Cuidado com a Cuca que a Cuca te pega – Por Silvia Luz

08/04/2019

Ato Poético: Árvore de Mim

Direção, Dramaturgia e Performance: Michele Campos

Silvia Luz[1]

Cuidado com a Cuca[2] que a Cuca te pega

E pega daqui e pega de lá

Cuidado com a Cuca que a Cuca te pega

E pega daqui e pega de lá.

(Cássia Eller)

- Tia Anastáciaaaaaaa me tira daqui!!!!!!!!!

Ater-nos-emos no Ato poético.

Parecia estar num confessionário do século XIV, dentro de uma aterrorizante igreja medieval. Ouvia gritos e sussurros, quando de repente alguém colocou um saco na minha cabeça, meus olhos e narinas se dilataram numa ausência de ar, que me fizeram descobrir demônios e monstros projetados no fundo do altar, talvez dentro de mim.

Um deles tinha rabo e uma forma demoníaca, sua calda era retesada e seu corpo tinha uma androgenia. O medo avassalador me fez desmaiar. Foi aí que vi a chama da vida dentro dos olhos dela. Sim, era Ela, mas não podia encará-la. Eu era iniciante no Jogo da Vida, não tinha permissão para isso. Mas, a criança que habita em Mim, acordou e desobedeceu uma regra do jogo. Fitei os olhos na Chama e

Cuidado com a Cuca que a Cuca te pega
E pega daqui e pega de lá
Cuidado com a Cuca que a Cuca te pega
E pega daqui e pega de lá

A Cuca é malvada e se fica irritada
A Cuca é zangada, cuidado com ela
A Cuca é matreira e se fica zangada
A Cuca é danada, cuidado com ela

(Cássia Eller)

Ai meu São Benedito e agora? Tinha que dormir, tinha que dormir, caso contrário.... "Nana neném que a Cuca vem te pegar, papai foi pra roça, mamãe foi trabalhar. Bicho-papão, saia do telhado, deixe a Silvia dormir sossegada"

Nã na neném... umumum... Eis que com os olhos mesmo fechados, eles foram vitimados pela luz, que assustadoramente me faziam ver o passado e o futuro. Deixei essa luz me invadir, me rasgar, me dilacerar a ponto de fazer minha respiração esvaecer por longos minutos. Ainda com o saco na cabeça... Num delírio real vejo uma mulher metamorfoseada num ser não humano, tinha uma calda e no lugar da cabeça, saía um fogaréu que alumiava nosso destino... foi aí, que num uhharrr do galo, vi uma menina-mulher mais branca que o leite, parecia assombração. Seus seios de menina mãe alimentaram gerações e gerações. Essa transmutação acontecia sempre com essa pobre moça, anos após anos, carregava essa maldição dos seus ancestrais.

Para desfazer essa mandinga, a cura desse mal; era necessário apenas uma gota de sangue da jovem, um breve e singelo corte.

"Boi, boi, boi Boi da cara preta. Pega esta criança que tem medo de careta".

"Boi, boi, boi Boi da cara preta. Pega esta criança que tem medo de careta".

Chegara o dia da libertação. Lua vermelha no céu, o sangue jorraria pela fonte da vida, mas como uma profecia, houve a incisão, uma lâmina fina veio riscando seu ventre e como um sopro de vida, o sangue jorra como se fosse um choro emudecido e, então, nasce a história de MIM, árvore que gera frutos e revoga maldições. E assim essa menina mulher quebra a couraça do mostro e revela-se diante de todos nós. Despida de si mesmo e com muitos "Si" de nós mesmos.

Preciso respirar... Me soltem!!!

A atriz Michele Campos me afetou visceralmente, o corpo era dilatado e pulsante, irradiava vida e morte, luz e trevas. Ela parecia ter acordado de um sono profundo e despertara muito faminta, capaz de nos devorar e cegar nossos olhos com tanta luz que irradiava, por um momento vi uma grande bola de fogo, esta que desperta para nos livrar dos perigos, sendo capaz de inflar os inimigos mais escondidos.

