Chega-te a mim – Por Edson Fernando

15/08/2021

Montagem Teatral: Desculpe a obra, estamos em transtorno.

Montagem: Nós, os Pernaltas

Edson Fernando[1]

A premissa é simples e foi imortalizada pelos versos consagrados de Milton Nascimento: "Todo artista tem de ir aonde o povo está". E é "simplesmente" isso que a "Nós, os Pernaltas" se propõe a fazer com o projeto "Janelas para o teatro": uma apresentação de teatro de rua com encenação versátil, adaptável para ser levada e apreciada da porta ou janela de qualquer morador da cidade.

Digo "simplesmente" - assim grafado, entre aspas - para destacar que qualquer ação voltada para o encontro presencial entre artistas e público ganha outros contornos quando considerada a partir da crise sanitária instalada pela pandemia da Covid-19 que chegou ao Brasil desde março de 2020; mais ainda quando considerado todo o descaso criminoso no combate à doença, por parte do governo federal, que mergulha o país numa crise sem precedentes, vitimando mais de 569 mil brasileiros, até o presente momento; e mais ainda quando as pesquisas[2] demostram que a questão racial (um negro, em São Paulo, tem 81% mais chance de morrer do que um branco, por exemplo) e a desigualdade social no Brasil (conforme diminuem os indicadores socioeconômicos, como o acesso à educação e a renda, aumentam os riscos de morte) desmascaram a falácia de que a Covid-19 é uma doença "democrática".

Não é de estranhar, portanto, numa conjuntura como essa, que poucos artistas tenham se arriscado a seguir a premissa de Milton. Em Belém, por exemplo, até onde pude ter conhecimento, duas iniciativas podem ser citadas: a leitura de poesia e histórias, de porta em porta, realizada pela Biblioteca Comunitária Itinerante Bombomler; e as ações do Espaço Cultural Nossa Biblioteca, localizada no Guamá. Mas essas - e outras que possivelmente não tive conhecimento - se configuram como exceções diante do que ocorreu, e ainda ocorre, com os artistas ocupando os espaços das mídias digitais, produzindo experimentações diversas do teatro na interface do áudio visual.

Felizmente os Pernaltas resolveram revisitar e colocar em prática, novamente, os versos de Milton e escolheram as portas e janelas dos moradores da rua Lambari, no bairro da Terra Firme, para estrear sua nova montagem teatral "Desculpe a obra, estamos em transtorno", produzida com os recursos da Lei Aldir Blanc via edital SESC-PA. Na ocasião, recebi o convite para conferi o trabalho e colaborar com minhas observações críticas. Pela natureza do trabalho cênico proposto, que se estabelece como uma intervenção pública realizada diretamente na/e/para a porta dos moradores, me senti desconfortável em aceitar o convite, pois não sendo morador da rua Lambari, seria um elemento estranho, caído de paraquedas, colocado na condição de "crítico teatral" sob a função de avaliar a montagem; não me sentindo pertencente àquele lugar certamente eu seria um ruído grave, no meu entender, naquela cenografia/encenação local tão intimista.

Apresentei essas objeções aos Pernaltas e subverti o convite propondo que viessem até minha porta, conhecessem minha janela e que compartilhássemos um pouco dos transtornos, angústias, percalços... mas também da hospitalidade, afeto e alegrias vivenciadas pelos moradores da Vila 3771, na Tv. Quintino Bocaiúva próximo a Roberto Camelier, no Jurunas, lugar onde residi por dez anos e cultivei amizades e carinho dos moradores das outras quatro casas que formam a viela estreita - cerca de 1,20m de largura - que abriga a família dos Aquino, sendo eu o único Silva, isto é, o estranho no ninho que morava na última casa.

A adesão a essa ideia foi imediata, tanto dos Pernaltas quanto dos moradores que, como bons Jurunenses, adoram e cultivam manifestações artístico-culturais. Desse modo, é sobre essa experiência vivenciada na manhã de ontem - sábado 14.08.21 - que me reporto a partir de agora.

