Denúncia e Resistência: Locucionar Dissidências e Criar Insurgências – Por Raphael Andrade

23/12/2018

Montagem Teatral: Gota D'água - A voz Que Me Resta.

Autores: Chico Buarque e Paulo Pontes

Montagem: Cursos técnicos da ETDUFPA - Ator, Cenografia e Figurino.

Raphael Andrade[1]

"Assim, a meus olhos, o malvado, o hábil no falar, merece o mais severo castigo. Como, com efeito, ele tem confiança na habilidade de sua linguagem em esconder sob belas palavras suas mós intenções, não receia praticar o mal" (EURÍPIDES, 1980, p. 182), explicitava em tom ameaçador a epigrama poética do dramaturgo trágico grego Eurípides (480 a.C. - 406 a.C.), no que tange sua peça Medéia (431 a.C.), que tem como fulcro as agitações da alma humana, especialmente no que diz respeito à alma feminina. Tal peça trágica possui como esteio uma narrativa mítica-poetizada-transcendental, em que a paixão vilipendiada no ódio de Medéia por Jasão, ao sentir-se traída, leva-a à sentença nefasta de vingança por seu amor que fora humilhado.

Na versão tupiniquim, a adaptação do referido texto grego foi primeiramente reformulada pelo dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) para a teledramaturgia brasileira, intitulada Caso Especial Medéia, versão que deu origem à peça teatral vista como um clássico de nossos tempos cognominada de tragédia brasileira Gota d'água (1975), que fora escrita a quatro mãos - Chico Buarque e Paulo Pontes - em que revela uma releitura moderna do texto clássico euripidiano, onde a narrativa é transferida para uma comunidade suburbana e Jasão é um sambista boêmio que, em sua juventude galante, desperta o atordoante protecionismo materno-sexual de Joana.

A trama tem como cerne a temática social, no qual desvela a alma do povo brasileiro. Percebe-se, em Gota d'água, a reflexão sobre as camadas subalternas e o poderio das classes dominantes, no qual por intermédio da malandragem de seus habitantes são desvelados diferentes tipos de corrupções que, infelizmente, hodiernamente ainda corrói a bandeira da terra que nem Cabral queria descobrir. Os autores empregam uma linguagem metafórica no texto, sobretudo para enganar os "podres poderes" vigentes da época, isto é, a ditadura militar. Nesta perspectiva, a literatura está intimamente atrelada à sociedade, visto que a obra em questão é uma tentativa de reproduzir a vida social e enfatizar a experiência capitalista - experimento este seletivamente impiedoso, no qual possui como slogan um país "acima de tudo" e os "poderosos acima de todos".

Na trama, Buarque e Pontes vão além da questão estatal da corrupção, procurando explanar o contato intersubjetivo de um povo "moralista" que é corrompido na primeira oportunidade. Isso pode ser visto em várias passagens da peça, tendo como figura chave a persona de Creonte, que simboliza o governo e a burguesia frente à exploração da classe oprimida e, que, possui como trunfo a solércia frente aos pobres enganados num discurso de crescimento do país e/ou de uma comunidade (acho que ouvi esse discurso há pouco tempo...). Sem me referir ao jogo de palavras usados no texto sobre o processo de ascensão social, na passagem metafórica entre Jasão e o sogro sobre a "cátedra-trono" que nos remete implicitamente sobre os objetivos de desejo e poder e, concomitantemente, o poder da manipulação e do corrompimento. Portanto,a supracitada peça, é um misto de Denúncia e resistência - onde possibilita Locucionar Dissidências e Criar insurgências.

Neste prisma, nada mais oportuno que remontar a referida peça em pleno século XXI, pois a mesma ainda possibilita uma potente analogia do tempo que fora escrita para a sincronicidade, pois, em um contexto geral, só mudaram as gravatas dos cabeças brancas e as cuecas recheadas de cifrões e espurco. É o que podemos vislumbram na montagem teatral Gota d'água - A voz que me resta, resultado interdisciplinar dos cursos técnicos em ator, cenografia e figurino da ETDUFPA, apresentado no teatro universitário Cláudio Barradas. Na oportunidade, pude presenciar a sessão das 18h30 de uma quarta-feira despretensiosa, em um teatro lotado e sedento em participar desta peça de renome nacional, no qual irei explicitar minhas impressões, a seguir.

