A Cena em Movimento – Por Edson Fernando

10/11/2024

I Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica.

Montagem Teatral: "O Medo"

Edson Fernando[1]

No final do século XIX, pra ser mais exato no ano de 1895, o mundo conhecia a mais nova invenção que daria origem a sétima arte: o Cinematógrafo, aparelho capaz de projetar imagens em movimento em locais públicos. Naquela ocasião, os desenvolvedores desse novo aparelho, os irmãos Auguste e Louis Lumiére, realizaram a projeção pública de curtas-metragens para uma plateia atenta, e talvez estupefata, no Grand Café Paris. Nas décadas subsequentes este aparelho foi ganhando novos dispositivos, como o som sincronizado e as cores, que deixaram o cinema mais parecido com que nós temos hoje.

Diante dessa nova mídia áudio visual corria no imaginário popular que o Teatro teria os seus dias contados, suplantado por um meio tecnológico muito mais eficaz para contar uma história. Evidentemente, isso não aconteceu, mas certamente essas duas artes, semelhantes em alguns aspectos, tem desenvolvido, desde então, uma relação de mútua influência, seja no modo de interpretar, roteirizar e/ou dirigir a cena – influência do Teatro para o Cinema – ou na utilização de técnicas e recursos áudio visuais para o palco – influência do Cinema para o Teatro.

Um novo e mais recente capítulo envolvendo o Teatro e o áudio visual aconteceu no período da pandemia de Covid-19, nos anos de 2020 e 2021, principalmente. Diante da tragédia que assolou o mundo inteiro e que só no Brasil vitimou mais de setecentas mil pessoas, nós, artistas de Teatro, nos vimos impedidos de exercer a profissão, isto é, de praticar a arte do encontro. Restou-nos o ciberespaço como alternativa para produção de conteúdo artístico-teatral, respeitando o distanciamento social. Pelas redes sociais se multiplicaram lives promovendo os mais diversos eventos e as mais diversas formas de fazer/levar o Teatro pela internet.

Novamente se estabeleceu no imaginário popular que esses novos formatos testados, que aproximaram e imiscuíram Teatro e áudio visual, era um caminho sem volta, que a linguagem teatral, dali em diante, seria "renovada" com todos os recursos e procedimentos experimentados nesse período. "Sincronicidade" e "assincronicidade" eram problematizados e o conceito de "presença", tão caro a arte teatral, passou ao centro das discussões na tentativa de legitimar e compreender esse "novo modo" de fazer teatro, nesse novo não-lugar-físico que os experimentos teatrais passava a habitar. Essas premissas se concretizaram e realmente seguem aconteceu acontecendo até hoje?

Chegamos em 2024 e eu pergunto: quantos grupos da cidade de Belém do Pará seguem produzindo Teatro nesta perspectiva de interação com o ciberespaço? Quantos grupos seguem testando a linguagem teatral a partir da interação com a técnica áudio visual? A resposta pode ser poucos ou nenhum. E isso, a meu ver, se explica por um motivo muito simples: realizar esse tipo de experimento requer equipamento apropriado para captura, mão de obra com expertise na área, tratamento e projeção das imagens, cobertura de internet de qualidade, tempo, recursos financeiros e espaços, minimamente, adequados para realizar as apresentações.

É a partir desse brevíssimo preâmbulo, relacionando Teatro e áudio visual, que considero ousada ou ousadíssima a opção de encenação de Gutto Ferreira para a montagem "O Medo", sexto e último trabalho da I Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica. Além de ousada, também classifico como uma opção de encenação bem ambiciosa, pois, segundo a sinopse do próprio espetáculo, "O Medo é a primeira parte de um projeto que busca interligar as linguagens de Cinema e Teatro em espetáculos dinâmicos e imersivos." Vejamos, então, como observei as propostas que a montagem me apresentou.

O espaço de atuação se organiza num palco italiano dividido, praticamente ao meio na sua profundidade, por uma tela fina e transparente que vai do chão ao teto, de modo que é possível ver o que acontece atrás dessa tela e também as imagens que nela são projetadas. A plateia encontra-se dividida por um corredor ao meio e entre a última fileira e a porta de entrada do teatro diversos manequins despidos, alguns sem braços, me recepcionam com todo o teatro praticamente no escuro. Talvez haja uma música de fundo – não tenho certeza – que ajuda a instalar uma atmosfera de filme de terror.

Ainda na parte de fora do teatro, uma figura toda vestida de preto, capuz, capa preta, máscara branca e luvas com dedos grandes e pontiagudos, passeia e faz pequenas interações com o público; por sua aparência, vou chamá-la de Morte. Já no interior do teatro, essa figura é a primeira a cruzar o palco; vinda do corredor com passos sóbrios ela vai até o meio do palco, mas desvia da tela transparente, indo se refugiar na coxia pelo lado direito. Logo em seguida a personagem da "Menina" – vou chamar assim, pois não fixei o nome da personagem, me desculpem – também entra em cena vinda do corredor; ela, no entanto, atravessa a tela transparente, sobre uma pequena escada e se atira nos braços da Morte, que já se encontra lá atrás, e some.

