusiasmo, pela oportunidade de voltar a ver teatro, em carne e osso; receio, pela exposição à contaminação; tristeza, por tantos artistas que partiram sem ter a oportunidade de voltar pisar num palco; e revolta, por ainda nos encontrarmos nessa situação.

Hesitei na confirmação imediata ao convite, pois uma espécie de "cagaço" me tomou de assalto, afinal, quem já teve parentes ou amigos acometidos pela Covid-19 e teve que vivenciar, direta ou indiretamente, a via crucis em busca de atendimento nas UPAs lotadas, transferência para PSM com o acompanhante de pessoa contaminada tendo que dormir no chão por não ter sequer uma cadeira para descansar, e só depois conseguir transferência para o Hospital de Campanha do Hangar... enfim, quem já vivenciou isso tudo aprende a redobrar os cuidados com prevenção e sabe o quão delicada ainda é a nossa conjuntura com o processo da vacinação se arrastando a passos de cágado - até agora, apenas 12% da população brasileira recebeu as duas doses da vacina e pode ser considerada completamente imunizada. E como o convite se estendia a um acompanhante, pedi um tempo pra pensar e consultar o Amor, para juntos decidirmos se iríamos ou não. Obviamente que decidimos por conferir o trabalho e daí em diante foram alguns dias de ansiedade e a sensação de que depois de quatrocentos e oitenta e nove dias desaprendi como é presenciar uma montagem teatral, desaprendi como é me arrumar pra sair à noite, desaprendi a encontrar pessoas de carne e osso, desaprendi a me encontrar com o mundo fora da "matrix" que nos foi duramente imposta.

E depois de quatrocentos e oitenta e nove dias eu me reencontrava com Dionísio, com os parceiros de palco, com amigos e com a vontade de tomar o mundo de volta, de recolocá-lo nos termos da sanidade e dignidade humana de outrora, de reconduzir o sentido da vida para os marcos de uma razão crítica contundente e radical contra qualquer vislumbre ideológico de ascendência bolsonarista. E sim, eu já estou falando diretamente da "Roupa quase nova do rei", uma farsa de mão cheia livremente adaptada a partir do clássico conto dinamarquês "A Nova Roupa do Rei", de Hans Christian Andersen. Quando digo "farsa" me remeto ao tom jocoso na condução e desenvolvimento da narrativa, me remeto à bufonaria dos modos de atuar os papeis, me remeto à sátira mordaz pouco ou nada velada e, por isso mesmo, pouco preocupada em refinamentos dramatúrgicos, me remeto à tematização contumaz de muitas questões sociais que nos assolam e que eu retratei, anteriormente, problematizadas a partir da dimensão de responsabilização das ações do atual presidente do Brasil.

O que importa nisso tudo é menos enquadrar a montagem numa categoria fechada intitulada "farsa", mas localizar o ponto vital pelo qual o jogo se estabeleceu comigo; e, sem dúvida, esse ponto vital, para minha experiência estética, repousa na excelência do jogo farsesco desenvolvido por todo o elenco. Mas também aqui repousa o meu desconforto, o meu estranhamento, o meu incômodo, a minha angústia, a minha inquietação: a caixa preta de um palco italiano. Antecipo-me dizendo saber e concordar com os motivos pelos quais a apresentação não te sido feita em espaço aberto, nas ruas e/ou praças da cidade - por tudo que já foi dito até aqui, foi uma escolha forçosamente acertada. Meu desconforto, estranhamento, incômodo, angústia e inquietação, portanto, não pretendem apontar para a régua dos acertos e/ou desertos nas escolhas operacionais e estéticas que as Madas precisaram fazer, mas sim, nascem do desejo de compartilhar o quanto eu consegui escutar e delinear a obra na sua relação futura com a rua.

Neste sentido, é que afirmo que "Fashion Fake" tem cheiro de rua, tem cheiro de feira, tem cheiro de praça; tem cheiro de gente se aglomerando pra pegar o melhor lugar perto dos atuantes; tem cheiro de encontro inusitado na esquina da rua; tem cheiro de bêbados que atravessam e roubam a cena com sua irreverência ébria; tem cheiro de cachorro vira-lata; tem cheiro de suor de quem labuta debaixo do sol inclemente de nossa cidade; tem cheiro de canal, de vala, de esgoto; tem cheiro das nossas mazelas sociais; tem cheiro da vida de verdade.

E da minha confortável poltrona, sentado na distância que oferece o palco italiano do Gabriel Hermes, foi possível entrever todos esses cheiros suscitados pelo jogo farsesco da montagem. Mas não só isso. Não somente os cheiros, mas também as intervenções sonoras: o grito do feirante na tentativa de cativar atenção de sua freguesia; os motores e buzinas de ônibus, carros e motocicletas roncando violentamente no asfalto quente; as sirenes de polícia e ambulâncias que tantas angústias tem nos causado ultimamente; as gargalhadas incontidas dos transeuntes que se aglomeram ao redor dos atuantes; a interjeição subida e inusitada do intrépido bêbado que passa a improvisar ao lado dos atuantes; os latidos dos vira-latas esfomeados; os sons da vida que pulsam numa caótica ordem desvairada.

