A Deusa e o Barro – Por Edson Fernando

18/01/2018

Montagem Teatral: Verparacuri.

Resultado cênico realizado pelo Prêmio de Pesquisa e Experimentação Artística/Edital Seiva 2017, edital do governo do estado do Pará.  

Edson Fernando[1]

O mito da criação, na tradição judaico-cristã, me ensinou que o homem foi criado por Deus a partir do "pó da terra". Essa expressão que aparece em Gênesis 2:7, me incitava a imaginarDeus como um cara super legal, uma espécie de gigante "descolado" e cheio de alegria brincando de modelar bonequinhos de barro no meio do paraíso - mesmo depois de sete dias exaustivos de trabalho. Eu imaginava um monte de bonequinhos de barro, nus e enfileirados esperando pra receber o bafo milagroso que lhes daria vida. O gigante Deus, com aquela cara de moleque sapeca, saia então, distribuindo baforadas colocando todos, imediatamente, num frenesi de causar inveja aos sátyros mais abusados da Grécia. Isso sim era o paraíso: todos os homens nus se refestelando com o gigante Deus. Só ficava encucado com o fato dele não ter feito logo as mulheres do barro também, pois ai sim a farra, no meu entender, seria completa. "- Mistério divino!", exclamava Papai com aquele ar de quem sabe muito mais coisa, mas não pode contar.

Depois, com o passar do tempo e com as sessões dominicais de histórias bíblicas que Papai fazia questão de contar, fui descobrindo que o gigante Deus não era um cara TÃO legal assim. Quando a ressaca provocada pelas pingas de sábado permitia, Papai nos colocava deitados na rede - eu, minha irmã e meu irmão - e contava as peripécias do Deus do antigo Testamento, fazendo questão de interpretar a voz de todos os personagens com toda a pompa de um canastrão: "- Expulsou a humanidade do paraíso; jogava pragas e maldições terríveis; punia as pessoas exigindo que comessem a carne dos próprios filhos; mandava apedrejar até a morte quem descumprisse seus preceitos; ordenava a mutilação de animais em seu nome", dentre outras coisas que a memória não me permite mais recordar.

É claro que havia, naquelas sessões dominicais, o desejo de Papai de nos ensinar a moral dessas histórias, mas o que ficou marcado na minha memória foram as performances histriônicas de meu pai - acho que Papai foi o primeiro ator de teatro que conheci - e a cara de moleque sapeca de Deus modelando os homenzinhos de barro. É essa expressão, ainda inocente de Deus, que observo e identifico na atuante Vandileia Foro em sua mais recente montagem teatral intitulada Verparacuri. No caso de Vand - espero ainda ter intimidade o suficiente para chamá-la assim - a expressão de menina travessa levada da breca, de menina que vai brincar de ser Deusa, é recorrente ao longo da montagem e me permitiu a lente pela qual irei tecer minhas considerações cosmogônicas.

Cosmogonia do Barro

Na ontologia da roda do oleiro proposta pela Deusa Foro, criador e criatura estão imiscuídos e nascem da mesma matéria: o Barro. O mistério fica por conta do movimento que faz a roda girar e gerar todas as coisas a partir exatamente desse elemento originário. Trata-se de uma consubstanciação imanente substituindo a tradicional visão dicotômica transcendental entre criador e criatura. Desse enlace primordial o Barro se fez Deusa e a Deusa se fez matéria. A roda do oleiro gira, o Barro dança em contorções assimétricas, lentamente vai dando forma aos contornos do corpo da Deusa. Aos poucos é possível ver o sorriso maroto da divindade recém nascida demonstrando seu desejo por travessuras cada vez maiores, e elas não tardam em acontecer. Primeiro mistério revelado: todos os deuses gostam de brincar, mas alguns, definitivamente, esqueceram-se disso, pro nosso infortúnio e infelicidade.

É hora de brincar de contar histórias, narrar os fatos memoráveis de todo o panteão dos deuses da linhagem do Barro: Mestre Djalma - conhecido como Figura -, Rosemiro Pinheiro Pereira, Mauro Pereira, Eliene Pereira, José Anísio, Raimunda...

