Dez anos depois: entre a crítica, o afeto e a extensão – Por Raphael Andrade
Republicação da Crítica, versão revisada e ampliada, a partir da Montagem teatral "Falo de Genis"
Montagem: Resultado da Turma do 1º ano do curso Técnico em Ator – ETDUFPA
Raphael Andrade[1]
Hoje faz exatamente 10 anos que publiquei minha primeira crítica teatral. O texto saiu no site Tribuna do Cretino, no dia 4 de maio de 2015. Eu ainda era graduando em Licenciatura em Teatro pela UFPA quando o professor Dr. Edson Fernando me instigou a escrever sobre uma apresentação dos alunos do curso técnico da ETDUFPA. Lembro como se fosse hoje: enviei o texto no dia 3 de maio, sem grandes pretensões e, no dia seguinte, às 13h36, recebi a confirmação por e-mail de que ele havia sido publicado. Foi um momento inesquecível. Era o meu primeiro trabalho reconhecido como crítico e pesquisador. Foi também quando compreendi que a escrita poderia ser um caminho de pertencimento, expressão e transformação.
De lá pra cá, foram 35 críticas publicadas, muitas cenas, muitos encontros. Descobri que escrever sobre teatro é também fazer teatro com palavras, é registrar o efêmero, é ouvir a cena com os olhos e sentir com o corpo. A crítica se tornou, pra mim, uma forma de estar junto, de pensar com os artistas, de valorizar a criação amazônica. E tudo isso foi possível graças ao incentivo, à escuta e à potência da extensão universitária – lugar onde tudo começou.
Mas é importante dizer: por muito tempo, eu tive vergonha daquele texto[2]. Reconhecia que ele era frágil, com erros ortográficos, falhas de estrutura e pouca profundidade teórica. Evitava relê-lo, com medo de me deparar com as marcas da inexperiência. No entanto, hoje entendo que aquela crítica era necessária. Ela foi o primeiro passo, a primeira tentativa. Sem ela, não haveria as outras. Foi escrevendo, errando, sendo lido e relido, que eu pude construir o arcabouço teórico e a segurança que carrego hoje. Essa crítica, mesmo imperfeita em vários sentidos, foi uma semente. E por isso, a reconheço com carinho e respeito.
Vindo de um ensino fundamental e médio público precário, precisei buscar novos parâmetros para melhorar minha escrita. Lembro que levei horas, dias até, para conseguir produzir uma lauda. A publicação no Tribuna do Cretino me deu um impulso imenso. Saber que outras pessoas iriam ler meus textos me deu responsabilidade, mas também estrutura. A cada nova crítica, ganhei mais domínio, mais coragem, mais desejo de continuar nesse ofício que abracei: o da escrita crítica no campo da arte.
Hoje, dez anos depois, já no doutorado em Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFPA, olho para trás com gratidão. Tenho consciência de que tudo começou com aquele gesto: um projeto de extensão, um professor que acreditou, uma plataforma que abriu espaço, um grupo de estudantes em cena. Foi esse limiar que me permitiu alçar outros voos. E é por isso que reescrevo, agora, essa crítica de 2015. Com o intuito de explanar que os projetos de extensão podem – e devem – ser pontes. Eles têm o poder de salvar, de abrir caminhos, de gerar novas formas de ver o mundo.
Joga pedra na geni, geni!
Os alunos do primeiro ano do Curso Técnico em Ator da Escola de Teatro e Dança da UFPA, do ano de 2015, apresentaram, no encerramento das disciplinas Técnicas Corporais I e Voz e Dicção I, o exercício dramático da obra indutora "Toda Nudez Será Castigada", de Nelson Rodrigues, denominado "Falo de Genis", com direção dos professores Edson Fernando e Marton Maués.
O indutor da apresentação partiu do texto "Toda Nudez Será Castigada", do dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues. Para começo de assunto, o referido autor propõe um teatro que escancarasse as mazelas da sociedade brasileira, o que ele mesmo chamava de "teatro desagradável", uma forma de romper com o bom gosto e o moralismo hipócrita. Em suas palavras, "toda unanimidade é burra", e sua obra atua como dissonância, afrontando as convenções e expondo os desejos inconfessáveis, o adultério, a repressão sexual, a culpa cristã e a decadência da família burguesa. Seus personagens são arquétipos dilacerados entre o pecado e a salvação, entre a carne e o espírito, entre o desejo e a punição.
No caso de "Toda Nudez Será Castigada", escrita em 1965, a crítica ao moralismo religioso se manifesta no confronto entre Herculano, um viúvo austero, e Geni, a prostituta que o desafia a revisitar seus próprios limites. Como aponta Sábato Magaldi, Nelson mergulha em "uma religiosidade distorcida, onde o castigo é o único caminho de purificação, e o prazer, um mal a ser exorcizado". É importante lembrar que, à época, a peça foi um escândalo.
