A Selvageria da vida: 66% em 2017, 75% em 2018, 78, 6% em 2019. Até agora! – Por Matheus Amorim

23/09/2019

Montagem teatral: Zeca de Uma Cesta Só

Montagem: Zecas Coletivo de Teatro

Matheus Amorim[1]

Mas quem é o pobre mesmo? Talvez essa seja uma das maiores perguntas a que Zeca de uma Cesta se propõe a responder. Quem é esse ser possuidor de uma vida subalternizada desde o ventre até a cova? Margem? Sombra? Coisa? Por onde começar? Não é difícil de responder quando esse recorte é a camada mais evidente em uma sociedade tão hegemônica quanto a nossa, sociedade esta que possui traços tão colonizados quanto sua tentativa de fuga.

O espetáculo que chega à seu quinto ano de temporadas não perde a força de sua história e trajetória, sua popularidade nos palcos da grande Belém e fora não é por outro motivo se não por uma realidade retratada em cena. Não é incomum olhar para o público durante as sessões e perceber o alcance da vida de Zeca nos olhares de identificação que gritam para dentro da boca de cena. Mas o que há de tão chocante nessa realidade que à tanto se perpetua?

A obra teatral conta com uma costura que poucas vezes alcança um efeito tão cativante em espetáculos teatrais, existe uma espécie de sobreposições entre o tempo cronológico e psicológico da protagonista, narrado por um olhar externo que tudo indica ser o de quem está para ver; o espectador, que possui os fins da trama, as quebras, as repetições, tudo é muito didático nessa contação, mas ao mesmo tempo essa alçada move uma espécie de inquietação: "Eu estou escolhendo me deparar com isso novamente?" "Que merda! É isso mesmo!".

A cada ato que rebobina e destrincha uma memória da história de Zeca, mulher negra, mãe, interiorana e empregada doméstica sem estudos, parece haver um peso que puxa a margem cada vez mais para o centro da facada.

Existe uma agonia instaurada, uma crueldade. Comam, bebam, riam, pois esse é o ciclo, uma hora o cartão do qual já nem se lembram, fará o papel de juiz e os levará a uma fala que questionará seu entretenimento; até que ponto "a selvageria da cena, não é a selvageria da vida?". Entre os estereótipos propositais e fortemente marcados pelo carrão chefe do espetáculo; o recorte de classes sociais, algo que nos escapa e insurge por intenção, ou melhor, nos empurra à nos depararmos de frente com um fato! Estamos vivendo a trama! Isso nos impede de tornar o ato meramente ficcional. O chão em que Zeca de Uma Cesta Só decide dançar é extremamente sinuoso.

A realidade do ser pobre é visceral neste trabalho, mas o que atravessa o discurso da obra aqui é seu olhar racial, não existem reticências, estamos falando de gente preta na ficção e estamos retratando com gente preta na vida real. Até onde o patrão negro não é tão vítima desse sistema quanto sua empregada? Não sejamos tolos, nesse ponto é impossível não perceber onde estão os privilégios, mas o que de fato pulsa é a percepção de que não há posição confortável contra a soberania do estado a não ser que você o seja, enquanto agente consciente ou marionete. Todos aqueles que decidem abortar por meio do questionamento o mérito, o reverso e o vitimismo, apontando as reações de represálias do (cis)tema a sua volta acabam por estar diante de uma política pautada na morte.

O racismo é a manutenção de uma política que dita quem morre e quem vive. Mesmo em suas instâncias menos propositais, Zeca de Uma Cesta Só está falando e dando uma aula sobre Biopoder, apontando que mesmo em sua "unidade" o pobre possui bifurcações biológicas, étnicas e culturais mediante as relações que categorizam sua funcionalidade entre a manutenção do poder e a zona de descarte. E essa discussão está longe de ter um fim, distante de se concluir pela via da arte, ou do teatro mais especificamente. Contudo enxergar essa pauta cada vez mais frequente no discurso de nossa sina é algo que não pode ficar apenas em Zeca.