Ao adentrarmos nas dependências do supradito teatro, somos arrebatados pela ótima e funcional mise-em-scène, que por um momento pensamos que haveria uma interação com os espectadores pela disposição dos mesmos dentro da cena. Todavia logo percebemos que somos apenas observadores da trama. Após a música inicial, antes de nós entrarmos, há uma demora enfastiante à procura de lugar para nós sentarmos e, que, interrompe o clima inicial dos atuantes em cena. Ao dar início novamente as ações cênicas, uma certa sensação de desequilíbrio perpassa pelo arrebatamento de muitos personagens juntos e de passagens entrecortadas dos moradores da vila.

Porém, o enredo ganha forma e brilho após os vinte primeiros minutos e a potencialidade se torna mais veemente na conexão com a "sacada" dos atuantes ficarem estáticos ao terminar a ação, mormente ao transferir para pequenas sketchs emolduradas ao vivo por um incisivo score sonoro tríade. Onde a progressão dramática se desenvolve entre um jogo de situações e de palavras cruzadas extrapolando a cínica conexão dos moradores suburbanos.

O ambiente é transpassado por funcionalidade no cruzamento dialético das personas pelos elementos cenográficos. Perpassada pela modesta, mais bem utilizada iluminação cênica e de uma indumentária esmerada que nos remete aos anos setenta, transpassado por alguns desvios no que diz respeito ao visagismo de alguns atores, principalmente ao pintar bigodes falsos com lápis e/ou pincel chinfrado (ai, que calor!).

Entretanto, onde deveria ter uma perceptível correspondência musical reside o maior deslize desta montagem, especialmente pela mesma ser hibridizada com canções que deixam a desejar a dicção de alguns atuantes; porém não só as canções, mas o próprio texto no qual os atores-atrizes mepsoc o euqmereuq es rirefer. Entendeu? Não, né? Pois então, é desta forma que os espectadores se sentem ao não conseguirem entender o que a (o) atuante pronuncia. Mazela esta que perpassa em quase todo o espetáculo, tanto nas modulações de voz, como de cantos abafados pelo som dos instrumentos musicais. Seria por isto que o subtítulo usa metaforicamente o cognome de "A Voz Que Me Resta"? TSC. TSC.TSC.

Na trama, podemos vislumbrar atuantes que dão conta das duas horas de peça, e a mesma não se torna cansativa em nenhum momento, algo raro por essas terras. Alguns atuantes se agigantam no palco como a vigorante performance do "Cacetão" interpretado por uma atriz que possui o ponto certo da comédia e que não "perde" o personagem em nenhum momento. Além da crível e potente presença não estereotipada de "Estela", que me remeteu as mulheres suburbanas da realidade. Tal espontaneidade e vigor de atuações enérgicas são vistas na sintonização do potente atuante que representa Jasão, que possui uma beleza, quer dizer, uma destreza potente nas suas ações, além da coesiva e empática apresentação de Joana - apesar da mesma não possuir a nota exigida na tônica, consegue transpor a emoção e visceralidade de maneira congruente e progressiva.

O que podemos vislumbrar em Gota d'água - a voz que me resta é o que sempre foi visto (na minha percepção) nas montagens do segundo ano do técnico em ator, onde é priorizado as atuações viscerais e potentes dos atuantes "à la Paulo Santana" e a tonicidade certa de Marluce Oliveira, atravessado pela música que vibra o corpo de forma a levar o atuante para outras formas de vislumbrar o fazer teatral. Algo, que, pude presenciar pelos atuantes que "ficam pelo caminho".

Nesta perspectiva, gostaria de fazer uma reflexão ao nosso ofício de atuação, que se estende para os cursos de cenografia e figurino. Será que nós (me incluo nisso por ter finalizado o curso técnico em ator na ETDUFPA) estamos preparados para a mais nova jornada que teremos pela frente? Isto é, será que nós iremos ser profissionais éticos do ofício que nos propusemos exercer? Porque, na minha visão, ser "profissional" vai além de decorar um texto e se mostrar aos espectadores. Bons atores necessitam ter disciplina - disciplina esta que se estende ao cuidado com a voz, com o corpo, no comprometimento com o seu trabalho e nos demais do processo que estão inseridos. Comprometimento no horário dos ensaios, na leitura do texto, no estudo visando sempre aperfeiçoar o trabalho, pois o nosso corpo e o intelecto são nossos instrumentos de trabalho. Que possamos, portanto, lembrarmos disto ao levantarmos a mão direita e jurarmos no dia da solenidade sobre a profissão de sermos artistas da cena.

