Coisas de Princesa – Por Edson Fernando

16/05/2023

Montagem Teatral: Lérygou – Princesa do Pitiú

Montagem: Assucena Pereira  

Edson Fernando[1]

Confesso que nunca gostei dos desenhos animados e nem das animações cinematográficas dos estúdios Walt Disney. Mickey, Minie, Pluto, Pateta, Donald e cia se fizeram presentes em minha infância por uma imposição da programação da TV aberta brasileira. Mas sempre que havia outra opção, trocava de canal imediatamente. Aqueles personagens me pareciam chatos, bobalhões, os cenários artificiais, as histórias confusas e, o principal, as cenas musicais me davam – e me dão ainda – náuseas.

Pra não ser injusto, destaco a animação "Donald no país da matemática" – produção animada de 1959, com aproximadamente 30 minutos de duração –, um desenho que assisti pela primeira vez por volta dos meus quatorze anos de idade e que, tirando a voz insuportável do pato Donald, me cativou pelas analogias didáticas que a produção consegue fazer de modo muito simples e, sobretudo, divertido.

Um pouco mais recentemente (2020), tive a missão torturante de levar minha sobrinha para conferir Frozen 2. Todas as minhas implicâncias voltaram com força total durante as quase duas horas de exibição desse longa, principalmente em relação as cenas musicais. Acho que aproveitei pra dormir em boa parte da exibição, enquanto minha Sobrinha se refestelava na cadeira ao lado, cantando e gesticulando os passos das personagens da telona.

Certamente, toda essa cisma com esse universo dos estúdios Walt Disney me acompanhou para o encontro com a "Princesa do Pitiú", tanto que relutei em ir conferir a montagem teatral em outras oportunidades. O "Pauta de quinta" – projeto desenvolvido pelo Casarão do Boneco –, ocorrido neste último dia 11de maio, me pareceu a ocasião adequada para superar essa implicância/trauma. Depositei minhas esperanças no fato de se tratar de uma montagem teatral que visita o universo Disney, obviamente sem necessariamente reproduzir e/ou se prender aos clichês, formato e estrutura narrativa das animações. E, felizmente, minhas expectativas foram confirmadas.

Para começar, a típica cena musical com a protagonista esbanjando toda a sua desenvoltura no canto, abre a montagem – se a minha memória não estiver me trapaceando. Confesso que os instantes iniciais, ouvindo àquela canção do filme sendo dublada por Assucena Pereira, me causaram certa repulsa, pelos motivos já apresentados anteriormente. No entanto, essa repulsa é logo superada quando os demais signos teatrais, presentes no palco, redimensionam a cena e, consequentemente, a montagem como um todo, para a dimensão da comicidade paródica. Neste primeiro contato com a montagem me refiro, especificamente, ao cenário-figurino localizado no centro do palco – que na minha percepção cria a lona do circo –, o figurino e os acessórios da Princesa do Pitiú, mas, sobretudo, a atuação de Assucena. É neste último elemento que encontro toda a versatilidade e vitalidade da encenação, pois é o trabalho de atuação de Assucena que vai construindo e ajustando as "engrenagens" da encenação e também promovendo suas rupturas – por vezes bruscas, por vezes sutis – por meio do agrupamento de diferentes formas e procedimentos cênicos – paródia, lazzi, gag, esquete, sátira, palhaçaria –, mas também recorrendo a clichês de tele programa de auditório, malhação de Judas (brinquedo popular?) e até manifesto político.

Pode parecer muitos elementos para serem desenvolvidos numa única montagem teatral. Mas a Princesa do Pitiú os agencia de modo versátil ao longo de toda apresentação, pois a encenação não se compromete, a rigor, com uma fábula no sentido aristotélico, isto é, com o desenvolvimento e trama dos acontecimentos/fatos. Então, ao invés de acompanharmos a trajetória de vida da Princesa do Pitiú – tal como as produções cinematográficas do universo fantasia costumam fazer, e as animações da Disney não fogem à regra, utilizando-se das etapas da "jornada do herói", de Joseph Campbell, quais sejam: 1. Mundo comum; 2. Chamado à aventura; 3. Recusa do chamado; 4. Encontro com o mentor; 5. Travessia do primeiro limiar; 6. Provas, aliados e inimigos; 7. Aproximação da caverna secreta; 8. Provação; 9. Recompensa; 9. Caminho de volta; 11. Ressurreição; 12. retorno com o elixir –; ao invés disso, temos apenas os recortes precisos e necessários para expor as questões temáticas de interesse da encenação. E embora esses recortes estejam atados diretamente à toda pungência da vida pessoal da atuante, eles acertadamente, a meu ver, não são desenvolvidos, mas sim epicizados para que nós os dimensionemos ao nosso tempo e lugar.

"– Um dia me disseram que eu não podia ser Princesa!", exclama a Princesa do Pitiú, numa das cenas iniciais, em evidente relação direta a cor preta da sua pele. Como lidamos com isso hoje? Como as produções cinematográficas lidam com isso hoje? Como a teledramaturgia nacional lida com isso hoje? Como as escolas lidam com isso hoje em suas produções teatrais? Enfim, como lidamos hoje com as questões e implicações ligadas ao tema do preterimento?

