Antropofagia Oswaldiana – DO TEXTO À CENA – Por Raphael Andrade

28/01/2018

Montagem Teatral. O Homem e o Cavalo.

Montagem de conclusão dos cursos técnicos da ETDUFPA - Cenografia, Figurino e Ator. 

Raphael Andrade[1]

Os cursos técnicos de formação em ator, figurino e cenografia da ETDUFPA, escolheram na grade interdisciplinar de práticas de montagem o texto indutor "O homem e o Cavalo", escrita em 1934 pelo escritor, ensaísta e dramaturgo brasileiro José Oswald de Sousa Andrade (1890-1954), considerado um precursor do teatro modernista brasileiro. Nesta tríade pluridisciplinar, pude participar como estagiário da supracitada montagem. No que diz respeito à crítica, farei uma breve análise do processo DO TEXTO À CENA, para formular minhas considerações sobre a montagem teatral.

TEXTO INDUTOR: A peça de nove quadros - "O Homem e o Cavalo", faz um balanço diacrônico do mundo antigo até a década de 30 em que fora escrito. Contextualizando a diversidade histórica, mitológica, econômica, política e cultural. A obra tem como cerne as críticas ideológicas sobre o capitalismo, fascismo, nazismo, instituições religiosas e a busca incessante do homem pela melhoria da industrialização. Dando enfoque na visão utópica comunista, num discurso quase (QUASE?) panfletário no que se diz a respeito à visão de esquerda que o autor anuía.

Os quarenta e nove personagens históricos e fictícios, aderem à fábula com características antropomórficas - animais com características humanas - além de deuses e constituintes da realidade em geral. Neste prisma, a peça torna-se carnavalizada, onde os personagens se hibridizam entre o humano e o animal; entre o real e o irreal; entre o SAGRADO e o PROFANO.

Nesta hibridização de relatos históricos, a obra possui uma estrutura fragmentada, recortada com elementos do teatro épico brechtiano, como efeito de estranhamento oriundo na construção da narrativa, a quebra da quarta parede, além do espetáculo utilizar como mote as análises dos fatos perante o público, fazendo dele, ao mesmo tempo, julgador e julgado. Levando, desta forma, o homem a reconhecer seu papel social e seu posicionamento frente ao que é narrado, consonante Gardin:

A História é posta sob julgamento perante o olhar do leitor/espectador. Ele é uma espécie de juiz da sua própria consciência. [...] Aí está o didatismo oswaldiano, claro e cristalino: a personagem central da peça é a História da humanidade e o Homem o seu principal protagonista. (1995, p. 131)

No referido texto, Oswald opta por uma escrita angustiada com o novo, dando ênfases aos acontecimentos passados para analisar de forma holística a visão moderna, criticando a sociedade e a maneira que o homem está cada vez mais à procura de melhoramento nas transformações sociais, sendo elas tecnológicas ou de cunho perceptivo do universo (TOTEM), ou no que tange as melhorias do mesmo. Além da busca incessante pela VERDADE. Ao mesmo tempo que o autor defende seu ponto de vista na questão social, ele oferece suporte em um olhar crítico em que pode ser observado na tecnologia e, concomitantemente, seus prós e contras perante o espectador.

INDUTORES: A proposta da narrativa da peça é antropofágica, grosso modo: comer o que vem de fora. Daí o caráter metafórico da palavra "antropofagismo". Com a síntese em darmos valor no que é nosso. Apesar deste simbolismo de deglutição, a ideia não é tornar-se xenófobo e, muito menos, adeptos a xenofilia, mas sim, transformar e subverter ao "digerir" o legado do eurocentrismo, para que se possa alcançar uma arte tipicamente brasileira. Nesta perspectiva, a direção/encenação composta pelos professores mestres Marluce Oliveira e Paulo Santana, aderem a este pensamento e usam o indutor de caráter burlesco, oriundo de um corpo extra-cotidiano para os atuantes, onde se hibridizam a partir das formatações imagéticas da narrativa. Este corpo é a própria mise em scène, contribuindo, desta forma, como um corpo que constrói cenas a partir da visualidade do texto, que, além de apresentar a fala das personas, ajuda a compor a cenografia da mesma.

O laboratório corporal, que foi conduzido pela direção, tem como um dos indutores as práticas de Dario Fo (1926-2016), na sua análise dialética de satirizar a política sociocultural vigente e/ou histórica. Aplicando, no seu fazer teatral, uma linguagem "anti-eufemística", indo de encontro à complacência das classes dominantes e da respeitabilidade política, utilizando do componente farsesco com referências a Commedia dell'arte, o circo e o "cinema silencioso" para compor seu pensamento crítico.