Amalgamada em minha cadeira, embriagada de sensações múltiplas e inexplicáveis, minha cabeça roda e agora com o corpo todo tensionado e embebido pela Luz que é a própria extensão do corpo de Michele, somada à veste que a cobre, mais a ambientação cênica, tudo isso é uma coisa só, fluida. O ato revolucionário da artista é líquido. O teatro é por princípio impermanência, se dá aqui e agora, na efemeridade do espetáculo. A atuante foi a mensageira e a própria mensagem, desenvolveu em si a própria linguagem. Ela usou por diversos momentos o uso consciente da energia da Presença e com isso capturou a atenção do espectador, assim como o imã atrai o metal.

Preciso Respirar. Preciso respirar!!!

Lá vem ela como uma vaga-lume. Ouço um assovio que adentra meus tímpanos e desperta cada vértebra de meu espinhaço, pelos se ouriçam e olhos esbugalham. Espasmos dominam meu corpo e o assovio cada vez mais estridente e, então começo a rezar e de repente a velha de Luto aparece e diz:

- Quem quer? Quem quer?

E como uma rasga mortalha a atuante diz: - EU QUEROOO!!!

Aí começa a Ressurreição e o ciclo se re(inicia). Ao engolir a Si mesma, há um despertar, um quebrado ciclo em uma busca evolutiva do espírito noutros planos. Porém, no momento da Lama, um corpo argilado é cuspido. Preciso ser acalentada, tira o saco da minha cabeça, por favor!!!

"Dorme, dorme, meu filhinho,

É noite e papai já veio.

Teu irmãozinho também dorme,

Embalado no meu seio.

Dorme, dorme, meu filhinho,

Que os passarinhos já estão dormindo,

E as estrelas cintilantes,

Lá no seu estão luzindo". 

Faz-se necessário morrer para Roda da vida girar. Campos é a própria roda que nos enlaça e nos apresenta os opostos que somos, uma referência a Yin e Yang, ou pólos masculino e feminino, dia e noite, bem e mal, e outros paradoxos da natureza. A roda continua a girar e a irradiar dor e prazer, teu corpo bailava de uma forma a me arrastar na tua pele, teus poros exalavam o cheiro da Terra. Teus movimentos corporais me revelaram muitas Mulheres, inclusive a mim. Com passos lentos, o corpo curvado para frente apoiado em sua própria raiz. O que vi foi uma atuação sensível e pulsante, de dentro para fora, sustentada pelo seu próprio ventre, uma irradiação energética do corpo-mente.

Testemunhei um Ato poético-político onde Sol, Terra e Lua ficaram alinhados.

"Lua vermelha
minha namorada
flor desabrochada
leite de pequim

Lua vermelha
noite que menstrua
lua lua lua
por cima de mim".

Hoje fechei um ciclo começando outro.

"CUIDADO COM A CUCA, A CUCA TE PEGA, TE PEGA DAQUI TE PEGA DE LÁ."

EVOÉ.

07 de abril de 2019.

[1] Atriz e professora/ Doutoranda em Artes pelo PPGARTES-ICA/UFPA.

[2] Na língua tupi a palavra Cuca significa tragar ou engolir de uma vez só.

REFERÊNCIAS

BARBA, Eugenio. A canoa de papel: tratado de antropologia teatral. São Paulo: Hucitec, 1994.

CASCUDO. Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de janeiro: Editora Publicação S/A. CEJUP, 1995.

LOBATO, Monteiro. O Picapau Amarelo, 34 ed. São Paulo: Brasiliense, 1997.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Culturas: uma poética do imaginário. São Paulo:

Ficha Técnica:

Ato Poético:

Árvore de Mim

Direção, Dramaturgia e Performance:

Michele Campos

Ambientação Cênica e Desenho de Luz:

Patrícia Gondim

Cenotecnia e Elétrica:

Zé Igreja

Assistência de Cenotecnia e Visualidade:

Luiza de Marillac

Concepção Musical e Ambientação Sonora:

Matheus Moura

Concepção e Pesquisa de Figurino:

Maurício Franco

Supervisão de Movimento Cênico:

Waldete Brito

Apoio-Técnico e Contra-regragem:

Amanda Melo

Arte Gráfica e Design de Mídia:

César Aires Pereira

Fotos e Filmagens:

DesireeGiusti, Marise Maués e Rodolfo Mendonça

Produção:

Michele Campos e Patrícia Gondim