Cobra Norato: Estreia de um delírio sensorial e mitológico no coração da floresta – Por Raphael Andrade
Montagem Operística: Ópera Cobra Norato, Terras do Sem Fim.
Montagem: Festival de Ópera do Theatro da Paz.
Raphael Andrade[1]
A ópera contemporânea "Cobra Norato" mergulha fundo nas águas míticas do poema modernista de Raul Bopp, publicado em 1931. Inspirada pelo movimento antropofágico, a obra funde elementos do folclore amazônico com uma linguagem poética fragmentada, quase telegráfica e profundamente visual. A encenação traz esse universo simbólico para o presente, ativando sensorialmente o público com sons, cores, movimentos e ritmos que evocam tanto o Brasil "de dentro", quanto o contemporâneo.
Bopp nos conduz a uma Amazônia onde tudo pulsa: troncos que respiram, águas que murmuram, tatu que anuncia o perigo do tempo com seus cantos beiçudos. É uma floresta que fala, grita, sussurra e resiste. Nesse universo, música, adaptação dramatúrgica e poesia se entrelaçam como cipós ancestrais, formando uma linguagem viva, híbrida, onde cada som é também um gesto, e cada verso carrega o peso de milênios. Aqui, no estupendo Theatro da Paz, o delírio modernista encontra sua mata nativa, e a cena se transforma em ritual.
Nos primeiros minutos da apresentação, a atmosfera é marcada pelo barulho de serra elétrica e sons de animais, indicando uma tensão entre o natural e o artificial, entre o sagrado e o profano — temas centrais do modernismo e da própria cosmologia indígena. O primeiro canto, porém, surge abafado, quase inaudível, como se a floresta exigisse silêncio ou reverência para que se possa ouvir suas vozes verdadeiras.
A trilha sonora, por sua vez, incorpora ritmos amazônicos e recria um ambiente onde o som e o silêncio dialogam com a cena. Palavras, seres e nomes surgem como feitiços ou entidades: Pororoca, Mussangulá, Joaninha, Tatu, Tarumã — cada um carrega um eco cultural e simbólico. A floresta, mais do que cenário, é entidade viva e pulsante. Em momentos mais líricos, frases como "Vivo exilada em meu paraíso" e "Nossa Senhora e Tupã" sintetizam a fusão entre religiosidade indígena e cristã, revelando uma poética do sincretismo que reafirma a riqueza simbólica do Brasil profundo. Nesse universo mágico, a devoção encontra o mito e a fé se traduz em resistência.
Visualmente, o espetáculo impressiona: Os figurinos fluem como águas de igarapé, ondulam em cena com texturas que evocam folhas, escamas, penas e limo. Cada traje parece ter brotado da terra molhada, como se tivesse sido costurado pela própria floresta: há tecidos que lembram cascas de árvores, bordados que imitam trilhas de formiga, vestimentas que se movem como cipós ao vento. Nada está ali por acaso. As cores falam — verdes densos, amarelos queimados de sol, vermelhos de sangue e barro. As formas vestem o corpo como uma segunda pele, ora celebrando sua animalidade, ora revelando sua fragilidade. Os personagens não apenas usam roupas; habitam verdadeiras armaduras simbólicas, que os transformam em criaturas míticas: o caboclo, o tatu, a joaninha e a entidade.
O visagismo é detalhista e ritualístico, criando figuras híbridas. As maquiagens de brilho fosforescente iluminam rostos que parecem saídos de sonhos tropicais, por um visagismo cuidadosamente construído criam personagens de aparência "anaxonida" – termo que sugere algo alienígena ou ancestral, difícil de classificar – meio gente, meio encantado – que transitam entre o delírio e o mito. Tudo pulsa em sincronia com o ambiente sonoro e o ritmo da narrativa, compondo uma Amazônia viva, onírica e em permanente estado de encantamento. Os figurinos, mais do que adornos, são extensões da alma cênica da obra – testemunhas têxteis de um Brasil profundo, encantado e ancestral.
Ao fundo, projeções da floresta amazônica se transformam em um organismo vivo. Não são apenas imagens: são pulsações, respirações visuais que acompanham o ritmo da cena. Árvores que se agitam como se falassem, rios que correm ao contrário, olhos que surgem entre as folhas — tudo colabora para criar um cenário mutante, ora úmido e sufocante, ora etéreo e lisérgico. A floresta, projetada em camadas de luz e sombra, não é paisagem, é personagem: observa, reage, protege ou ameaça. É como se o público estivesse dentro de um sonho vegetal, cercado por raízes, cantos e segredos.
O tenor Jean William, no papel de Cobra Norato, entrega uma performance de altíssimo nível, com domínio vocal e cênico absoluto. Sua presença em cena é magnética, e sua voz — um tenor de coloratura — percorre os extremos da tessitura com brilho, precisão e expressividade, fazendo dele a figura mais estelar da ópera. Sua atuação dramática confere humanidade ao mítico, transmutando a lenda em carne e gesto.
