Boca de Ferro: Estilhaços da Rainha Specullum – Por Matheus Amorim

11/02/2019

Montagem Teatral: Specullum

Montagem: Grupo de Teatro Universitário (GTU)

Matheus Amorim[1]

Specullum, Specullum meu, quem sou eu? Corpos no pátio!

A luz quente abri-se mais uma vez sobre o chão riscado do teatro Cláudio Barradas, e para! "Era uma vez", diz a voz em áudio! Olho fixamente para o espelho que me colocam latente no imaginário, sinto que meus reflexos estão expostos, que meu corpo será o alvo desta vez!

"Eu sou bonito! Não! Eu sou bonito! Não!"

Sou convidado a dialogar com Specullum, convidado a pensar e refletir sobre todas as suas crises, potências, fragilidades, relações e tiros no escuro, eis aqui o que pulsa nesta obra: o fator crise, o estar em crise, a crise do corpo, do palco, da ditadura da beleza, ou pelo menos a princípio parecia ser sobre esse chão que eu pisava, ali, minha grande indagação estava em perceber de que forma isso me seria colocado, qual espelho seria usado para me fazer ver através daquela vidraça.

Sou encarado, todos os "speculluns" olham para dentro de mim, cada intérprete tenta tirar-me um suspiro. Inspiro e olho novamente para os espelhos em seus olhos. Grita forte a alma de uma mulher negra, sai de sua cadeira e ganha o centro, ouço sua dor, cada linha de seu texto! "Negros e Negras", mas minha mente sente um tanto de desconforto ao repassar tão depressa e atropeladamente por uma história tão sensível e dolorosa, não sei onde está o equilíbrio dessa exposição, e para! "Um último brinde!", ponto para mim, será ele o meu adorável narrador elisabetano?

Venham, venham minhas bacantes! É hora do close! Havia um frescor, uma força superada pela vontade de dizer: sim, posso quebrar essas paredes e dançar com meu mega zord, potência! As interrupções coreográficas são a calda do fragmentado vestido da rainha specullum, leveza, verdade e luz, sinto aqui um grande trunfo usado por seus bobos, trunfo que retira o bocejo do público! Corpos bem iluminados indicam que há algo de queer por vir! E veio! O garoto interiorano levado pela promessa de um futuro chega à cidade grande, mas o que é isso? Vamos mesmo falar sobre moda, sobre saltos e quedas? Sim, vamos! Vamos expor tudo na panada, vamos fazer alegoria ao influencerpara dizer o quão mesquinhos nós somos! Sim, é disso que a rainha gosta, e para! CHEQUE MATE para ela! "A escola não poderá arcar com seus custos", mas eu posso, me de seu corpo, suas vestes, me dê um beijo, e lá se foi a ideia do garotinho que não acreditava em sua beleza. Mas tão rápido? Sim, tão rápido quanto o tempo! Beijo! Paro no tempo por um milésimo e penso, onde estamos agora?

Uma prefeita anuncia-se, má, porém neutra! Em seu mandato ela quer um novo jogo, um desfile, higienizemos a periferia, rápido!!! O marido que espanca a mulher, ela caiu da escada, a história caiu da escada, quem caiu da escada? Esse gatilho prende o público, e de novo, prende, engessa! Mudanças bruscas de tempo me fazem repensar a linha contínua já fragilizada!

Hércoles, quem é você, onde posso te encontrar? E para! Um jantar, "Não posso ficar". Luz no palco esquerdo; chega o menino da festa direto para a cidade grande, a mãe manda estudar, depressa, arrume as malas, parei, gritei: Hércoles tem um irmão? Não, um tiro no escuro! mais uma história, mais uma vida, e Drag Race.

Specullum ganha um novo protagonista! Bem recebido, o garoto que estudava fora mostra-se um excelente peão no tabuleiro, joga, dança, chora, e bandeira sangra na projeção, mais um gatilho! A bixa preta que ascende cai do nada, de novo? Afinem o rádio, pois se confirma, boca de ferro sim! Sinto-me arrancado a força do... espelho, sim, ainda é um espelho, é?

Salve Dandara, travestida e deitada no carrinho de mão. Intervalo, e volta. Muitos speculluns, muitas vozes, trocas, sotaques e inverossimilhança. Tento assimilar tudo que me é esbofeteado. O tempo passa e sinto que a cidade grande está sendo atacada.