Confesso que a ansiedade de minha parte era grande, afinal conheço os Pernaltas de longa data, desde antes de serem Pernaltas, pra ser mais exato desde os meus tempos como aluno da Escola de Teatro da UFPA quando, então, conheci a Lú Maués e o Jhonny Russel e tivemos oportunidade de trabalhar juntos, dividindo o palco de algumas montagens emblemáticas da minha carreira de ator: "Macunaíma - em o fim do que não tem fim" (2000) e "O circo em família" (2001/2002). Este último nos redeu até o prêmio de melhor criação coletiva pela Cia de Teatro Tenetehara, no 1º Festival Paraense de Teatro - patrocinado pela finada Amazônia Celular - e nos oportunizou aprendizado considerável na linguagem do Teatro de Rua na medida em que conseguimos, feito extraordinário: nos manter em temporada de apresentações sistemáticas, na praça Batista Campos e anfiteatro da praça da República, por mais de um ano, quase todas as manhãs de domingos. Por isso, reencontrá-los num projeto como o "Janelas", depois de tanto tempo - período no qual trilhamos caminhos diferentes: eles, seguindo com o estudo, pesquisa e prática do teatro de rua, e eu, com o exercício teatral voltado mais à docência e pesquisas acadêmicas - teve um significado especial, pra além do fato das circunstâncias sanitárias já destacadas.

Pra mim a fruição começou desde o momento que desceram do Uber descarregando os acessórios cênicos. Caminhamos certa de 100m até o portão de entrada da vila e o simples fato de ajudá-los com o carregamento do material, me fez rememorar os tempos mambembes do Tenetehara, um aquecimento mais do que prazeroso antes da apresentação. Já no interior da vila, os olhares iniciais, timidamente curiosos, foram aos poucos cedendo lugar para o murmurinho e expectativa crescente para o início do espetáculo. As crianças, como sempre, foram logo as primeiras a formar plateia ao redor do cenário que vai sendo, literalmente, martelado diante de seus olhos; o espírito de obra em construção se estabelece no espaço e vai ganhando contornos mais que evidentes com os cavaletes de madeira sendo pregados para oferecer a estrutura de apoio para os banners de divulgação do espetáculo e para a panada do teatro de bonecos.

Quando a perna-de-pau surge e anuncia o início da apresentação, a sinfonia de latidos dos cachorros da vizinhança já se ambientou com o trio de palhaços(?) visitantes que dividem a cena no pequeno corredor da nossa vila. Rapidamente, surgem banquinhos de madeira pra acomodar a plateia que se posiciona no vão entre a primeira e a segunda casa; pego o meu e fico no cantinho ao lado das crianças que vi crescer e que agora estão mais para adolescentes do que propriamente crianças, embora ainda se considerem "crianças por dentro". O ato cênico começa, propriamente, trazendo pra portas e janelas mais próximas as outras moradoras que fazem questão de acompanhar tudo com a câmera do celular ligada.

O jogo cênico proposto pelo trio de atuantes - Wallace Host, meu ex-aluno, é o terceiro integrante do elenco - se estabelece de modo imediato e naturalmente entre eles; ao que tudo indica, seguem um canovaccio simples que permite a interação constante entre eles próprios e os moradores, que agora ganham o status de público. Essa escolha de encenação vai se demonstrando muito acertada na medida em que as pequenas e simples ações cênicas se desenrolam, nos envolve e nos deixa muito a vontade para interagir a qualquer momento. Por trás das máscaras de proteção contra Covid-19 consigo perceber o sorriso largo de meus antigos vizinhos, sorriso que não raro se transforma em gargalhada incontida diante das situações pitorescas e muito familiares que nos são apresentadas.

