Casangrá – Casas que sangram: O indigesto banquete do teatro/denúncia – Por Elcio Lima

23/09/2023

Montagem teatral: Casangrá – Casas que sangram

Montagem: Ato Poético de Conclusão de Curso de Tarsila Rosa   

Elcio Lima[1]

Muitas vezes, no teatro, é fácil nos emocionarmos com temas universais. Basta uma boa encenação, sonoplastia e iluminação certeiras; figurino coerente e bem concebido, e uma atuação minimamente tocante para transmitir as emoções que o texto narra. Uma receita aparentemente fácil de ser seguida não fosse o teatro uma arte viva e imprevisível.

Em Casangrá – Casas que sangram, ato poético de conclusão do curso de Licenciatura em Teatro, escrito, dirigido e atuado por Tarsila Rosa, a receita é rasgada. Os ingredientes básicos estão lá, mas são demasiadamente amargos, picantes ao paladar. E as emoções surgem, sim, sem dúvida, mas seguidas de um tapa, ou melhor, de uma sequência deles em tão curto espaço de tempo onde a vertigem assume nuances diversas e consegue cobrir um recorte da história num ato denunciatório ante à uma prática que ainda persiste em muitos lugares Brasil afora: os abusos sofridos por mulheres tornadas domésticas sob a promessa de um futuro melhor.

Em cena, Tarsila Rosa e Sarah Prazeres dão vida à Sônia e Tertuliana, respectivamente, duas mulheres lidando com a opressão de uma presença que ronda a casa/prisão onde se encontram. Um patrão que se faz onipresente na fala preocupada de Tertuliana, aparentemente a mais resiliente das duas, não apenas porque o texto diz, mas porque ele/ela está na plateia, nas nossas casas, na história de muitas famílias. Sônia repugna a situação em que se encontra, mas o que fazer quando a necessidade te obriga a suportar a mão invisível que sufoca o pobre, ou mesmo a mão por baixo das saias, aquela mesma que silencia o grito na calada de noites quentes de temor e tremor?

Sempre por trás de uma mesa, elas cortam, temperam, moem, mexem, rasgam, discutem, rememoram tempos e histórias ancestrais que as fizeram chegar ao mesmo ponto de suas antecessoras consanguíneas. Enclausuradas em diminuta cozinha, o desenrolar do drama não parece mais que o cotidiano de duas domésticas, o que por si só assusta e é capaz de enveredar por caminhos que beiram o suspense e o terror sugerido pela escuridão que as cerca. Na ideia de que são vigiadas o tempo inteiro. Ambas falam de si e de tudo o que lhes fora roubado pela promessa da "vida melhor", uma ideia já apresentada pelo Grupo de Teatro Palha no espetáculo Tortura que ela atura de criança à mulher, de Paulo Santana. Desta vez o tema é abordado pelo ponto de vista de uma mulher, seja na atuação e direção, mas principalmente na escrita e local de fala.

A arte alimenta a vida ou a vida é o combustível da arte?

Independente da ordem dos fatores, importa saber que a trama de Casangrá surge da escrita viva e vivenciada por mulheres da própria família de Rosa, que passeia por tempos remotos cheios de saudade e sonhos para logo em seguida proferir ferinas e pungentes falas de alguém que caiu em si e tomou consciência de sua indigna situação, do racismo institucionalizado e do feminismo seletivo. Pontua, ainda, críticas sociais mais abrangentes como ao antigo (des)governo presidencial (2019-2022) em uma época sombria como foi a pandemia do COVID-19. A dramaturgia, também assinada por Sarah Prazeres apresenta tantas camadas e temas que por pouco não suplantam o mote principal, talvez aí resida o único ponto que considero digno de ser revisto ao levarmos em conta o pouco tempo do espetáculo. Numa profusão de acontecimentos onde as personagens – uma indígena e a outra afrodescendente – ora dialogam entre si, ora quebram a quarta parede quase aos murros e despejam "tiro, porrada e bomba" sobre uma plateia em constante tensão, a fruição da obra acaba convergindo para um êxtase temporário comprometido e, perigosamente, resumido ao ato final onde o público aplaude tomado por euforia, muitos, provavelmente, sem ter de fato compreendido a avalanche que o simbólico e intragável banquete representa.

É curioso observar como, ao optar por uma encenação anacrônica a partir de seu texto e também na caracterização das personagens, Tarsila descola o drama de uma época específica, ainda que, figurativamente, as personagens estejam presas a outro momento da História visto que os figurinos, inspirados no vestuário de mulheres escravizadas, remetem a um tempo que num primeiro olhar parecem destoar do contemporâneo. Mas afinal, impor uma situação de abuso e servidão que beira o serviço escravo não seria uma forma de revisitar a época do auge de tais costumes? O grito dessas mulheres não estaria presente nas vozes de suas descendentes?

Em cena não temos apenas duas, mas incontáveis mulheres, vivas ou mortas por um sistema que tritura e esmaga o que considera o elo fraco da máquina social.

Em seu primeiro trabalho como encenadora e dramaturga, esta não é a primeira vez que Casangrá vem a público, em 2022, na IV Mostra Cênica Teatro Cláudio Barradas, a trama fora vivida por Sônia Miranda, Tertuliana Lopes e grande elenco e a encenação incluía dança e canto ao espetáculo, algo que foi suprimido desta versão sobre a qual escrevo. De certo modo, uma escolha que considero certeira pois coloca em foco a essência do texto, que por si só tem muito a dizer. Tarsila deixa no expectador um gosto amargo e impactante, uma reflexão urgente e atual; acende uma chama de esperança e se mostra como uma potência dentre os novos nomes do teatro paraense.

23 de setembro de 2023

[1] Elcio Lima é ator, diretor, escritor, dramaturgo e figurinista. Aluno do curso técnico em Figurino cênico e graduando de Licenciatura em Teatro. Colabora com o projeto de pesquisa O Clown Nosso de Cada Dia, e integra o projeto de extensão Tribuna do Cretino.

FICHA TÉCNICA

Casangrá – Casa que sangram

Elenco

Tarsila Rosa e Sarah Prazeres

Direção e encenação

Tarsila Rosa

Dramaturgia

Tarsila Rosa e Sarah Prazeres

Figurino

Elcio Lima

Iluminação

Ingrid Gomes