Pequenos Autorretratos de Henrique da Paz 

Numa manhã agradável - de abril de 2019 - tive oportunidade de conversar e aprender muito sobre Teatro com Henrique da Paz. Na ocasião, gravei nosso bate-papo como material pra minha pesquisa em andamento. O que apresento abaixo são alguns fragmentos dessa descontraída e deliciosa conversa com Henrique, o modo que encontrei para homenageá-lo e mantê-lo sempre vivo em nossa história e memória. São pequenos autorretratos de sua autêntica trajetória de resistência poética/política, relatados a mim, no aconchego de sua residência, na rodovia Augusto Montenegro.   

Evoé, Henrique da Paz.

"Eu acho que as minhas influências são várias, (...) eu gosto muito do Boal, sou apaixonado por Boal, sou apaixonado por Brecht. (...) Stanislavski, pô. Eu comecei com Stanislavski, que era bíblia na época; a gente tinha que ler Stanislavski, todo mundo lia Stanislavski e tal... a gente não sabia direito o que que era, mas umbora ler e tal... pra tentar entender"

"E por eu ter iniciado numa época muito efervescente de golpe militar, de censura - a gente sofreu muito isso, lá Icoaraci, inclusive - (...) existia uma reação da classe dos artistas de ir contra a censura, contra a ditadura. Foi o famoso ato de resistência que surgiu no Brasil muito forte. (...) Então, nossos espetáculos já tinham uma estética, eu diria, "moderna" pra época, não era mais aquela coisa do teatrão. Foi o início do famoso Teatro de Arena e a gente pegou essa influência (...), de montar espetáculos de arena mesmo usando aquelas coisas dos praticáveis que até então não se usava. E trabalhar o teu espaço ali em diversos planos, isso era uma delícia. Então, eu comecei a fazer teatro assim, envolvido por todas essas influências e tal"

"O que eu gosto - e procuro manter isso como diretor, porque eu acho que é importante - é tentar montar espetáculos que contribuam, de alguma forma, pra uma conscientização, pra uma reflexão, pra uma discussão de algum problema, vamos dizer que seja, universal. Isso pra mim é importante e isso faz parte até (...) da proposta do grupo"

"Eu não gosto de cacos nos espetáculos. Eu odeio caco! O ator que vem botar caco nos espetáculos que eu dirijo, eu escroteio logo: '- Pode parar!'. Quando ator mete caco no espetáculo eu fico indignado."

"Eu sou mais daquele teatro sem muita sofisticação em termos de técnica. Eu quero assim: trabalhar com as pessoas, fazer as pessoas darem de si, passar uma emoção que a gente acha que é válido pra aquilo ali"

"E a gente vai aprendendo, com o tempo (...); se a gente quer realmente, a gente vai aprendendo com a experiência e tal. Eu tenho, assim, umas teorias (...) que é o seguinte com relação a cenografia - dou muita importância pra isso: só use em cena o que realmente for necessário e tenha uso prático (...), o mínimo possível; o mínimo necessário pra fazer construir a cena"

"Eu comecei a fazer teatro aqui em Belém, trazido lá de Icoaraci pelo Geraldo Salles. Trabalhei alguns anos lá no Experiência, na época que o Experiência era o Experiência, montou os seus grandes espetáculos - eu participei desse época toda. E o Geraldo me trouxe pra cá, me convidou. Meu primeiro espetáculo que eu fiz aqui em Belém foi em 71, (...) nem existia o Experiência ainda, era o grupo do SESC (...), patrocinado pelo SESC e tal... e a gente montou o espetáculo "Antígona", do Sófocles, na escadaria do teatro da Paz, aquela escadaria da entrada (...), e eu fiz o Tirésias"

"Uma coisa que eu gosto de fazer também é interferir no texto dos outros. (risos) Porque eu acho que a gente deve interferir, porque as vezes tem coisas no texto (...) que não tem mesmo que citar. Então, eu procuro modificar, manter a essência do texto, mas eu me dou essa liberdade; acho que eu tenho esse direito de mexer nessas obras, principalmente essas obras de clássicos que já são de domínio público. Eu gosto de mexer, adoro fazer isso, adaptar, dar uma cutucadinha aqui outra ali, cortar uma coisa, colocar outra"

"Hoje já se fala em teatro pós-dramático que era o que a gente já fazia aqui. Inclusive o Kil postou alguma coisa a respeito disso... quando ele chegou em São Paulo, ele fala pras pessoas que nós, lá na década de 70, 80 a gente já fazia teatro pós-dramático. "Cena Aberta" é um exemplo. Teatro pós-dramático é essa coisa que não tem que contar uma historinha (...) com início, meio e fim. Tudo bem, isso é válido. Mas o teatro que a gente fazia não era isso, eram coisas que se colocavam. Então, nós começamos assim"