Ao seu lado, a força vocal de Anderson Barbosa, também como solista de Cobra Norato, destaca-se pela potência e densidade interpretativa, em contraste harmônico com a leveza luminosa de Jean William. Já Idaías Souto, no papel do carismático Tatu de Bunda Seca, conquista o público com um personagem cômico e afetuoso, mistura de sabedoria e travessura, compondo um dos momentos mais encantadores da montagem.
A soprano Lys Nardoto, no papel da Rainha Luzia, surge como uma entidade de rara intensidade. Sua voz, de timbre límpido e poder dramático, paira sobre a cena com autoridade quase mística. Cada entrada sua é uma convocação do sagrado, como se a floresta se calasse para ouvi-la. Com presença cênica elegante e precisa, ela imprime em poucos minutos um impacto duradouro — sua breve participação deixa o público suspenso entre o assombro e o desejo de vê-la mais tempo em cena. É uma aparição fulgurante, digna da realeza encantada que representa.
Cobra Norato não é apenas uma ópera: é um ritual de brasilidade profunda, um mergulho estético e simbólico nas águas do mito, do modernismo e da floresta. A montagem atualiza com vigor e originalidade o poema de Raul Bopp, entrelaçando teatro, música, poesia e imagem em uma experiência sensorial rara no cenário lírico contemporâneo. O espetáculo revela que, mesmo em tempos de acelerada homogeneização cultural, ainda há espaço para a reinvenção de nossos próprios mitos.
Ao reunir intérpretes potentes, visualidade impactante e uma escuta atenta ao Brasil profundo, a ópera afirma que o imaginário popular é terreno fértil para a criação artística de excelência. Ao final, fica a sensação de que "entramos em um igarapé e saímos em uma estrela" —com o coração atravessado por cobras, cantos e encantamentos. Uma obra que pulsa no presente, mas reverbera como um eco antigo, ancestral.
01 de maio de 2025
[1] Artista-professor-pesquisador paraense. Formado pelo Curso Técnico em Teatro (ETDUFPA, 2015) e Licenciado em Teatro pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 2018). Mestre em Arte e atualmente doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes/UFPA) O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001".
FICHA TÉCNICA
Autor do Poema Original
Raul Bopp
Idealização do projeto e Libreto
Bernardo Vilhena
Direção Artística
Carla Camurati
Música
André Abujamra
Direção Musical e Regência
Maestro Silvio Viegas
Direção de Arte
Batman Zavareze
Figurinos
Ronaldo Fraga
Desenho de Luz
Wagner Pinto
Coreografia
Ana Unger
Visagismo
Omar Júnior
Direção de Produção
Bianca De Felippes
Produção Executiva
Nandressa Nunes
Solistas
Jean William
Marly Montoni
Anderson Barbosa
Idaías Souto
Lys Nardoto
Ytanaã Figueiredo
Elizabeth Moura
Ione Carvalho
Doppiones
Tiago Costa
Tassiane Gazé
Ytanaã Figueiredo
Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz, de Belém do Pará – OSTP
Regente Titular e Diretor Musical Adjunto
Miguel Campos Neto
Regente Assistente
Laura Mathias Gentile
Coro do Festival de Ópera do Theatro da Paz
Maestro do Coro
Vanildo Monteiro
Dramaturgia
Ligiana Costa
Assistente de Direção
Emanoel Freitas
Assistentes de Produção
Gabriela Newlands
Calu Tornaghi
Assessoria de Imprensa e Redes Sociais
Cléo Soares
Jeferson Höenisch
Pianista Correpetidora
Ana Maria Adade
Legendas
Gilda Maia
Diretor de Palco
Claudio Bastos
Contrarregra
Laura Conceição
Camareira
Paula Magalhães
Operador de Som
Anderson Sandim
Operador de Vídeo – Ensaios
Walmir Queiroz
Maquinistas
Ribamar Dinis
Nonato Rodrigues
Assistente de Iluminação
Carol Sarquis
Estagiária de Iluminação
Patrícia Gondim
Assessoria Jurídica
Roberto Silva
Making of
Pietra Baraldi
Programação Visual
Berna Magalhães
Criador de Conteúdo Visual
Índio San
Animador de Vídeo Cenário
Duda Souza
Editor de Vídeo Cenário
João Oliveira
Assistente de Direção de Arte
Gabriel Silveira
Assistente de Arte
Teresa Ribeiro
Produção Audiovisual
Miriam Peruch
Assistente de Figurino Belém
Cláudio Rego
Acessórios
Mariane Sampaio
Assistente de Figurino
Rodrigo Januário
Modelagem
Rosângela Moura
Sapatos
Virgínia Barros
Acabamentos Figurinos Belém
COOSTAFE - Cooperativa Social de Trabalho Arte Feminina Empreendedora
Co-realização
Secretaria de Cultura do Governo do Pará
Patrocínio
Instituto Cultural Vale
Realização
Gávea Filmes