Esses dois movimentos iniciais de cena me fazem, imediatamente, pensar em como a encenação desenvolverá a relação entre Teatro e Cinema e, por alguns instantes, sou levado a acreditar que esta relação será no nível da [interação] entre as linguagens, na medida em que a Menina parece rasgar a tela transparente e estabelecer um espaço borrado entre as duas linguagens. Mas, por outro lado, a Morte preserva a tela transparente, o que me deixa intrigado e ansioso para saber como tudo se dará: [interligação], como afirma a sinopse, ou [interação] entre as linguagens?

A fábula – ou seria o argumento? – escolhida e que me é apresentada no espetáculo me parece bem simples e até um pouco clichê – pra mim, nenhum problema quanto a isso: uma família, classe média, formada pela mãe, filha e Padrasto; a filha estuda em colégio de freira e parece se encontrar na idade da rebeldia e contestações sociais, além do fato de se sentir inconformada com a "morte" do pai; Mãe e Padrasto professam os valores conservadores da, convencionada, "família de bem" dos idos dos anos sessenta do século XX; o fantasma do perigo comunista me chega pelas ondas do rádio convocando para a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade"; A Mãe e o Padrasto parecem esconder sua verdadeira face: a primeira me deixa transparecer algo acerca do "desaparecimento-morte" do esposo, enquanto o segundo revela-se como abusador da enteada. Esse me parece ser o núcleo da fábula. A questão é: como a encenação organiza tudo isso para me mostrar e contar a história. E mais: como isso se estabelece na relação de interligação entre Teatro e Cinema?

Confesso que não tenho nenhum conhecimento técnico na área do Cinema e, por isso, não vou arriscar nenhuma reflexão técnica adentrando nesta seara. Minhas observações, portanto, quando se dirigirem a qualquer assunto mais relacionado a sétima arte se limitam a minha experiência enquanto espectador das salas de projeção. Bem, vamos lá.

A encenação, a meu ver, parece optar por contar a história na perspectiva da Menina. A história é contada aos pedaços e com grandes saltos temporais. Tudo que envolve a "morte" do pai é omitido, mas isso encontra-se reverberado na consciência da Menina. A cena principal que desencadeia os acontecimentos é mostrada duas vezes sob diferentes momentos dos mesmos acontecimentos. Vou chamar esta cena de "Mesa de Jantar" e nas duas vezes que é apresentada ela se passa na área de atuação situada a frente da tela transparente. Na primeira vez que ela é apresentada vejo a mesa de jantar posta, com o Padrasto e a Menina já sentados e a Mãe entrando, imediatamente, com o recipiente de comida a ser servida – macarrão com almôndegas, eu acho. Nesta primeira vez, a sequência dos acontecimentos se desdobra até o conflito entre a Mãe e a Menina, situação que desencadeia a internação compulsória desta última. Na segunda vez, me é permitido ver o diálogo que ocorre entre o Padrasto e a Menina na mesa de jantar, antes da entrada da Mãe. É somente sob esta sequência de acontecimentos que vejo o assédio e o comportamento malicioso do Padrasto para com a enteada.

A mise-en-scène de arrumação do espaço para ambas as cenas, me ajuda a perceber se tratar dos mesmos acontecimentos, vistos numa fração de instantes diferentes. A mise-en-scène dessas cenas é executada por uma pessoa que vou chamar de Contrarregra-Atuante, pois ela irá arrumar todos os objetos e elementos de cena de modo exageradamente teatralizado. A ideia me pareceu, exatamente, demarcar a mesma cena sendo repetida para que eu possa atentar para os possíveis elementos novos que surgirão e que irão desencadear a reviravolta nos acontecimentos. Ora, mas me pergunto por que fazer isso no plano das ações teatrais se a proposta da encenação é interligar teatro e cinema? Afinal o cinema consegue fazer isso de modo muito simples, a meu ver, recorrendo a edição e ao momento estratégico do corte de cena, jogo de montagem de câmeras sob outros planos de filmagem e/ou apresentação de ângulos diferentes – este último quando for o caso.

A encenação de Gutto Ferreira opta, no entanto, por fazer esse procedimento com cenas de Teatro que emulam procedimentos cinematográficos com a mise-en-scène de arrumação do espaço para a mesa do jantar, feita agora de trás pra frente, indicando que a cena está sendo rebobinada. Embora, esse procedimento de repetição das cenas possa exercitar algum jogo cênico, me parece uma proposta muito tímida e simples demais diante da ambição de interligar as linguagens do teatro e cinema em cena. Talvez fosse a oportunidade de brincar com a mesma cena da "Mesa de Jantar" sendo apresentada primeiramente na versão teatral e depois na versão fílmica, ou vice e versa. Isso – ou outra coisa mais experimental e ousada entre as duas linguagens – não ocorrendo, me dá a sensação da falta de aprofundamento da proposta da encenação. Então, sou levado a pensar: o que significa [interligar] teatro e cinema? O que se pretende interligar são as linguagens ou somente a história que está sendo contada? Se a interligação é somente da história e essa, por sua vez, é predominantemente contada por meio da linguagem teatral – vide preponderância das cenas de teatro sobre as projeções audiovisuais que são apresentadas – o cinema se torna mera ferramenta a serviço do teatro?

