Batista em corpo e fúria: História e memória que persiste – Por Elcio Lima

15/07/2023

Montagem teatral: "Batista em corpo e fúria"

Montagem: Grupo de Teatro Palha 

"A cultura histórica tem o objetivo de manter viva 

a consciência que a sociedade humana tem do próprio passado, 

ou melhor, do seu presente, ou melhor, de si mesma."

(Benedetto Croce)

Elcio Lima[1]

"Independência ou morte!"

Aplausos e gritos eufóricos.

Quando o grito às margens do Ipiranga fez ressoar palavras libertárias, ao custo de muitos conflitos que pipocavam por toda terra em brasa da nação, o eco que chegou pelas bandas de cá, algum tempo depois, foi o da morte.

A história do Norte do Brasil foi escrita com tinta-sangue de uma gente que lutou por seus direitos em tempos de crises sociais e econômicas culminando na revolta da Cabanagem, um dos movimentos populares mais violentos de que se tem notícia no país. Sobre os ossos de uma população pobre composta por indígenas, negros, e seus descendentes, diretos ou miscigenados; foi que se ergueu o que hoje conhecemos como o estado do Pará. A Cabanagem se tornou muito mais que uma afiada pedra no sapato de mercenários ingleses, fidalgos lusitanos e lobos em pele de cordeiro. Foi um marco na história do estado e do país, tornando conhecidos muitos nomes à frente do levante, dentre eles o de João Batista Gonçalves Campos, ou simplesmente Cônego Batista Campos, um dos maiores personagens da nação e mentor intelectual do movimento.

Na noite da última quarta-feira (12), o Grupo de Teatro Palha, sob a direção de Paulo Santana, pôs em cena um recorte da nossa história sob a ótica desta figura tão emblemática com o espetáculo Batista em corpo e fúria. Em uma livre adaptação da obra Batista, de Carlos Correia Santos, a dramaturgia apresenta momentos cheios de lirismo e emoção em torno da pessoa de Batista Campos.

Sobre folhas secas e à luz dramática, enquanto o chuvisco da noite morna paira sobre a capital, expectadores remanescente do êxodo causado pelas férias escolares reúnem-se ali mesmo, no hall de entrada do Teatro Experimental Waldemar Henrique. A cena, então, se inicia.

Batista está amarrado. Um emaranhado de cordas e nós são utilizados como instrumento de tortura. Surge um Cabano. Ele é um e ao mesmo tempo muitos. Arisco, gestos quase animalescos. Batista luta e brada um grito de resistência. Após o prólogo o público é convidado a tomar lugar em torno do palco arena e testemunhar o desenrolar do drama. No centro, em uma estrutura que remete à uma jaula, sob implacáveis trovoadas, vemos Batista "atado" pelos braços em sua prisão. Ali ele representa muitas outras vítimas.

Com Stéfano Paixão e Kezynho Houston no elenco, Paulo Santana, em pouco mais de meia hora, desenha uma crescente de sensações sobre contrastante tela em uma encenação intrincada de elementos que saltam aos olhos mais atentos e capta a atenção e o coração de quem assiste, a ponto de você se perceber completamente imerso na atmosfera claustrofóbica da visualidade de sua obra por meio de uma certeira escolha cenográfica: um simples cercado feito com ripados de madeira.

Esteticamente precária, mas justamente por isso mesmo bela e angustiante; aflitiva e prática; a estrutura range e cambaleia como um navio ao mar para minutos depois se tornar capela, por vezes parecer floresta e noutras, prisão. A sacada genial está no fato de que a cenografia conversa perfeitamente com uma encenação que desconstrói a ideia de tempo e espaço, uma vez que há uma sucessão de acontecimentos não lineares e até mesmo eventos que não são mais que a subjetividade da personagem, devaneios de uma mente perturbada pelo horror. E tudo funciona de maneira que as ideias se concatenam e entregam uma obra linda e pungente de sentimentos do início ao fim.