Tudo isso ainda não está lá, mas, paradoxalmente, já está lá, pois o jogo farsesco se faz presente e estabelecido nos marcos de uma atuação e encenação centradas naquilo que há de fundamental no teatro: a presença física do outro estabelecendo relações de interação sensório-afetiva com o outro. É neste sentido, que percebo a obra ansiosa para este tipo de interação e, certamente, crescerá muito a partir de todos os estímulos que receber de seu grande parceiro: o público. E só não considero que a montagem está redondinha e aprumada, pela cena que tenta promover uma problematização do humor feito nos termos e tempos do politicamente correto. A cena não só me pareceu deslocada, como não encontra aprofundamento em nenhuma outra parte da narrativa.

Partilho, ainda, breves considerações sobre as relações semióticas que me foram sugeridas pela caracterização e desenvolvimento em cena de alguns personagens, principalmente o Bobo-Demônio e o Rei-Bobo. O primeiro, todo vestido de vermelho, me remete imediatamente a figura cristã de um demônio-astuto; é ele quem demonstra maior apreço pelo trono, é ele quem primeiro se senta no trono, é ele quem brinca com a coroa do rei, é ele quem usurpa o cargo do rei. O segundo, figura abobalhada, quase um bonachão; parece mais preocupado consigo do que com o cargo que exerce, por vezes parece esquecer o cargo que exerce. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.

Mas há um diferencial trágico: em nossa realidade, ambos habitam o mesmo corpo, a mesma alma sebosa; ora se faz de bobo, inocente e bom moço para se eximir das responsabilidades e crimes que coleciona no cargo de presidente; ora é o próprio demônio destilando ódio, ignorância, violência e bestialidade. A montagem, neste sentido, me ajuda a pensar, didaticamente, sobre como essas dimensões operam no imaginário daqueles que insistem no apoio incondicional ao "mito". Talvez elas operem sob o jugo de uma dialética doentia pela qual uma dimensão compense/anule a outra gerando uma catarse malsã. Mas chega, investir tempo tentando compreender como funciona a cabeça desses "bozos" é pura perda de tempo.

Muito mais importante é destacar a catarse da apoteose final. É emocionante a folia, o carnaval - e olha que nem gosto de carnaval - a explosão de alegria que nos convoca pra ação, que nos devolve a dimensão da rua e nos enche de entusiasmo para reassumirmos a condição de agentes da história, da nossa atual conjuntura torta e cruel que a cada dia clama por justiça e reparação histórica nos mesmos termos do Tribunal de Nuremberg.

Então, ganhemos as ruas rumo às manifestações que irão dar cabo de vez ao bolsovírus. 

Evoé! Agora e sempre. Evoé!

Edson Fernando

29 de junho de 2021

Obs: Para os que desejarem conferir, a gravação da apresentação será disponibilizada na plataforma do you tube nos dias 02, 03 e 04 de julho, às 19h, no canal da Cia Madalenas.


[1] Ator e Diretor teatral; Coordenador do projeto Tribuna do Cretino.

[2] Existe material abundante na imprensa das plataformas digitais repercutindo essa entrevista; uma delas é feita pela Gazeta On Line que pode ser conferida no link a seguir: https://www.gazetaonline.com.br/noticias/brasil/2017/06/-sou-capitao-do-exercito-minha-especialidade-e-matar--diz-bolsonaro-1014072430.html

[3] O artigo pode ser conferido no link: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/06/o-grande-ataque-do-bolsovirus.shtml

Ficha Técnica

Elenco:

Flávio Furtado

Cleber Cajun

Marta Ferreira

Wanuza Myreia

Leonel Ferreira

Patrick Marques

Direção Musical:

Diego Vattos e Pawer Martins

Cenografia e Adereços:

Jesus da Conceição

Ferreiro Cenário:

Sergio Carvalho

Motorista:

Clóvis Santana

Cabelos:

Sara Miranda

Maquiagem:

Nádia Alvarenga

Iluminação:

Thiago Ferradaes

Figurinista:

Jackye Carvalho

Costureira:

Nete Ribeiro

Coordenação de Comunicação:

Tainah Fagundes

Assessoria de Comunicação:

Luciana Medeiros

Designer Gráfico, Fotografia e Arte do Cenário:

Carol Abreu

Ilustração Bandeira:

Cleber Cajun

Produção Executiva:

Leonel Ferreira e Flávio Furtado

Assistente de Direção:

Flavio Furtado

Dramaturgia e Direção Geral:

Leonel Ferreira

*Todas as músicas foram compostas pelo elenco de forma colaborativa