Todas essas questões explodem em nosso peito quando os procedimentos de comicidade da encenação cedem total espaço para o seu manifesto político. Não quero criar, aqui, a dicotomia entre comicidade e manifesto político, como se um não se fizesse presente no outro – as bufonarias e toda ordem de grupos e cias que trabalham com o burlesco estão aí, ao longo da história do teatro no ocidente, para comprovar exatamente o contrário. Apenas destaco que a opção tomada pela encenação para trazer à baila esse discurso/debate, na cena destacada acima, se faz apartando esses elementos. Talvez o choque de realidade necessário para que os mais desavisados – ou, simplesmente, o analfabeto político – se deparem, a fórceps, com a realidade, sem véus, de milhões de brasileiras de pele preta.

Opção diferente é tomada pela encenação na gag do nosso "amigo" Enzo. Nesta, todos os recursos de lazzi – isto é, toda sorte de jogo mímico, pantomímico e/ou fisionômico que dispensa o recurso da palavra, segundo Dario Fo – são empregados pela Princesa do Pitiú para acentuar o absurdo presente no discurso de pessoas brancas, como Enzo, que dizem sofrer "racismo reverso". Aqui, então, quanto mais grotesco, violento e explícito é o gesto de surrar a cara de Enzo – numa cena que me pareceu semelhante à malhação de Judas – maior é o efeito didático e lúdico da cena.

Nos dois casos citados, as cenas se valem da estrutura episódica da encenação para atingir o efeito desejado. E assim os temas são expostos sem que seja desenvolvida a fábula pessoal da Princesa do Pitiú. Mas, se desconhecemos os por menores de seu drama pessoal, o mesmo não se pode dizer do contexto histórico no qual ela está inserida, pois é ele – contexto histórico – que é trazido e colocado para o jogo com a plateia a cada situação-problema que é apresentada em cena. Então, o que chamei anteriormente como sendo as "engrenagens" da encenação, se referem a estas situações-problemas que estão dispostas ao longo da montagem e que nos convocam a refletir sobre questões sociais. A comicidade, portanto, encontra seu papel fundamental aqui, uma vez que o cômico consegue lidar com questões delicadas, ásperas e/ou graves, de modo suave e lúdico, por meio de diversos recursos como a ironia, o ridículo, o burlesco, o grotesco, a farsa, o histriônico, a hipérbole, a bobagem, a bestice, o nonsense, dentre outros.

Boa parte desses recursos de comicidade são usados pela Princesa do Pitiú. Ela conduz a encenação indo desde a esquete do "teste de equilíbrio", aparentemente inconsequente, na qual fui literalmente alçado para o centro do palco para participar de um teste que consistia em equilibrar uma latinha de cerveja; até a gag que celebra "um minuto pela consciência branca". No caso da primeira, digo "aparentemente inconsequente", pois ela nos permite refletir sobre as pessoas que se dizem equilibradas, sobre uma sociedade que se diz equilibrada, sobre os valores sociais que nos regem e nos exigem que sejamos equilibrados, mesmo diante do fato dos direitos sociais entre brancos e pretos não ser nem um pouco equilibrado, embora tudo que se passe, em cena, durante essa esquete, seja simplesmente um teste que exige equilibrar uma latinha de cerveja em algumas partes do corpo. Portanto, quando deslocada do contexto da situação-problema que a encenação apresenta, talvez essa esquete soe como o bom e velho "encher de linguiça"; mas basta um olhar mais atento ao conjunto da obra para perceber que o discurso por equilíbrio numa sociedade desiquilibrada não faz nenhum sentido.

E mais: como podemos nos sentir incomodados com o grito urgente por equiparação histórica de direitos? Temos o direito de nos sentir incomodados quando esse grito é expresso por meio de vociferações literais, desacompanhadas da métrica ou de qualquer filtro poético?

A Princesa do Pitiú parece entender muito bem os movimentos atuais das peças do tabuleiro do jogo do poder e do alto de sua realeza não hesita em escalar uma das torres do Veropa, para gritar: "Vocês vão ter que me engolir!". Ou ainda: "Hei Caralho: Chegamos! Estamos aqui e não aceitamos nada menos do que seja nosso por direito".

E ainda que ela nos ofereça toda sorte de comicidade para que nosso encontro se faça sob o efeito e auspícios do riso, ela não dispensa a reflexão crítica.

Evoé!!!

Ou melhor: Lerygou!!!

[1] Ator e diretor teatral; coordenador do projeto Tribuna do Cretino;

Ficha Técnica:

Palhaça:

Assucena Pereira

Iluminadores:

Bolyvar e Enoque Paulino

Cenógrafos:

Bolyvar e Enoque Paulino

Figurinista:

Nanan Falcão

Sonoplasta:

Victória Souza

Fotografia:

Dani Cascais

Direção:

Alysson Lemos