A gota d’água para o coração transbordar (de quê?): memorial sobre o teatro como forma disparadora de recordações - Por Arthur Ribeiro

27/12/2018

Montagem teatral: Gota d'água: a voz que me resta

Arthur Ribeiro[1]

"Deixa em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa...", é o que diz a metáfora da canção, emulando o eu-lírico em sofrimento amoroso, herdeiro das cantigas galegas de amor, a imputar à amada o duplo poder de sedução e tirania. Discurso, aliás, recorrente na música popular brasileira, até hoje muito dada a romantismos transmutados em vassalagem. Mas, do medievo provençal ao pop atual, o personagem sofredor é pura licença; excetuando estados patológicos, nem só de mágoa se enche um coração. Na verdade, nada se constitui de apenas uma coisa, sendo as experiências mais comuns uma mistura de prazer e medo, solidão e liberdade, rancor e ironia. Talvez a expressão mais adequada dessa duplicidade humana se encontre em outra obra do cancioneiro nacional, um poema de Ferreira Gullar que Raimundo Fagner musicou: "uma parte de mim pesa e pondera, outra parte delira... uma parte de mim almoça e janta, outra parte se espanta..."[2]. Por sinal, uma poesia/canção que propõe uma pergunta-chave para a compreensão da vida, de modo geral, e do ofício do artista, em particular: "traduzir-se uma parte na outra parte, que é uma questão de vida ou morte; será arte?". Eu creio que sim: uma tradução misteriosa e vital, em que forma e conteúdo se fundem, gerando fluxos de sentidos e leituras inauditos. E que curioso notar que uma mensagem pode se revolver diferentemente a olhos e corações diferentes, que belo notar que um discurso que pende na aparência a uma parte pode traduzir-se na outra parte; entra em cena o leitor, esse outro personagem, que molda à sua maneira o poema, a canção ou o espetáculo, a partir de seu lugar e sua história no mundo. Em outras palavras, como diz Annie Rouxel em algum lugar, "são os ecos entre certos aspectos (às vezes secundários, às vezes ínfimos) da obra (...) e a realidade de sua vida cotidiana que dão valor à sua leitura. Muitas vezes trata-se de um encontro casual, de uma coincidência, mas isso é suficiente para dar sentido à leitura e à vida".

Eu poderia tentar falar de Gota d'água: a voz que me resta naquele tipo de frase padronizada que a gente acha que a crítica pede: é um espetáculo resultante de disciplina de Prática de Montagem de turmas dos cursos técnicos da Escola de Teatro, com duas horas de duração, dirigido por Paulo Santana e Marluce Oliveira... ora, mas para quê insistir nesse enquadre racionalizante, que dá a impressão de se estar jogando cartas com a obra, análise fria que parte de categorias supostamente bem definidas ante o real? Se não é a partir disso, e sim pelo caminho da divagação com que abri este texto, que apreendo o espetáculo? Não é por seus significados no plano da encenação que o belíssimo e consagrado texto de Chico Buarque e Paulo Pontes, o formato do palco em corredor, a qualidade das interpretações mais ou menos convincente, pautam minha leitura. Esses aspectos ressoam em mim, recuperam memórias arquivadas, desatam nós subconscientes e, por meio de seus aspectos "às vezes secundários, às vezes ínfimos", me transportam dali para um outro tempo e lugar; mais exatamente, para a passagem do ano de 2012 para 2013, quando participei eu mesmo de uma Prática de Montagem, o primeiro espetáculo importante no qual estive.

