Como assar um Brecht pumpernickel e dividir seu miolo ao forno naturalista? – Por Raphael Andrade

25/01/2020

Montagem: Os fuzis da Senhora Carrar

Montagem Teatral: Drama Rasgado

Raphael Andrade[1]

Podemos dividir o processo de forneamento do pão em três fases: 1 - Crescimento; 2 - Formação do miolo; 3 - Coloração da crosta. O forno precisa estar bem quente antes de receber a massa do pão alemã pumpernickel. São necessários estudos de tempo, forma e simbioses estilísticas para preaquecer o pão caseiro considerado mais dramático de Brecht, no qual carrega a fama de clássico mundial, também chamado "Os Fuzis da Senhora Carrar" (Die Gewehre der Frau Carrar), receita produzida pelo autor em 1937, um ano após ter estourado a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

No crescimento (oven spring), há a dicotomia e, logo após, a hibridização de como montar a massa Brecht na contemporaneidade. A padeira de descendência árabe, Jansen, que possui a assadeira brechtiana, expressa, de antemão, quem manda na receita. Mormente ao misturar a proposta essencial e educativa de reflexão e, sobretudo, no que tange à intervenção ideológica histórica de um teatro dialético que preza o efeito não catártico, junto ao miolo à la Emile Zola, isto é, naturalista, em que a padeira se ancora na maior parte do forneamento.

Pronto, ingredientes prontos! Agora é esperar crescer junto ao vapor de água interno - com crescimento médio de 0:00 até 0:20 minutos. Após 20 minutos ao forno, o pão já cresceu o suficiente, mas o miolo ainda não está completamente assado e precisa de pelo menos mais uns 20 minutos. Todavia, dependendo das ordens da padeira Jansen, pode durar semanas e até meses, pois o apuro estético é requisito primordial da referida padeira-diretora.

Na formação do miolo, o pão dramático-híbrido é composto por um ato, mas especificamente com a duração de assar a massa no forno brechtiano, no qual a ajudante principal, Teresa Carrar, de antemão, põe ao forno para cozer, logo no início do atendimento.

Ao volver olhar na ambiência cênica do espaço realista da padaria denominada "Pérola da Campina", ou melhor, naturalista, nos seduz o objetivo minimalista: teto baixo, espaço cênico pequeno, parede descascada com a iconografia do Cristo profilático pendurado, a rede de pescar que nos lembra que, ali próximo, há um rio. Além de conter janela, mesa e, obviamente, o forno e cadeiras - elementos que potencializam a tensão claustrofóbica da narrativa de assar um pão à la Bertolt.

Os ajudantes da padeira, interessantemente, têm a cara pintada com pó alvo e pequenos traços que nos remetem a mortos vivos; ou, quem sabe, numa possível leitura conceitual de como máscaras escondem sentimentos duvidosos. E, que, possibilita, outrossim, o estranhamento proposto pelo autor do pão aos operários de sua padaria.

No mais, ao esperar o pão ficar pronto para a degustação, percebo que não há cartazes que se referem ao preço e ademais informações épicas como o autor do pão incipiente prescreve. Não há, também, iluminação à mostra que desse efeito de estranhamento aos clientes (proposta esta intrínseca na padaria brechtiana), muito menos filigranadas modulações do desenho de luz, algo que poderia deixar o ambiente com nuances. Sem me referir que, o score sonoro, detém poucas músicas e, o rádio imaginário, conserva propagandas corrosivas referentes ao governo fascista e leproso brasileiro, que odeia presentear com o pão "as pessoas pobres".

Ah, já ia esquecendo, mas há vinho, e vinho bom e cheiroso! Jansen presenteia seus clientes com um processo fluente-narrativo, fundido em pequenos recortes de distanciamentos, mas com aporte ficcional preponderantemente verista. Certamente, Brecht morreria, novamente, mas desta vez de infarto, se pudesse vislumbrar a audácia naturalista da supracitada padeira para com os clientes. Mas ela não liga - "ele que lute"! "- Ainda bem que a proposta dá certo", pensei. O efeito proposto pela catarse das cenas vistas no referido local, fariam o grego Plantão vingar-se e rir do alemão dialético.

Ao passar dos 40 minutos de espera, já podemos vislumbrar a formação da crosta, o pão está quase pronto! Como bom degustador e bisbilhoteiro de histórias alheias, não poderia deixar de observar os trabalhadores da padaria e suas ações para com os quatro clientes que esperam, enfim, degustarem o alimento ao forno. De antemão, percebi que todxs são bem treinadxs, alguns detém mais força cênica do personagem que vestem para agradar à clientela - como José e Pedro Jaqueiras, algo normal na profissão. Contudo, Só não entendi a palavra "né" referida duas vezes, seria uma palavra inventada por Brecht?

Percebo, que, não podemos escapar de ser cúmplices da espontaneidade gestual e da força interior da atendente Carrar, que possui muito carisma, indubitavelmente. Porém, às vezes, sem dar conta disso, rouba a gorjeta apenas para si. O padeiro russo Stanislawski, dono de padeira de fino trato, certamente adoraria suas nuances físicas e potentes, especialmente ao transparecer para os clientes sua memória afetiva. Já Brecht, bom... Deixa o pobre quieto!

Já são quase 60 minutos, o pão está pronto. A senhora Carrar retira o pão do forno, Ele precisa de pelo menos 15 minutos de descanso para resfriar e terminar de assar internamente. Se cortá-lo antes do tempo, perceberemos seu interior úmido, no qual deixa uns grumos de miolo na faca-fuzil. Se passasse mais tempo de espera, provavelmente, o pão iria tostar, mas a padeira tem experiência de assar o miolo ao forno naturalista.

A massa está pronta e crocante. Carrar retira o pão da fornalha e o mostra com veemência, como quem diz: " - O pão está servido à mesa! Se faz insurgente e aprazível vê-lo e comê-lo várias vezes!"

Saio da padaria satisfeito e desejando BOM APETITE para os que têm fome e, principalmente, consciência de repartir o pão ideológico com os que têm esperanças vitoriosa de uma mesa farta e popular, pois a neutralidade não enche a pança e nem produz miolos!

24 de janeiro de 2020.

[1] Professor-artista-pesquisador. Pós-graduando em Arte e Educação.

Ficha Técnica:

Elenco:

Augusto Aragão (José)

Claudia Gomes (Tereza Carrar / Senhora Pérez / Mulher rezadeira)

Danielle Cascaes Dantas (Mulher rezadeira)

Fernando Sarmento (Pablo / Padre / Pescador)

Isabella Valentina (Manuela / Senhora Perez / Mulher rezadeira)

Larissa Latif (Tereza Carrar / Senhora Pérez / Mulher rezadeira)

Odin Gabriel (Pedro)

Direção:

Karine Jansen

Criação gráfica:

Raphael Andrade

Vozes:

Aj Takashi

Taís Sawaki

Sonoplastia:

Odin Gabriel

Isabella Valentina

Dani Cascaes

Figurino:

Isabella Valentina / Coletivo

Cenografia e Adereços:

Fernando Sarmento / Coletivo

Imagens:

Dani Cascaes

Assessoria de imprensa:

Lucas Del Corrêa