A cor ecoa – Por Karimme Silva.

03/07/2019

Montagem teatral: Manifesto Pauta NegrA.

Montagem: Grupo de Teatro Universitário - GTU/UFPa (2018)

Karimme Silva[1]

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

Desconforto. Eis a palavra que resume as primeiras cenas da montagem Manifesto Pauta NegrA, resultado do processo encenado pelo Grupo de Teatro Universitário - GTU/UFPa. O espaço cênico é reduzido, mostrando certa proximidade entre as atuantes e o público. Formado exclusivamente por mulheres, o grupo levanta pautas referentes ao racismo e ao preconceito, não somente da mulher negra, mas da mulher lésbica e trans. São narrativas carregadas de mulheres fortemente presentes em cena, criando um eco vocal e de danças que consegue preencher todo o ambiente. O início da montagem evidencia a crueldade física e mental que estas mulheres costumam absorver. É teatro, mas é real. Não há nada de entretenimento.

O elenco é extremamente hábil em diferenciar opressores e oprimidos no espaço cênico. Há a violência verbal e física, representada por duas atuantes de máscara. Quando a pele é negra, as máscaras sempre são brancas. Duas atrizes realizam a árdua "tarefa" de agredir uma companheira de cena, puxando seus cabelos e xingando, como se a agredida representasse um animal. Com uma máscara remetendo à figura de Anastácia, a atriz exprime toda uma pulsação corporal de quem sofre, mas resiste. É uma cena difícil, tanto pra quem executa quanto pra quem assiste, mas viver isso na pele (ou por causa dela), faz com que se redimensionem as expressões.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.

Algumas cenas debatem outras questões estéticas, juntamente com a cor da pele: o peso e o cabelo também são formas das mulheres se sentirem oprimidas; se não seguem um chamado "padrão", não são aceitas. Mas o que é ser aceito em um país onde a cor da tua pele já te põe em um nível de desigualdade enorme? Política, crime, trabalho, renda: onde quer que se perceba, pessoas negras e brancas parecem viver em dois países completamente diferentes. "Não existe racismo no Brasil..." e outras falácias absurdas estão aí, junto com a desigualdade, as mortes, as agressões e os preconceitos. Ser mulher, negra, lésbica/trans e amazônida é estar nesse contexto.

A peça explora tanto as narrativas pessoais das atrizes quanto os relatos de jornais, as estatísticas de assassinatos e se utiliza disso para gerar no público o mesmo efeito: feche os olhos e imagine que neste momento há uma criança negra sendo estuprada. Difícil imaginar, né? Mais difícil ainda é estar nesse lugar. O público é confrontado a todo momento, não apenas pelas narrativas e cenas, mas pelo espaço reduzido e a iluminação que gera esses estados. 

 

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida 
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

Destaco três momentos da montagem:

  • 1) O trabalho de corpo realizado pela atriz Iris da Selva. É possível perceber ações muito bem demarcadas, que iniciam com o corpo da atuante no chão, se expandindo em potência até que ela se coloque de pé e o momento em que defronta o público: "A culpa não é minha. A culpa é de vocês. A vergonha é de vocês. O medo..." Medo, vergonha e culpa são para quem sustenta o preconceito. A atuante compõe também a trilha sonora do manifesto. São mulheres que tocam, cantam, compõem. A força da montagem e o seu eco também residem no som.
  • 2) A cena onde as atrizes Daisy Feio e Dalila Costa rememoram suas vidas, falando das relações com suas mães. Um balanço colocado em cena confere a ela um caráter lúdico. Memórias de mães e filhas, de mulheres que se sustentam e se fortalecem nas relações familiares e afetivas. As memórias desnudam-se como ato de resistência.
  • 3) A cena final, na qual todas as atrizes dançam e dispõem seus corpos enquanto estrutura de um elemento maior, a figura da árvore. A atriz Tertuliana Lopes impõe-se como uma potente figura: a matriarca, a guardiã de todas as outras. Neste final, percebe-se o quanto o conjunto se integra, não só a nível de narrativas ou das vivências enquanto mulheres negras, mas em um sentido técnico, onde todas são raízes e seus corpos juntos encarregam-se de compor visualmente e simbolicamente, uma estrutura ainda mais forte, como uma potência em ato, uma força de existir. São organismos que possuem a capacidade de se manterem unidos, regenerarem-se e agirem em conjunto. Assim mostram-se as atuantes. Elas existem e resistem juntas.

Há que se mencionar e destacar a ação do Grupo de Teatro Universitário - GTU 2018 de propor e realizar uma ideia de encenação com uma equipe composta exclusivamente por mulheres negras. Este recorte se faz necessário do lugar de onde as atuantes vêm e onde estão. É de onde se valida e se sustenta o discurso. Pauta NegrA ainda vai além disso. É um manifesto de vozes em conjunto que precisam ser gritadas, escancaradas, cuspidas. De tantas vozes que gritam todos os dias em vários lugares. É um manifesto potente, urgente, extremamente necessário. É sobre o desconforto real e diário de muitas mulheres negras. E uma resposta na cara de muitos focinhos brancos.

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.

03 de Julho de 2019. 


[1]Psicopedagoga, Atriz formada pelo Curso Técnico em Ator da ETDUFPA, artista-pesquisadora e mestranda do programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES/UFPA).

Referência

EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

FICHA TÉCNICA

Montagem teatral:

Manifesto Pauta NegrA

Elenco:

Carla Baía, Daisy Feio, Dalila Costa, Iris da Selva, Ka Diaz, Julliana Matemba, Lorena Bianco, Penélope Lima, Sarah Prazeres, Thais Squires, Tertuliana Lopes, Sidiane Nunes e Silvana Cruz.

Concepção e encenação:

Ingrid Gomes

Dramaturgia Coletiva

Figurino:

Lenilce Baía e Marina di Gusmão

Preparação Corporal:

Assucena Pereira

Composição Musical:

Iris da Selva e Julliana Matemba

Sonoplastia:

Carla Baía, Daniella Gatinho, Iris da Selva, Julliana Matemba e Ruht Silva

Cenografia:

Camila Sousa e Winnie Buendía

Iluminação:

Natasha K. Leite

Comunicação:

Daisy Feio, Ingrid Gomes e Tarsila França.

Fotografia e Arte de divulgação:

Tarsila França

Concepção Coreográfica:

Carla Baía

Apoio:

ETDUFPA

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