A rainha volta e agora já não sente-se rainha, sente-se rei e anjo. Ataquem, dama vencida, nada de errado, mas sem tempo, corram, mais uma história! As cartas parecem não chegar, ou será que não há mais vida para ler. Chamem o garoto que veio para estudar, ele precisa fazer um book rosa. "Amigo, quanto tempo", consistência e corpo! Num breve momento percebo que havia uma história outra que pairava para além de Specullum, a história de vidas que não precisavam se cruzar, esbarrar, bem ali, frente a mim. Um enredo onde as mazelas careciam de fala, uma necessidade de dar voz. Mas nunca se dá voz a ninguém! Aperta, aperta, aperta mais um pouco, e foi, coube mais uma, mas não coube tudo de todos. Da beleza ao panfleto!

Desfilem os corpos, façam cair aqueles que não cabem no padrão, humilhem aqueles que não sabem onde estão e cortem as pernas daqueles que sentem saudade de casa, façam a garota morrer pelo corpo magro, normatizem a violência contra os corpos da margem e me obriguem a não olhar, me façam querer correr, façam tudo e corram mais uma vez, de um a três, deem desfechos as estórias tão rápido como uma coreografia de movimentos firmes em time lapse, coloquem o arco-íres sobre a pele, passem mais lápis de olho, liguem as câmeras, projetem e se beijem, mostrem afeto, mostrem guerra, usem da guerra para militar exacerbadamente, ensurdeçam-me! Exponham seus corpos e se utilizem disso para me prender em Specullum. Voltem no tempo e me mostrem a morte do diretor da escola de modelos pelas mãos do último brinde e daquele que jurou ser notado, ser amado, façam mais, mostrem-me que ele não é filho de quem é! Novela das 7, e assim me façam repensar novamente sobre a originalidade de sua fala! Prendam o agressor e esfreguem na minha cara o pão que minha mãe jogou ao mendigo. Acendam as luzes e dancem um pouco mais. Traduzam suas cenas e, espera, speculluns, vocês são marionetes ou manequins? Tive a abrupta sensação de passar por mais de oito anos em duas horas e meia de experimentação.

Beba toda sua bebida e se arrependa de amar, joguem toda a crise no ventilador, destituam a prefeita e ponham isso na tela, sobre o domínio da influencer, façam do menino que só veio aqui para estudar o seu novo diretor sobre botas. Troquem os papéis e me façam querer sair, correr e gritar, pedir por um último brinde, façam isso tão depressa que pareça ser as últimas palavras de uma crítica.

Specullum para mim é um suspiro, a tentativa em processo de falar sobre tudo aquilo que um corpo pode viver enquanto tenta superar as expectativas daqueles que não cansam de olhar pelo reflexo do espelho; é a vontade de transformar em visceral as histórias que lemos nos livros e assistimos na televisão, é um grito sobre ser gay, trans, mulher, feio, um grito que emudece! É sobre ser aquilo que puder e ser aquilo que também não se quer, uma miração sobre nossa contemporaneidade, um incansável alerta sobre como a transfiguração do real precisa atravessar a poética sem agredir os locais de fala. Specullum é antes de mais nada resistência, e pra quem assiste, experiência!

10 de fevereiro de 2019.

[1] Ator e Graduando em Licenciatura em Teatro. 

Ficha Técnica:

Montagem Teatral: 

Specullum

Elenco:

Alvaro Fonseca, Ana Isabel Albuquerque, Arman Duart, Brenda Brito, Dalila Costa, Daniela Gonçalves, Eduardo Falcão, Elizama Menezes, Erik Simão, Flávia Samila, Jamilly Monteiro, João Paulo Brígida, Jonas Bragança, Leandro Quinderé, Leonardo Bahia, Viccy, Marya Clara Macêdo, Mayara Lourenço, Rosemendes, Silvia Mara, Valério, Wander Simões, Wanderson Siarom, Ysamy Charchar.

Direção Geral e Dramaturgia:

Jairo dos Anjos

Direção Coreográfica:

Leonardo Bahia

Preparação de Elenco:

Leonardo Bahia e Vanessa Luz

Sonoplastia:

Jairo dos Anjos

Visualidade:

Kevin Braga

Cenografia e Objetos:

Ysamy Charchar e Kevin Braga

Iluminação:

Patrícia Grigoletto

Audiovisual Divulgação:

Iago Pedrosa

Contra-regragem:

Erik Simão

Produção:

Ysamy Charchar