Eram os já citados Paulo e Marluce que, na época, estavam incumbidos de levar a cabo o espetáculo. E é como se eu pudesse ver diante de mim os dois, ele com sua energia comburente, quase grosseira, rodeando a ação como urubu faminto, sempre a pedir mais e mais dos atores até a exaustão; ela, com seus olhos atentos e certeiros, deixando a cena correr livre, mas aproveitando oportunidades mínimas para se aproximar e, em poucas palavras, ajustar o rumo da interpretação ou da movimentação. Vejo o Paulo na sala de ensaios, ao redor das atrizes que tentam conter uma alucinada Joana em sua primeira explosão de ódio, gritando por mais vigor dos corpos, clamando pelo peso e pela urgência das vozes; vejo a Marluce, no outro extremo do palco, orientando os diálogos entre Creonte e Jasão, procurando o grau certo do cinismo de um e de outro. E me lembro de quando ensaiávamos Um certo faroeste caboclo em 2013, do João do Santo Cristo sendo seduzido pela prostituta Madalena, ou sendo estuprado na prisão, enquanto Paulo pedia realismo até às raias do exagero nos toques eróticos, na interação violenta; e Marluce discretamente observando as cenas entre João e Maria Lúcia, pedindo para ser mostrado o amor que eles declaravam nas falas. Que experiência ser dirigido por esses dois! A gente sofria sem deixar de se divertir, aprendia mais sobre nós mesmos sem perder o contato e o cuidado com o outro. Traduzir-se uma parte na outra parte...

Passa por mim uma jovem atriz do jovem elenco, aliás, um dos mais jovens que já vi em cena (éramos tão jovens assim em 2013, meu Deus?). Não sei se são seus gestos coreográficos lançados em direção ao público, ou seu cabelo tingido de vermelho vivo, ou simplesmente sua aparência longilínea, que me afogam de novo em meio ao numeroso elenco feminino de Um certo faroeste caboclo, e sorrio pensando no tempo que devemos ter gastado a cortejar uns aos outros, seja no camarim antes das apresentações, seja nas saídas depois delas. O perigo iminente de se apaixonar, a irresponsabilidade e a inconsequência contrastando com a vaidade, a sensação de brilho, a celebração de nosso primeiro espetáculo "sério", nosso primeiro "sucesso". Traduzir-se uma parte na outra parte...

E claro que era o Zé Maria no violão. O mesmo Zé que conheci em 2012, passando de voz em voz com aquela primeira canção composta para o espetáculo... como era mesmo? Estou indo, encanto meu... já vou tarde, encontrar alguém... vou tão cedo pra quem não tem a resposta pro que perdeu... ele gostou das nossas vozes. Sempre nos chamava para aperfeiçoar nossos solos, em que eu compartilhava meu corpo, a Roseany Karimme carregava a carne dura de rachar sobre a sandália de plástico, a Isadora ou a Thainá sentiam o vento entrando calmamente. Tudo sob os olhares admirados dos ouvintes. E agora venho assistir Gota d'água e me surpreendo ao ver como ficou bonito essa turma toda cantando a Rosa dos ventos, a Flor da idade, o ponto de Oxóssi. Quem canta bem são eles! O Estou indo, encanto meu parecia tão bonito, e hoje parece tão bobo, sem deixar de parecer bonito... Traduzir-se uma parte na outra parte...

E sigo acompanhando Gota d'água. Os personagens vão desfilando diante de mim, e não deixo de rir diante das interpretações mais tolas. São os gestos desconcertados do aspirante a galã, o andar trôpego fingido do bêbado, a vizinha que toda hora pede da plateia uma ajuda que nunca temos chance de dar. Mas meu riso não é de troça; ele vem da lembrança das tolices que também fizemos nas temporadas do Faroeste. Como não rir daquele dramalhão gratuito do reencontro de João e Maria Lúcia? E o esforço vão pra mostrar a dor e o sangue que não havia na cena final? Isso para não falar das músicas que "esquecemos" de coreografar, pondo-nos a interagir a esmo... mas eu me acostumava também a fingir que nada daquilo acontecia, e aproveitar ao máximo os momentos nos quais eu me sentia dando tudo de mim, unindo com método a ação física e a vocal, sendo artista. E, naturalmente, Gota d'água também traz esses momentos, como Creonte a despejar seus preconceitos em forma de análise sociológica, ou Joana e Jasão confrontando suas subjetividades na arena doméstica. Eu me vejo neles, fazendo novamente a cena do retorno de João após a temporada na prisão, esmagando o camburão com a fúria do destemor; levando uma vez mais o dinheiro roubado da igreja para a mãe comprar carne, e enfrentando a vergonha encurralada dela. Duas cenas pelas quais meus colegas me aplaudiram tanto... deixando por menos as banalidades dos intermédios, afinal, todo mundo tinha uma parte opaca e outra parte brilhante. Traduzir-se uma parte na outra parte...