Neste enredo, o teatro de Dario Fo é uma mimese corpórea em busca da simplicidade, mesmo que burlesca, mas com uma linguagem compreensível para quem a presencia, indo contra o sistema dominante supracitado, ao criticar de forma satírica o mesmo. O laboratório de Dario Fo, tem como finalidade o corpo extra cotidiano, como alternativa do risível, com princípios burlescos e bufônicos na sua gestualidade. Numa linguagem gestual e verbal inventada, com inserções de sons de grammelot e gestos miméticos. Como o próprio autor se refere: "papocchio de sons" que consegue contribuir com o significado do discurso; "jogo onomatopéico", "articulado arbitrariamente", mas capaz de transmitir, com a contribuição de gestos, ritmos e sons particulares, um discurso completo.

Distinto indutor para a cena, foi um vídeo explicativo dos oito movimentos da dinâmica de Laban (1879-1958), contribuindo nas movimentações do espaço cênico em variadas formas e dilatações, como: o atuante no plano alto, baixo, horizontal e/ou vertical, usando movimentos curtos, longos e profundos. Podendo, ainda, movimentar o corpo por partes, ou com movimentações coreografadas. Contribuindo, desta maneira, com as coreografias proposta pela direção/encenação, além da investigação do trabalho corporal que conflui para a resistência física necessária para os atuantes.

Não me cabe, aqui, tecer comentários sobre como os atores se portaram neste processo, mas sim, narrar o encadeamento do texto e indutores para expressar sobre a apresentação teatral, como farei a seguir:

CENA - No prólogo, a primeira visualidade é arrematada pela falta de cenário em cena, somente os atuantes com uma malha "cor de pele" e o rosto pintado no padrão "máscaras brancas e roseadas na bochecha" manejando simbolicamente cestas de vime representando a lenda da "cobra grande", além do personagem Mafarrico, assinalando sobre o que se assistirá ali, pontuado entre o riso e o deboche, optando, nesta perspectiva, em descortinar o lugar da fala - a Amazônia - interagindo, neste enredo, com o caráter antropofágico da obra. A narrativa prossegue e o profano e o sagrado são expostos para o público, na dicotomia: céu e inferno, num caráter burlesco e risível na visualidade e no texto.

Assim este espetáculo flui no decorrer da fábula, numa espécie delirante carnavalizada e enérgica no que tange a encenação, com uma convicta e rompante competência artesanal nos seus elementos técnico/artísticos. Perceptível na metafórica simbologia no que diz respeito as citações cenográficas e indumentárias extensivas de farrapos - entre a estética antropofágica/surreal/carnavalesca às remissões futuristas ciborguianas, como: a apoteótica visualidade da cena da "Walkiria" (mitologia nórdica), impecável na visualidade imagética nos efeitos de luzes e corpos energizantes.

Análogo elemento visual pode ser visto na visualidade da "barca de São Pedro", onde há uma conversão semiótica, conceito do Prof. Dr. Paes Loureiro, no que se refere à mudança na qualidade do signo quando este passa por um processo de re-hierarquização na função dominante. Ou seja, a partir da proposta de ter uma barca em cena, e esta ter uma visualidade do formato de um barco, os atuantes ao transmutar esse signo no corpo, passam pelo processo de analisar, identificar como funciona a transmutação corporal, onde se dá o processo de conversão semiótica. Logo, este corpo torna-se parte da própria cenografia. Obviamente, não reproduzindo fielmente uma barca, mas fazendo com que o espectador a entenda a partir do signo visual simbólico proposto.

A sonorização é heterogênea, caracterizada por gêneros musicais diferenciados, como: instrumentação - onde os instrumentos têm conteúdo idílico, sacro, profano, romântico e tantos outros. Com a função de comercializar uma narrativa histórica pelos variados gêneros e estilos musicais diferenciados impregnados no decorrer da encenação, como: ópera, funk, brega, música oriental, sacra, instrumental e efeitos sonoros mecânicos que ajudam na ação cênica através da representação emocional e psicológica dos personagens ou da atmosfera que se pretende circunstanciar a obra, fruindo de acordo com a estética burlesca do espetáculo.

Quanto ao elenco, o conjunto atrai, empolga e prende a atenção pela entrega à fisicalidade grotesca e coreográfica, além de se atirarem sem pudores na cena, eles se atiram completamente. Todavia, este tiro pode ser dado no próprio pé, no que se refere a intérpretes-criadores, algo perceptível na busca incessante pelo risível, tombando, por vezes, em estereótipos de grupos que ficam à margem da sociedade - visto em cena pela garça que tem gagueira e, mormente por ter essa "bengala" como forma de atrair risos. Aderindo ao mesmo patamar dos outros grupos que sofrem violência psicológica por um "defeito", levando muita das vezes o indivíduo com este distúrbio na fala a depressão e exclusão social. Porém, este recurso em cena tem efeito de arroubos de risos, eu mesmo ria todas as vezes que o personagem falava, sobretudo por ele ser um excelente ator, mas é importante estarmos atentos para essas questões, apesar que, acredito eu, muitos nem imaginam sobre o padecimento que as pessoas com gagueira possuem sobre este transtorno na fala.