"O ator diz uma fala e ele vai se deslocar até a casa do cacete... e a fala não morreu, ele dá a fala aqui e vai, vai, vai, vai, vai... e quando chega em determinado ponto ele continua com a fala, sem perder isso. Que no teatro é muito importante manter a pulsação do espetáculo; e isso depende do ator. Se o ator não souber fazer isso ele acaba com o espetáculo, fica uma merda, chatice total. (...) Então, como é que eu oriento isso com os atores em cena: é você não assistir nunca o espetáculo onde você está atuando. Se o ator assistir ele tá ferrado, acaba com o espetáculo. O ator em cena pensa que o público não percebe isso... percebe cara, é impressionante. Tem que manter aquele fluxo que eu chamo de linha dramática; manter aquilo... começou o espetáculo não pode quebrar; você tem altos e baixos, você tem curvas dramáticas, mas você não pode deixar quebrar isso em nenhum momento porque senão, fudeu, acaba-se o espetáculo. (risos) Tem que manter isso pra ter um desfecho lá, né, e a coisa terminar com uma pegada legal"

"Outra coisa que eu acho que é importante num espetáculo é o texto. Respeito muito o texto, no sentido de você trabalhar o texto, no sentido de você dizer o texto da forma mais impecável... isso sem descartar a emoção, claro. Mas o texto todo dividido, todo corretamente pausado - pausa, semi-pausa, os grandes silêncios, as modulações"

"Eu concebo o texto como se fosse uma partitura musical. Então, as palavras, as letras... cada letra é um fonema, cada letra é uma nota, tem um som diferente; se tu juntas essas letras, tu já tens uma palavra que já é a música. Então, eu trabalho o texto muito assim. Eu gosto de ver essa cor, eu gosto de ver a música... não falar cantando, porque o vício das pessoas é cantar o texto. É foda isso. Enquanto o espetáculo não toma jeito com relação a isso, eu não estreio o espetáculo!"

"Teatro da academia tem um certo ranço acadêmico; eu não sei te explicar direito o que, mas a gente percebe que o teatro que não tem nada a ver com a academia é meio diferente. (...) Não que eu tenha preconceito, eu não tenho preconceito... as vezes eu me recinto de assistir espetáculos da Escola - e claro é minha visão. Por mais que você vá como espectador comum, mas naturalmente tu observas com outro olhar"

"Se você for passar muita técnica pros atores ou se os atores forem muito técnicos eles acabam se perdendo e ficando robôs em cena e fica aquela coisa mecanizada que não emociona. Eu acho importante manter a emoção. Não é aquela coisa do cara incorporar em cena, não tem sentido isso. Você deve abstrair sem perder a consciência do que está ao redor. Pra poder passar realmente a emoção pro público"

"Eu não vou dizer: '- Olha: tens que fazer assim, assim, assim... não é desse jeito, é do meu jeito'. Não pode! Você tem que deixar a brecha pros atores criarem. Você joga um conceito, um caminho, seja lá o que for pro ator e deixa ele fazer. Eu sempre procurei me exercitar na hora que eu tô dirigindo dessa forma"

"Então, isso é uma prática que gosto muito de fazer. É tornar o texto útil - intelectualmente falando, politicamente falando - tornar o texto útil. Porque a arte pela arte há muito que não me satisfaz. Eu acho que a arte não serve pra nada, praticamente. Eu acho que a gente pode ter esse pensamento porque a gente vive num país de terceiro mundo, cheio de problemas. O que tu estás fazendo, num sei o quê, montando Brecht ali no teatro... cheio de concepções da Escola no Teatro ali, e tal... Pô, tem milhares de pessoas que nunca vão ter acesso ao que tu estás fazendo. Tu moras lá pelo Jurunas, tu sabes a realidade daqueles bairros - nunca viram, não tem acesso... E pra que tu estás fazendo essa porra? Vai mudar alguma coisa? Então, depois, muito tempo depois, eu me faço sempre essas perguntas e acho que todos deveriam se fazer essas perguntas: 'Pra quê? Por quê? Por que fazer? E pra quem? (...) Eu vou fazer pros burgueses dessa porra dessa cidade? Vou fazer aquele teatro burguesão e tal que enaltece esses valores ultrapassados da sociedade? Não. Pelo contrário. (...) Pegando Boal: ele dizia que 'teatro não vai revolucionar porra nenhuma, mas é um ensaio pra revolução'. Não a revolução de armas, claro. E eu sempre procurei passar isso pros meus alunos: revolução intelectual, revolução de consciência política, de cidadania"

"Essa coisa do diretor não assumir uma postura de deus, de dono da coisa. Porque ele não é dono de porra nenhuma da encenação. Ele tá ali pra coordenar, pra puxar coisas dos atores e até ajudar os atores a se transformarem como pessoas. Eu acho que a postura tem que ser essa"

"Então, eu acho que o diretor tem que se misturar com os atores. Eu gosto de tá junto, junto, junto... eu acho que o diretor tem que ter essa ideia, esse poder de que todo mundo brilhe. Eu quero que todo mundo brilhe, muito. (...) Todo mundo tem que estar no mesmo nível: do figurante ao protagonista, em termos de atuação. (...) Eu quero que os atores se apossem... quando eles se apossam eles são capazes de tudo"

"E pra terminar, eu não tenho nenhum rompante de intelectualidade com o meu trabalho. Eu gosto de falar de uma maneira simples a partir da minha experiência"

Henrique da Paz (1949 - 2021)

Ator e Diretor Teatral 

Belém, 26 de julho de 2012