Carta À Papisa: do suspense aos causos, com calos. Meandros e ‘Linguagem Over’ em Kaique, Internamente – Por Matheus Amorim
Montagem Teatral: Kaique, Internamente
Montagem: Grupo de Teatro Atorres
Matheus Amorim[1]
Entro no teatro Waldemar Henrique e deparo-me com uma cenografia em forma de teia, abaixo dela estão o que chamarei de cinco pontos, entulhos amontoados nas extremidades dispostas do palco em forma de arena: malas, chaleiras, quadros, livros e cadeiras entre tantos outros objetos cênicos, que a meu ver são utilizados apenas como decoração para o que seria a casa de Kaique. Acredito que se aqueles objetos não estivessem ali, não haveria mudança alguma nas ações dramáticas que decorrem durante o espetáculo. O único momento em que uma ação concreta interage com esses objetos reside na cena em que Carlos, irmão de Kaique, numa tentativa desesperada de revelar o desfecho da trama, mostra o quadro que carrega a imagem de um homem que seria o pai de Kaique, intitulado de coronel pelo irmão, imagem esta que assombra os pensamentos do protagonista Kaique durante todo o espetáculo.
O Espetáculo Kaique, Internamente conta com pontos muito interessantes em sua encenação e dramaturgia. A obra propõe-se a passear entre os gêneros de terror e suspense, gêneros estes, vale ressaltar, que durante a Idade Média, principalmente durante o período tido como a diáspora do teatro das igrejas, uma poética um tanto parecida se fez presente de acordo com uma visão mais contemporânea que analisa o período das trevas como sendo o berço das composições Líricas onde há a existência da psique humana como oEu. Nesta saída das instituições tidas como sagradas o teatro ganha novos espaços de encenação, o que acabou abrindo novas portas para o fazer teatral da época. Já no cinema que é um espaço novo pode-se dizer, contudo de bastante diálogo com o teatro, estes gêneros ganham força durante a década de 60 com um dos marcos para o mercado Thriller, Psycho/Psicose.
A partir dessas informações pode-se perceber uma das facetas de Kaique, onde identifico a partir daquilo que foi exposto em cena o que aqui chamarei de Linguagem Over, que seria uma linguagem demasiada, algo em excesso. Não acredito que a linguagem exceda, mas que sua forma de transmissão sim. Exceder não de chegar a um limite, mas de expor mais do que o necessário para a compreensão de quem assiste, e isso é muito pessoal.
Kaique, internamente conta com vários gatilhos para nos remeter a esta linguagem, como, por exemplo, as repetidas cenas onde a família joga com o tempo psicológico de Kaique. Na maioria dessas cenas os desfechos das mesmas sempre eram cômicos. Num certo momento do espetáculo isso já não surtia efeito algum no público e, de certa forma, enfraquecia aquilo que já havia sido construído no imaginário do mesmo. Essa perspectiva atravessa de forma direta a dramaturgia do espetáculo que pretende aproximar o público da história ali colocada.
O drama começa a partir de um pesadelo e se estende durante todo o espetáculo num passeio entre os medos e anseios do protagonista. É importante trazer para debate o quão tortuoso é o trajeto deste e de como toda a história, que gira ao seu redor, parece estar fragmentada e, arrisco dizer, mal estruturada. O espetáculo parece-me costurar esquetes de um mesmo indutor que se reajustam para o que no final se dê como lembranças desdobradas de Kaique sobre seus familiares e as relações geridas a partir deles. Acredito que isso seja uma escolha dramatúrgica, contudo essa opção acaba gerando uma sequência de meandros na obra que a torna em diversos momentos (in)comprável.
Deve-se admitir que não por obrigação, mas talvez por sinergia, pela troca, de acordo com Eugenio Barba, que o espetáculo funciona como um organismo vivo, deve comunicar e fazer com que aquele que está no lugar de quem assiste compre de fato aquilo que está sendo exposto, mesmo que temporariamente e com a observância de irrealidade, o que não ocorre em Kaique, internamente. Isso não quer dizer que o mesmo não possua uma potencialidade.
Olho agora para dois pontos que muito se sobressaíram no espetáculo: as contracenas e o teor absurdista que a mesma possui! A relevância deste trabalho por parte de todos os intérpretes é riquíssima. Existe pairando sobre todo o drama da obra, uma presença física muito bem estruturada, a destacar as irmãs de Kaique que expõe um belo trabalho físico, principalmente nas cenas laterais onde as luzes atravessam seus corpos. Há também uma linha contínua de ações por parte daqueles que quando não estão nas cenas centrais da obra, se articulam em outros espaços do palco, fazendo crescer um certo tipo de inquietação no público trazendo para a cena, num contexto mais amplo, uma pegada alá Antonin Artaud, com traços fortíssimos do teatro do absurdo e um mergulho, ainda que raso, nos recalques humanos de acordo com a psicanálise. Pode-se dizer que neste ponto a obra ganha muito, analisando a perspectiva de construção de personagens. Esse fator faz crescer a ideia de atemporalidade em que se passa a história.
O espetáculo parece-me ser uma corrida contra o tempo, na busca incessante de desnudar um eu inexplorado, um ser amedrontado e oprimido por um Devir cênico é um reflexo daquilo que a muito atravessa e que insisto em por como Corpos da Margem. Kaique é homossexual e a obra trabalha alguns pontos dessa personagem a partir de um olhar um tanto questionável, a meu ver, e que de certa forma objetifica o corpo gay. Exemplo disso é a cena do beijo entre Kaique e outro personagem (não fica claro quem é devido a trocas dúbias entre óculos e boinas). Exatamente nessa cena existe um choque de negação por parte de Kaique ao beijo: "- Que Nojo", reação do protagonista (risos na platéia).
Confesso que eu, enquanto Gay, fico a pensar em como estamos tratando determinados temas dentro do espaço teatral e de como isso tem atravessado nosso público. Não estou aqui negando a existência dos processos pessoais de alguém e nem da impossibilidade de trazer tal fato para a cena. Contudo acredito que quando se fala da cena, do teatro - e teatro é extremamente político - estamos falando também de subversão de antigos valores que foram colocados nesse lugar por corpos que nunca reconheceram nossa existência enquanto fator relevante para ter e ser voz; estamos falando de toda a oportunidade possível para retirar das sombras assuntos, pautas e tabus já quebrados que são mantidos a esmo por conveniência, trazer por uma outra íris, por uma outra ótica, não normativa. Kaique precisa ser revisitado internamente, preenchido e desnudado mais uma vez, e outra, e mais uma e quantas forem necessárias (mesmo que nossa roupa de ensaio soe, e isso não é pauta para os créditos) assim como toda e qualquer obra possuidora de embates sociais, e as que estão para aquém e além disso.
Evoé.
31 de Março de 2019.
[1] Ator e Graduando em Licenciatura em Teatro UFPA.
Ficha Técnica:
Elenco:
Bruno Torres
Nathália Nancy
Carolina Souza
Renê Coelho
Sabrina Viana
Sonoplastia:
Paloma Lima
Iluminação:
Luanna Lima
Texto e Direção:
Bruno Torres