Retornando à trama, o ápice está na passagem final, onde Joana movida pela vingança ao ser humilhada e traída por Jasão, vinga-se matando seus filhos e a si própria. Podemos fazer uma analogia nesta passagem trágica com a simbologia de uma crítica ao sistema capitalista, ou seja, é uma forma de denúncia social, embora ela planeje se vingar do ex-companheiro, nas entrelinhas podemos encontrar uma tentativa de clemência por justiça social.

Ao apagar das luzes, o corpo inerte de Joana permanece sentado à espera da licitude, a qual é amparada de forma coletiva pelos demais personagens, codificando que todos estão encurralados pela engrenagem político-social que assola os grupos minoritários.

Por fim, o espetáculo transpassa nestes tempos sombrios, fonte de potente denúncia, ao ratificar a importância de locucionar dissidências e criar insurgências pela ótica mais aprazível e pujante - o fazer teatral. O espetáculo nos alerta que a mesma chuva torrencial que é capaz de florescer os jardins das nossas mentes, pode ser extirpada frente à normatividade corrupta que nos assola e grita e, caso não possuirmos como fonte vital o ativismo e a esperança, nem mais uma gota d'água sobrará como bonança, mas apenas um som abafado da voz que nos resta ao presenciarmos a invertida correnteza e não podermos resistir mais à ressaca.

22 de dezembro de 2018.

Referência

EURÍPIDES. Medéia in "ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPIDES. Prometeu acorrentado; Édipo Rei; Medéia". São Paulo: Abril Cultural, 1980.


[1] Ator, Performer, Graduando em licenciatura em Teatro; Participante do projeto TRIBUNA DO CRETINO.

FICHA TÉCNICA
Elenco
Joana: Penélope Lima, DamiseVanessah e Mariane Malato
Jasão: Athos Brenno, Enoque Marinho e Igor Juan
Creonte: Caio Cezar Dias e Filipe Marques
Egeu: Mariana Morhy e Jordan Navegantes
Alma: Karla Almeida e Duh Mebarak
Corina: Lays Portela
Cacetão: Jam Bil e Andrew Monteiro
taNenê: Kárita Almeida e Vanessa Farias
Estela: Assucena Pereira e DuhMebarak
Zaira: Mariane Malato e Diana Lins
Maria: Damise Vanessah e Filipe Marques
Boca Pequena: Penélope Lima e Enoque Marinho
Amorim: Athos Brenno e Hugo Corrêa
Xulé: Igor Juan e Jordan Navegantes
Galego: Andrew Monteiro e Hugo Corrêa
CORO
Penélope Lima, DamiseVanessah, Mariane Malato, Diana Lins, Caio Cezar Dias, Filipe Marques, Mariana Morhy, Jordan Navegantes, AthosBrenno, Enoque Marinho, Igor Juan, Karla Almeida, DuhMebarak, Lays Portela, Jam Bil, Andrew Monteiro, Kárita Almeida, Vanessa Farias, Assucena Pereira, Hugo Côrrea.

Preparação de Atores, Direção e Encenação:
Marluce Oliveira e Paulo Santana

Assistentes de Direção:

Claudio Raposo, Joyse Carvalho e Marta Teixeira

Concepção e Direção Coreográfica:

Carol Gama

Concepção Musical/Direção:
José Maria Bezerra

Músicos:
Pedro Miranda Júnior (violão, guitarra)

Orientadores de Visualidade:
Beto Benone e Micheline Penaforte

Cenografia:
Winne Rodrigues Freitas, Leonardo Pontes e Paulo Rocha.

Assistentes de Cenografia:
Marcus Cesar, Ysamy Chachar, Manoel A. Costa da Silva, Farid Zahalan, Lucas Belo, Josué Rente e Max Alexandre dos Santos.

Figurino:
Nanan Falcão, Paula Rocha, Sônia Santos e Tatla Mokdei.

Assistentes de Figurino:
Bonelly Pignatário, Dani Franco, Elisangela Teixeira e João Paulo Pereira.

Fotografia:
Danielle Cascaes