Santana dispõe de artifícios elementares de maneira simplista, mas sem entregar uma obra mastigada, pronta para ser regurgitada a uma parcela de público acostumada a moldes cartesianos de atuação e encenação, como se vê aos borbotões pela cidade, o que muito se deve à comparação com a tv e ao cinema. E a plateia embarca! Isso evidencia o quanto a cena local está dividida entre um teatro comercial, mais próximo do entretenimento e da diversão descompromissada; e seu oposto, que mergulha em temas humanos mais complexos, identitários e que lançam mão de uma visualidade desconstruída se comparada à uma mise-em-scène comportada, certinha, realista e material. Todas as partes conversam e se conectam pelas mãos e mente do diretor que, como numa pintura barroca, abusa de sombras e luz, contrastes e cores quentes por meio da iluminação primorosa de Malu Rabelo, que cria espaços imaginários, sensações e mesmo ritmo às cenas que se sucedem como memórias borradas, narradas em tom confessional. O figurino de Ila Falcão traduz-se em uma poética extraída da miséria, do sujo, da dor e do sofrimento com seus tecidos gastos, pesados e desbotados que se complementam na bela maquiagem de Nelson Borges, que, com mão certeira, empresta uma nova face ao elenco e ainda executa a sonoplastia do espetáculo.

Não poderia deixar de fora a atuação dentro de uma história tão potente. Com Stéfano Paixão dando vida a Batista Campos, o ator entrega-se, de fato, em corpo e fúria a um papel que mostra um herói histórico, sim, mas o humaniza. Em cena, o Batista de Stéfano é líder não apenas porque a história nos diz isso, mas porque Paixão presenteia o público com uma figura que transborda emoções diversas com uma sutileza linda se ver, como numa sinuosa estrada, ou no subir e descer de revoltas ondas. Dividindo a cena, Kezynho Houston, um dos atores mais prolíficos do teatro local, é o tipo de coadjuvante que atrai o olhar e capta a atenção mesmo quando se esgueira silenciosamente pelo espaço. Tem apelo dramático, cômico e causa arrepio sempre que a deixa lhe é dada. A conexão entre ambos é a grande cereja do bolo.

Rica em alegorias, a montagem do Grupo de Teatro Palha mantém o apelo ao debate em torno da história de nossa gente, de tantas lutas, sejam elas armadas ou não, o que já é uma marca do grupo com mais de 40 anos de trabalhos, que extrai da vida cotidiana de um povo que rema contra a corrente, a matéria-prima para seus espetáculos. E mais do que nunca esse olhar para a história local se faz necessário. Colocar no centro da roda a lembrança de um momento tão marcante é crucial para que a sociedade de hoje reflita sobre suas raízes. Esse é um dos papéis do teatro, da arte como um todo.

Em uma curta temporada viabilizada por emenda parlamentar da então Deputada federal, Vivi Reis, no exercício de sua função ainda em 2022, Batista em corpo e fúria fica em cartaz de 12 à 15 de julho no Teatro Waldemar Henrique.

Ao fim, vejo olhos brilhantes de lágrimas, respiração suspensa...

Percebo meu próprios olhos marejados antes do último gesto ser engolido pela escuridão. A plateia irrompe em aplausos. Comovida, aturdida, encantada... Após agradecimentos de praxe pela voz do elenco, não sei mais se vejo Stéfano Paixão e Kezynho Houston ou se vejo a mim mesmo e tantos outros antes de mim, hoje sombras de um passado que luta para não cair no esquecimento.

Paulo Santana grita:

"Viva o teatro!"

Aplausos e gritos eufóricos.

Volto, pensativo, para o conforto de minha casa.

15 de julho de 2013

[1] Elcio Lima é ator, diretor, escritor, dramaturgo e figurinista. Aluno do curso técnico em Figurino cênico e graduando de Licenciatura em Teatro. Colabora com o projeto de pesquisa "O Clown Nosso de Cada Dia" e integra o projeto de extensão Tribuna do Cretino.

Ficha Técnica

Batista em corpo e fúria

Livre adaptação da obra Batista, de Carlos Correia Santos

Elenco:

Stéfano Paixão e Kezynho Houston

Figurino:

Ila falcão

Maquiagem e Sonoplastia:

Nelson borges

Iluminação:

Malu rabelo

Realização:

Grupo de Teatro Palha

Direção e Encenação:

Paulo Santana

Produção:

Tânia Santos