Cobra Norato: Estreia de um delírio sensorial e mitológico no coração da floresta – Por Raphael Andrade

01/05/2025

Montagem Operística: Ópera Cobra Norato, Terras do Sem Fim.

Montagem: Festival de Ópera do Theatro da Paz.

Raphael Andrade[1]

A ópera contemporânea "Cobra Norato" mergulha fundo nas águas míticas do poema modernista de Raul Bopp, publicado em 1931. Inspirada pelo movimento antropofágico, a obra funde elementos do folclore amazônico com uma linguagem poética fragmentada, quase telegráfica e profundamente visual. A encenação traz esse universo simbólico para o presente, ativando sensorialmente o público com sons, cores, movimentos e ritmos que evocam tanto o Brasil "de dentro", quanto o contemporâneo.

Bopp nos conduz a uma Amazônia onde tudo pulsa: troncos que respiram, águas que murmuram, tatu que anuncia o perigo do tempo com seus cantos beiçudos. É uma floresta que fala, grita, sussurra e resiste. Nesse universo, música, adaptação dramatúrgica e poesia se entrelaçam como cipós ancestrais, formando uma linguagem viva, híbrida, onde cada som é também um gesto, e cada verso carrega o peso de milênios. Aqui, no estupendo Theatro da Paz, o delírio modernista encontra sua mata nativa, e a cena se transforma em ritual.

Nos primeiros minutos da apresentação, a atmosfera é marcada pelo barulho de serra elétrica e sons de animais, indicando uma tensão entre o natural e o artificial, entre o sagrado e o profano — temas centrais do modernismo e da própria cosmologia indígena. O primeiro canto, porém, surge abafado, quase inaudível, como se a floresta exigisse silêncio ou reverência para que se possa ouvir suas vozes verdadeiras.

A trilha sonora, por sua vez, incorpora ritmos amazônicos e recria um ambiente onde o som e o silêncio dialogam com a cena. Palavras, seres e nomes surgem como feitiços ou entidades: Pororoca, Mussangulá, Joaninha, Tatu, Tarumã — cada um carrega um eco cultural e simbólico. A floresta, mais do que cenário, é entidade viva e pulsante. Em momentos mais líricos, frases como "Vivo exilada em meu paraíso" e "Nossa Senhora e Tupã" sintetizam a fusão entre religiosidade indígena e cristã, revelando uma poética do sincretismo que reafirma a riqueza simbólica do Brasil profundo. Nesse universo mágico, a devoção encontra o mito e a fé se traduz em resistência.

Visualmente, o espetáculo impressiona: Os figurinos fluem como águas de igarapé, ondulam em cena com texturas que evocam folhas, escamas, penas e limo. Cada traje parece ter brotado da terra molhada, como se tivesse sido costurado pela própria floresta: há tecidos que lembram cascas de árvores, bordados que imitam trilhas de formiga, vestimentas que se movem como cipós ao vento. Nada está ali por acaso. As cores falam — verdes densos, amarelos queimados de sol, vermelhos de sangue e barro. As formas vestem o corpo como uma segunda pele, ora celebrando sua animalidade, ora revelando sua fragilidade. Os personagens não apenas usam roupas; habitam verdadeiras armaduras simbólicas, que os transformam em criaturas míticas: o caboclo, o tatu, a joaninha e a entidade.

O visagismo é detalhista e ritualístico, criando figuras híbridas. As maquiagens de brilho fosforescente iluminam rostos que parecem saídos de sonhos tropicais, por um visagismo cuidadosamente construído criam personagens de aparência "anaxonida" – termo que sugere algo alienígena ou ancestral, difícil de classificar – meio gente, meio encantado – que transitam entre o delírio e o mito. Tudo pulsa em sincronia com o ambiente sonoro e o ritmo da narrativa, compondo uma Amazônia viva, onírica e em permanente estado de encantamento. Os figurinos, mais do que adornos, são extensões da alma cênica da obra – testemunhas têxteis de um Brasil profundo, encantado e ancestral.

Ao fundo, projeções da floresta amazônica se transformam em um organismo vivo. Não são apenas imagens: são pulsações, respirações visuais que acompanham o ritmo da cena. Árvores que se agitam como se falassem, rios que correm ao contrário, olhos que surgem entre as folhas — tudo colabora para criar um cenário mutante, ora úmido e sufocante, ora etéreo e lisérgico. A floresta, projetada em camadas de luz e sombra, não é paisagem, é personagem: observa, reage, protege ou ameaça. É como se o público estivesse dentro de um sonho vegetal, cercado por raízes, cantos e segredos.

O tenor Jean William, no papel de Cobra Norato, entrega uma performance de altíssimo nível, com domínio vocal e cênico absoluto. Sua presença em cena é magnética, e sua voz — um tenor de coloratura — percorre os extremos da tessitura com brilho, precisão e expressividade, fazendo dele a figura mais estelar da ópera. Sua atuação dramática confere humanidade ao mítico, transmutando a lenda em carne e gesto.