Para além disso, é necessário contaminar-se por um teatro menos centrado na ideia do estar para ser visto e apontar um fazer inquieto e micro revolucionário, uma arte de guerriilha, encontros que gerem motim! Estamos falando de um teatro de reação emergente, porém não seremos todos! É uma ilusão esse querer, mas que hajam uns resistentes ao fazer do pão e circo burguês.

E aqui talvez surja um burburinho de bilheteria: por que nosso público é na sua maioria, para nossos coletivos, companhias e grupos locais, apenas família, amigos ou quem já faz teatro nesta cidade? Por que nosso teatro só lota quando temos caranguejo de fora? O que nos falta? nos falta algo?

Não! Mas questiono que há uma corrida acontecendo. A corrida das contemplações para cumprir projetos e programas do estado e de empresas privadas, onde os contemplados e espectadores são uma pequena parte muito bem definida por sua pressa que já se amontoa em filas de espera! Não há fim!

Tecnicamente não há do que se insatisfazer em Zeca de Uma Cesta Só, a não ser por seu desfecho que deixa um silêncio absurdo no final! Sinto que Zeca possui muitas bordas reflexivas que se desdobram com potência nas cenas, suas quebras chegam de forma tão certeira que é quase impossível não sentir! A escolha por uma textualidade na panada que acusa e abre a cena para uma auto crítica rompe com a ideia de que para prender o espectador na obra é necessário disparar a cada cena um clímax. E talvez aqui esteja um ponto extremamente sensível de Zeca: você ri e acompanha o primeiro ato com empolgação, quando a rotina se repete em seu segundo ato, o riso já é preso! Ao adentrar o terceiro e último ato, o riso não sai, ele aglutina e tudo começa a fazer um estranho sentido! Vemos o noticiário da vida em três tempos mecânicos, o que para mim é o reflexo direto de nossa sociedade espetacular, que de tudo faz produto! Você tem noção disso Zeca? Produto da desgraça! Daí em diante é como se você tivesse saído de casa para tomar um choque de realidade! O espetáculo termina com a entrada de um caixão, após um telefonema anunciando a morte da protagonista, os narradores tomam a casa de Zeca e então tudo se confirma!

Amanhã será outra! Depois outro! E outro, não acaba, essa política de extermínio classe-raça continuará latente! A bandeira da nação verde e amarelo cobre a morte de mais uma pessoa negra da periferia, à luz vermelha se afunila sobre a imagem que no início do espetáculo era apenas de Zeca morta no chão, agora de todo um país! Presságio? Retrato? O quê? Não sabemos ao certo! Mas está aqui e é sobre o agora! Agora! Agora! Sem fim!

[1] Ator e Graduando do curso de Licenciatura em Teatro.

Ficha técnica

Montagem:

Zeca de Um Cesta Só

Elenco:

Assucena Pereira

Brenda Lima

Carolina Monteiro

Isabella Valentina

Leticia Moreira

Lenise Oliveira

Lucas Del Corrêa

Miller Alcântara

Penélope Lima

Renan Coelho

Robson Clausberg

Ruber Sarmento

Victória Souza

Wagner Ratis

Victor Sezenem

Direção:

Paulo César Jr

Assistente de direção:

Assucena Pereira

Encenação:

Leandro Ferreira

Dramatugia:

Amanda Carneiro, Leandro Ferreira, Pablo Pina e Rodrigo Pimentel

Iluminação:

Bolyvar Melo

Cenografia:

Assucena Pereira, Bolyvar Melo e Ruber Sarmento

Assessoria de imprensa:

Lucas Del Corrêa

Artes gráficas:

Wan Aleixo

Fotografia:

Letícia Moreira

Produção:

Ruber Sarmento

Realização:

Zecas Coletivo de Teatro

Apoio:

Teatro Universitário Claudio Barradas e São Folhas