São tantos que mal dá tempo de contar todas as façanhas destes mestres imortais que compõem a cosmogonia do Barro. É neste momento, então, que descubro a razão pela qual a Deusa carrega na face uma satisfação indisfarçável que se confunde com orgulho e brio: ela, assim como os mestres imortais do Barro, é natural da Vila Sorriso, o primeiro paraíso criado em nosso planeta. Segundo conta a tradição milenar, os habitantes da Vila Sorriso possuíam rodas no lugar dos pés; deslizavam suaves e felizes de um canto a outro do paraíso, deslocamento deleitoso que ocasionava sempre o largo sorriso na face - daí o nome do paraíso ser batizado de Vila Sorriso.

De repetente a brincadeira muda, as águas se abrem e um grande igarapé invade o espaço. Segundo mistério revelado: os deuses morreriam de tédio se brincassem sozinhos. Logo a Deusa convoca seu Gênio para a brincadeira às margens do igarapé. E como duas crianças peraltas, brincam de fazer chuva arremessando as águas até o céu, correndo de uma margem à outra do igarapé enquanto o toró não desaba. Essa brincadeira não poderia ser em outro lugar, pois é na margem do igarapé que a Deusa se reencontra com sua origem: a argila, o Barro. E onde brincam os deuses, brincam os homens. Então, logo sou convocado pra entrar na brincadeira e até consigo gerar minha própria tempestade, dando satisfação e alegria à Deusa e ao seu Gênio.

Enquanto brinco de ser deus fazedor de chuva, a Deusa coleta, sorrateiramente, às margens do igarapé, uma boa quantidade de argila para esculpir amuletos, presentes que deixará para a humanidade como forma de nos lembrar de nossa imanente origem divina. Quando, então, eu retorno da margem do igarapé, avisto a Deusa absolutamente prenha de seus presentes; seu útero gesta uma infinita variedade de objetos de Barro que vão sendo cozidos com o calor do fogo de suas entranhas. E a mãe Deusa se despede presenteando-nos com seus brinquedos de Barro. Terceiro mistério revelado: os deuses não pariram a humanidade, mas os brinquedos de Barro que carregam o sortilégio da felicidade.

Outras Considerações

A montagem teatral Verparacuri é o resultado cênico realizado pelo Prêmio de Pesquisa e Experimentação Artística/Edital Seiva 2017, edital do governo do estado do Pará. Nela, Vandileia Foro articula, no meu entendimento, de modo transversal a contação de história, o teatro de formas animadas, a performance e uma atuação energética (?). Embora suspeite que o teatro de formas animadas tenha sido eleito como o eixo estruturante da montagem, acredito que não há primazia dessa linguagem sobre os demais elementos supracitados, pois do contrário seria forçoso admitir a existência de uma dramaturgia e/ou roteiro dramatúrgico fundamentado tão somente no teatro de formas animadas. Se assim fosse, a contação de história, a atuação energética e o flerte com a linguagem da performance se veriam prejudicados em momentos determinantes da montagem. Ao invés disso, a montagem agrega dialética e transversalmente esses elementos, articulando-os ora em função de um ou de outro elemento. Observo, no entanto, que esta articulação transversal deixa a montagem com um ar esquálido, sem saber em que direção se orientar para estabelecer o andamento, ritmo e temperatura das cenas e das passagens de cena. O mesmo se dá para a dosagem de energia e vigor dos atuantes em cena. Não se trata de exigir que a montagem se defina categoricamente como teatro de formas animadas, contação de histórias ou performance - lembremos que os gêneros e as linguagens não são puros e estanques -, mas de observar como o jogo entre esses elementos requer uma alquimia de energia, estilo e linguagem que retroalimente a todas às transversalidades que a montagem abriga. Negligenciar esse aspecto, no meu entender, é deixar a obra susceptível à tendência contemporânea permissiva e indulgente que domina a arte neste início de século XXI.

18 de Janeiro de 2018.


[1] Ator e diretor teatral. Coordenador do Projeto de extensão TRIBUNA DO CRETINO.