O uso das projeções de imagens na tela transparente pode oferecer outro dado importante que me permita verificar a proposta da encenação de interligar teatro e cinema. A mais significativa, no meu entender, ocorre para indicar o estado de fragilidade mental-emocional da Menina quando ela já se encontra no período de internação. Neste caso, o modo como a encenação organiza o encadeamento das cenas, alternando cena de teatro e projeção audiovisual me leva a acreditar que o vídeo é utilizado como recurso a serviço da ênfase dramática que se pretende extrair, ou seja, o estado de medo e confusão mental da Menina. Portanto, sou levado a concluir que o vídeo projetado é utilizado como ferramenta a serviço da história, predominantemente, contada nos limites da ação teatral. Então, em que medida a encenação articula a linguagem cinematográfica para com ela compor a experiência do espetáculo "O Medo", pois a projeção de vídeos em salas de teatro há muito já vem sendo utilizada em função da própria linguagem teatral. Penso que essas são questões fundamentais para dimensionar as expectativas e responsabilidades que a própria encenação coloca em torno de si.

Ademais, como já mencionei anteriormente, trabalhar com audiovisual requer mão de obra e equipamentos adequados, recursos financeiros e tempo para apurar e tratar o material capturado. Venho insistindo em dizer da necessidade de se pensar a infraestrutura e planejamento para produção dos espetáculos das práticas de montagem do Curso Tecnológico de Produção Cênica. Uma proposta de encenação que objetiva trabalhar com a linguagem do cinema precisa dimensionar a capacidade de exequibilidade do projeto.

Neste sentido, sabemos da situação precária e de sucateamento que vem passando as universidade e IFES por todo Brasil nos últimos anos. A ETDUFPA e o Teatro Cláudio Barradas não fogem a essa regra. Então, a proposta de encenação de "O Medo" também se vê prejudicada neste aspecto na medida em que pretende oferecer uma experiência imersiva, mas conta, por exemplo, com equipamento de som que gera interferência de ruído sonoro vazando durante quase toda a apresentação. É uma questão básica que precisa ser pensada e decidida no início do processo sob pena de ter que administrar o caos a beira e durante as apresentações.

E falando da experiência imersiva, outros elementos contribuíram para enfraquecer a minha. Sinceramente, eu até me deixei envolver pela atmosfera de suspense do início do espetáculo – sou uma pessoa bem medrosa que se assusta e se deixa impressionar facilmente –, mas a barra de navegação na projeção de tela que ficou visível desde o início do espetáculo causou uma quebra muito grande na minha imersão, pois eu não consegui parar de olhar para todos os ícones dos aplicativos dispostos ali embaixo.

Outro elemento que me provocou ruido e me tirou da imersão é o trabalho dos contrarregras. Não me refiro especificamente a pessoa que fez o Contrarregra-Atuante, mas sim aos outros dois que também executam tarefas no palco, mas com uma operação completamente diferente daquele, isto é, agem no plano operacional das ações neutras. Então, quando isso ocorreu em cena, imediatamente, fiquei procurando sentido para dois contrarregras se comportarem de um modo e o outro se comportar completamente diferente.

Por fim, também fiquei me perguntando que tipo de atuação/representação a encenação de Gutto Ferreira conduziu junto ao seu elenco, ou melhor, que tipo de atuação-representação seria a mais adequada para uma proposta que pretender interligar duas linguagens que, neste aspecto específico, são muito distintas?

São questões que compartilho no intuito de colaborar com o ambicioso projeto de Gutto Ferreira, pois percebo nele a possibilidade de se experimentar muitas coisas interessantes na fronteira entre as linguagens do Teatro e do Cinema. Fronteira que se pode borrar para se extrair dela o melhor de ambas as linguagens, sem subjugar nenhuma delas.

Evoé

Belém, 10 de novembro de 2024

[1] Ator e diretor teatral; coordenador do projeto Tribuna do Cretino;

Ficha Técnica

Montagem: "O Medo"

Elenco:

Marina di Gusmão

Krystara Monteiro

Hernand Louzada

Sinopa

John Luz

Dramaturgia Original:

Gutto Ferreira

Direção Musical:

John Luz

Direção de Artes:

John Luz

Direção de Iluminação:

Gutto Ferreira

Figurino:

Dilcéa Ferreira

Maquiagem:

Lariih Paes

Efeitos Práticos:

Josué Pantoja

Leila Pantoja

Direção:

Gutto Ferreira

Codireção:

John Luz

Produção:

Gutto Ferreira

Apoio Técnico:

Daniel Mozart