Vale destacar que o jogo cênico proposto pelo trio de atuantes remete a encenação aos mesmos jogos que eram propostos pelas caravanas mambembes ou trupes de saltimbancos, seja pelo formato de esquete com pequenas ou nenhuma intriga a ser desenvolvida com cenas independentes entre si, seja pelo uso da linguagem corporal burlesca, seja pela demonstração de habilidade circense (perna-de-pau), seja pelo desempenho improvisado durante todo o ato, ou ainda pela sátira social leve, aparentemente tímida. Nesse último caso, digo "aparentemente tímida", pois o conjunto da encenação se mostra potente ao satirizar o modus operandi das políticas públicas para atividades culturais nas regiões de periferia da cidade, ou seja: nenhuma obra, nenhum transtorno. É aqui que a metáfora-argumento da encenação se volta contra nossa realidade e dispara um questionamento certeiro: por que ninguém denuncia a falta de políticas públicas para atividades culturas, seja na periferia, seja no centro da cidade? Talvez tenhamos nos acostumado a viver sob os transtornos da política ultra neoliberal de um Paulo Guedes, que a todo momento nos diz, sem nenhum embaraço, que Cultura e Educação são gastos fúteis e desnecessários para o Estado - cartilha repetida por governadores e prefeitos por todo Brasil, em maior ou menor intensidade. É nesse quadro social que a metáfora-argumento dos Pernaltas ganha vigor e nos convida para uma atividade muito mais saudável: fruir os transtornos e devaneios de uma obra artística.

E é impressionante como esse tipo de "transtorno artístico" é contagiante, pois depois de iniciada a apresentação, não demorou muito pra Dona Tereza, moradora da última casa da vila, ser conduzida por seu filho Marcio, até a boca de cena. Com dificuldades de locomoção, ela foi levada em cadeira de rodas e fez questão de conferir o trabalho até o final. Os olhos radiantes e fixos nos atuantes, além do sorriso escondido por trás da máscara ressignificam qualquer intervenção teatral desse tipo pra muito além do campo estético. Pra mim, um dos pontos mais tocantes da minha experiência.

Ao final da apresentação, o agradecimento sincero e cheio de emoção de Dona Maria, moradora da segunda casa da vila, expressa o significado e a importância da cultura em nossas vidas: "- Num momento de tanta tristeza, de tantos problemas e perdas, nós agradecemos por vocês trazerem alegria aqui pra nossa vila e pra nossas vidas. Obrigado!".

Em nome dos moradores da nossa querida vilinha reitero as palavras de Dona Maria e encerro parafraseando Milton Nascimento: Agradeço aos Pernaltas por nos deixar com a alma encharcada de arte e a vida repleta de emoção. Afinal, o artista tem de ir ao encontro do povo, mesmo em tempos de pandemia, é muito mais do que louvável.

Evoé

15 de agosto de 2021.

Obs: Artistas e público seguiram todos os protocolos de biossegurança antes, durante e depois da apresentação.


[1] Ator e diretor teatral; Coordenador do projeto Tribuna do Cretino

[2] Uma delas foi realizada pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e publicada em abril/2021 na revista Lancet. A pesquisa completa pode ser conferida no link abaixo: https://www.thelancet.com/journals/langlo/article/PIIS2214-109X(21)00081-4/fulltext#tbl1

Ficha Técnica

Elenco:

Wallace Host

Ator e palhaço

Lú Maués

Atriz e palhaça

Jhonny Russel

Ator e palhaço


@maueslu

@palhaco_fio_dental

@wallacehorst


Figurino:

Sheila Souza

Direção:

Jhonny Russel

Adereços e Cenário:

Wallace Horst

Dramaturgia, Música e Bonecos

Nós, os Pernaltas

Núcleo de Pesquisa e Produção em teatro de rua

NOSSO MUITO OBRIGADO:

Kawuê Sawuandy

Rubens Joelson

Tiane Manso

Nazaré Cruz

Musa