Foram essas mirações que embalaram meu transe diante do espetáculo. Peço desculpas se parece que não o assisti de fato; certamente meus leitores mais assíduos não reconhecerão nesse texto a exegese que costumo fazer das coisas que assisto. É provável que esta crítica não permita à equipe de Gota d'água pensar sobre todo o investimento que puseram na obra. Mas espero que reconheçam aqui um espectador tocado por ela, mesmo que desse jeito "atônito, ainda que tarde"... Esse memorial afetivo não seria possível sem o trabalho de vocês. Só me resta pedir: não deixem em paz meu coração! Ele é um pote até aqui de muitas coisas... e sempre pode ser que alguma delas esteja esperando, precisando, pedindo, uma gota d'água para transbordar.

27 de dezembro de 2018.


[1] Ator e professor de Português; Colaborador do projeto TRIBUNA DO CRETINO.

[2] Devo à Dani Franco a lembrança dessa canção. 

Montagem Teatral:

Goata D'água - A Voz Que Me Resta

Montagem: Turma do 2º Ano / Cursos Técnicos da ETDUFPA (Cenografia, Figurino e Ator)

ELENCO
Joana: Penélope Lima, DamiseVanessah e Mariane Malato
Jasão: Athos Brenno, Enoque Marinho e Igor Juan
Creonte: Caio Cezar Dias e Filipe Marques
Egeu: Mariana Morhy e Jordan Navegantes
Alma: Karla Almeida e Duh Mebarak
Corina: Lays Portela
Cacetão: Jam Bil e Andrew Monteiro
taNenê: Kárita Almeida e Vanessa Farias
Estela: Assucena Pereira e DuhMebarak
Zaira: Mariane Malato e Diana Lins
Maria: Damise Vanessah e Filipe Marques
Boca Pequena: Penélope Lima e Enoque Marinho
Amorim: Athos Brenno e Hugo Corrêa
Xulé: Igor Juan e Jordan Navegantes
Galego: Andrew Monteiro e Hugo Corrêa
CORO
Penélope Lima, DamiseVanessah, Mariane Malato, Diana Lins, Caio Cezar Dias, Filipe Marques, Mariana Morhy, Jordan Navegantes, AthosBrenno, Enoque Marinho, Igor Juan, Karla Almeida, DuhMebarak, Lays Portela, Jam Bil, Andrew Monteiro, Kárita Almeida, Vanessa Farias, Assucena Pereira, Hugo Côrrea.

Preparação de Atores, Direção e Encenação:
Marluce Oliveira e Paulo Santana

Assistentes de Direção:

Claudio Raposo, Joyse Carvalho e Marta Teixeira

Concepção e Direção Coreográfica:

Carol Gama

Concepção Musical/Direção:
José Maria Bezerra

Músicos:
Pedro Miranda Júnior (violão, guitarra)

Orientadores de Visualidade:
Beto Benone e Micheline Penaforte

Cenografia:
Winne Rodrigues Freitas, Leonardo Pontes e Paulo Rocha.

Assistentes de Cenografia:
Marcus Cesar, Ysamy Chachar, Manoel A. Costa da Silva, Farid Zahalan, Lucas Belo, Josué Rente e Max Alexandre dos Santos.

Figurino:
Nanan Falcão, Paula Rocha, Sônia Santos e Tatla Mokdei.

Assistentes de Figurino:
Bonelly Pignatário, Dani Franco, Elisangela Teixeira e João Paulo Pereira.

Fotografia:
Danielle Cascaes