Ao seu lado, a força vocal de Anderson Barbosa, também como solista de Cobra Norato, destaca-se pela potência e densidade interpretativa, em contraste harmônico com a leveza luminosa de Jean William. Já Idaías Souto, no papel do carismático Tatu de Bunda Seca, conquista o público com um personagem cômico e afetuoso, mistura de sabedoria e travessura, compondo um dos momentos mais encantadores da montagem.

A soprano Lys Nardoto, no papel da Rainha Luzia, surge como uma entidade de rara intensidade. Sua voz, de timbre límpido e poder dramático, paira sobre a cena com autoridade quase mística. Cada entrada sua é uma convocação do sagrado, como se a floresta se calasse para ouvi-la. Com presença cênica elegante e precisa, ela imprime em poucos minutos um impacto duradouro — sua breve participação deixa o público suspenso entre o assombro e o desejo de vê-la mais tempo em cena. É uma aparição fulgurante, digna da realeza encantada que representa.

Cobra Norato não é apenas uma ópera: é um ritual de brasilidade profunda, um mergulho estético e simbólico nas águas do mito, do modernismo e da floresta. A montagem atualiza com vigor e originalidade o poema de Raul Bopp, entrelaçando teatro, música, poesia e imagem em uma experiência sensorial rara no cenário lírico contemporâneo. O espetáculo revela que, mesmo em tempos de acelerada homogeneização cultural, ainda há espaço para a reinvenção de nossos próprios mitos.

Ao reunir intérpretes potentes, visualidade impactante e uma escuta atenta ao Brasil profundo, a ópera afirma que o imaginário popular é terreno fértil para a criação artística de excelência. Ao final, fica a sensação de que "entramos em um igarapé e saímos em uma estrela" —com o coração atravessado por cobras, cantos e encantamentos. Uma obra que pulsa no presente, mas reverbera como um eco antigo, ancestral.

01 de maio de 2025

[1] Artista-professor-pesquisador paraense. Formado pelo Curso Técnico em Teatro (ETDUFPA, 2015) e Licenciado em Teatro pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 2018). Mestre em Arte e atualmente doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes/UFPA) O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001".

FICHA TÉCNICA

Autor do Poema Original

Raul Bopp

Idealização do projeto e Libreto

Bernardo Vilhena

Direção Artística

Carla Camurati

Música

André Abujamra

Direção Musical e Regência

Maestro Silvio Viegas

Direção de Arte

Batman Zavareze

Figurinos

Ronaldo Fraga

Desenho de Luz

Wagner Pinto

Coreografia

Ana Unger

Visagismo

Omar Júnior

Direção de Produção

Bianca De Felippes

Produção Executiva

Nandressa Nunes

Solistas

Jean William

Marly Montoni

Anderson Barbosa

Idaías Souto

Lys Nardoto

Ytanaã Figueiredo

Elizabeth Moura

Ione Carvalho

Doppiones

Tiago Costa

Tassiane Gazé

Ytanaã Figueiredo

Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz, de Belém do Pará – OSTP

Regente Titular e Diretor Musical Adjunto

Miguel Campos Neto

Regente Assistente

Laura Mathias Gentile

Coro do Festival de Ópera do Theatro da Paz

Maestro do Coro

Vanildo Monteiro

Dramaturgia

Ligiana Costa

Assistente de Direção

Emanoel Freitas

Assistentes de Produção

Gabriela Newlands

Calu Tornaghi

Assessoria de Imprensa e Redes Sociais

Cléo Soares

Jeferson Höenisch

Pianista Correpetidora

Ana Maria Adade

Legendas

Gilda Maia

Diretor de Palco

Claudio Bastos

Contrarregra

Laura Conceição

Camareira

Paula Magalhães

Operador de Som

Anderson Sandim

Operador de Vídeo – Ensaios

Walmir Queiroz

Maquinistas

Ribamar Dinis

Nonato Rodrigues

Assistente de Iluminação

Carol Sarquis

Estagiária de Iluminação

Patrícia Gondim

Assessoria Jurídica

Roberto Silva

Making of

Pietra Baraldi

Programação Visual

Berna Magalhães

Criador de Conteúdo Visual

Índio San

Animador de Vídeo Cenário

Duda Souza

Editor de Vídeo Cenário

João Oliveira

Assistente de Direção de Arte

Gabriel Silveira

Assistente de Arte

Teresa Ribeiro

Produção Audiovisual

Miriam Peruch

Assistente de Figurino Belém

Cláudio Rego

Acessórios

Mariane Sampaio

Assistente de Figurino

Rodrigo Januário

Modelagem

Rosângela Moura

Sapatos

Virgínia Barros

Acabamentos Figurinos Belém

COOSTAFE - Cooperativa Social de Trabalho Arte Feminina Empreendedora

Co-realização

Secretaria de Cultura do Governo do Pará

Patrocínio

Instituto Cultural Vale

Realização

Gávea Filmes