É interessante, também, destacar o que se refere a voz de alguns atuantes, como no caso do "Poeta-soldado" e o "Cavalo Branco de Napoleão", ambos com problemas graves na dicção, muita das vezes engolindo a última sílaba, mesmo com todo o empenho da direção para que o texto seja entendido e a fonação saísse de forma articulada. Outro ponto angustiante de alguns atuantes, era a forma de tratamento com o parceiro de cena, não dispondo de zelo com a integridade física do mesmo. Ademais alguns corpos de atuantes exaustos, que não sabíamos ao certo se era proposta de personagem ou se estavam corporalmente exauridos. A cena que destoa do espetáculo é "as crianças socialistas" tão monótona como os socialistas neo-revolucionários utópicos vigentes.

Em meio a tantos ingredientes para um bolo só (quarenta e nove personas ou mais) em "O homem e o cavalo" há que se reconhecer o árduo exercício corpóreo e textual, cuja implosão rebelde contextualiza-se em sua historicidade. Uns destacam-se mais pela vivacidade em cena, como a Walkiria - com seu bailar enérgico e coreográfico, o bom desempenho da "Terezinha de Jesus" e a boa sacada da "tradução." Sem me referir a força envolvente na equilibrada sintonia de Verônica e Madalena - apesar desta última usar de excessivos palavrões para causar riso. E no contorno conciso e ao mesmo tempo tenso das interpretações que interrompiam a narrativa, como o belo canto prostrado da "Cleópatra" denunciando a violência contra a mulher, assim como o personagem "verdade," num tom irônico mais taciturno do que o restante da fábula.

No mais, este vigoroso e bem dirigido espetáculo coletivo, com direções de Iara Souza, Marluce Oliveira e Paulo Santana é pleno de acertos estéticos. Com seus abusos temáticos e sua irreverência imoral zombeteira, tornando-se, a meu ver, um grande espetáculo (não só pela duração) e uma feliz surpresa artística (e no milagre de tirar "leite de pedra", haja vista o pequeno recurso em dinheiro que a universidade dispõe para a encenação), com uma vertente subvertedora quase irrepreensível. Que chega, nessa lama que estamos afundados em termos políticos-sociais-culturais, com hora e alvo certo. Que tenhamos mais espetáculos esmerados assim! EVOÉ!

28 de Janeiro de 2018.

Referência:

GARDIN, Carlos. O teatro antropofágico de Oswald de Andrade: da ação teatral ao teatro de ação. São Paulo: ANNABLUME, 1995.

[1] Ator, performer e graduando em licenciatura em teatro, participante do minicurso de crítica teatral: "Por uma crítica menor".

Ficha Técnica:

Montagem:

O Homem e o Cavalo

Direção de Atores e Encenação:

Paulo Santana e Marluce Oliveira

Direção de Visualidade:

Iara Regina

Criação de Sonoplastia e Cartaz:

Raphael Andrade

Operação e Criação de Sonoplastia:

Juliana Bentes.

Projeto de iluminação:

Bolyvar, Manu, Leo, Humberto e Luan

Operação de mesa de luz:

Bolyvar

Criação de Figurino:

Iara Mendonça, Isabella Vallentina, Rosiete Santos, Thais Sales.

Assistentes de Figurino:

Sônia Decolores, Juliana Bendes, Bruno Sacramento, Flávia Flor.

Criação de Cenografia:

Boliyvar Moreira, Léo Andrade, Luan Artpay e Manuela Dela. Humberto Malaquias.

Assistentes de cenografia:

Madu Santos, Paulo Bico, Winnie Rodrigues, Manuela Dela.

Elenco:

Aj Takashi, Jeff Moraes, Ysamy Charchar, Yuri Granha, Marvin Muniz, Loba Rodrigues, Igor Moura, Joed Caldas, Bonelly Pignatário, Felipe Almeida, Romana Mello, Luana Oliveira, Tarsila Amaral, Sandra Wellem, Hudson dos Passos, Ruber Sarmento, Enoque Paulino, Marina Lamarão, Renato Ferber, Helaine Sena, Marina Gusmão, Simon bayssat, Cinara Moraes, Enzo Burlos, Lucas Serejo, Valéria Lima,Leandra Lee.

Estagiários do Curso de Licenciatura em Teatro:

Isabella Valentina, Thiago Batista, Gabriel Luz,

Tais Sawaki, Raphael Andrade e Joyse Carvalho.