A nudez em cena – tanto literal quanto simbólica – retirava os véus de uma sociedade hipócrita, gerando uma crise de recepção que hoje ainda ressoa. A peça, portanto, não é apenas um drama passional: é uma fábula moral invertida, onde o pecado se humaniza e a virtude se torna patética. Geni, nesse contexto, não é apenas uma prostituta: é um arquétipo de expiação, o Cristo às avessas crucificado pela libido coletiva. É nesse imbróglio de mostrar "a vida como ela é" quando ninguém está vendo, que irei explanar sobre o que presenciei na encenação.
Ao adentrar na sala em que seria apresentada a encenação, fui arrebatado pela penúria e pelos "espectros" das/dos atuantes situados ao redor. A cena detinha uma arena em forma de quadrado que nos remetia a um quarto. Um clima de suspense pairava sobre os espectadores, rompido abruptamente no primeiro acorde de "Geni e o Zepelim", de Chico Buarque de Holanda. Gritos, sussurros audaciosos davam ao público uma "palinha" do que estava por vir. Eram Genis plurais: tristes, putas, sexualizadas, vingativas, marginalizadas pelas pedras dos tabus lançadas por mãos que se escondem. A minoria das interpretações foi mal executada, mas isso é apenas um detalhe perante tamanha ousadia. Este trabalho era o primeiro exercício dos atores e, certamente, o nervosismo é inerente.
Éramos voyeurs de um "teatro do desagradável" que se escancarava diante das nossas retinas. Nossos sentidos eram aguçados pelas fumaças de cigarro. Nossas subjetividades eram corrompidas pelos terços que percorriam sensualmente os corpos, pelo vinho jogado no chão, nos atores e na plateia. Todos esses elementos eram ligados pela nudez, nudez esta castigada pelos burburinhos do público presente.
A encenação optou por uma estética crua e direta. Figurinos reduzidos e de tom neutro (optaram pelo uso do tom preto), iluminação clara incidindo sobre a pele dos atores e atrizes, rompendo qualquer conforto do público. Assim, a plateia se via cúmplice das mesmas contradições vividas pelas personagens em cena: desejando e repudiando, atraída e chocada.
A apresentação não fugiu da essência do texto escrito há mais de 50 anos por Nelson Rodrigues. "Toda Nudez Será Castigada" nos mostra um contexto de vida que todos nós tentamos esconder (até mesmo do confessionário) e que a apresentação nos desvela de forma crua, incômoda, provocativa.
A figura da prostituta Geni era o foco dos esquetes, pois ela carregava a linha tênue do emaranhado de cenas. Também porque a personagem tinha coragem exacerbada de "dar a cara a tapa nas cenas", sobretudo para as críticas posteriores. Mas não se tinha só coragem do nu, mas das mordidas pelo corpo, do toque na genitália, da exposição de cada ator numa teatralidade sem julgamentos ou pudores, que desafia conceitos de certo e errado. O ponto mais fraco da apresentação talvez tenha sido o uso de objetos cênicos (vinho, terço, cigarro), que se repetiram em quase todas as cenas, propondo um artifício que perdeu força com o uso excessivo. O texto, dito na íntegra, só somou à força da encenação, que bebeu dessa teatralidade rodriguiana, trágico-mitológica, visceral e contraditória.
Dez anos após ter testemunhado "Toda Nudez Será Castigada" naquela sala da ETDUFPA, reafirmo a potência daquela experiência teatral. Nelson Rodrigues concebeu um teatro que desagrada para despertar, um teatro em que o feio, o imoral e o obsceno cumprem a função de chacoalhar a plateia para além do entretenimento fácil. A montagem de 2015 honrou essa herança com coragem cênica, utilizando a nudez e a crueza não como fins, mas como meios de revelação. Revelação do abismo entre nossa moral declarada e nossos impulsos reais. Revelação das feridas sociais que preferiríamos varrer para debaixo do tapete. Tal como uma década atrás, continuo convencido de que o "desagradável" em Nelson Rodrigues não é gratuidade, mas catarse e crítica: provoca mal-estar para inquietar as consciências adormecidas. E, nesse sentido, é profundamente necessário.
Portanto, quem presenciou "Falo de Genis" saiu da sala com um exemplo de libertação: literária, teatral e, sobretudo, da "vida como ela é".
04 de maio de 2025.
[1] Artista-professor-pesquisador paraense. Formado pelo Curso Técnico em Teatro (ETDUFPA, 2015) e Licenciado em Teatro pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 2018). Mestre em Arte e atualmente doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes/UFPA) O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001".
[2] Texto original pode ser conferido no link a seguir:
https://tribunadocretino.blogspot.com/2015/05/joga-pedra-na-geni-geni-por-raphael.html?fbclid=IwZXh0bgNhZW0CMTEAAR6mCpb6tXNU3whnnqzSEkwY_8JInO0SXKdHoJjAjh2iNKSmpiX8fix6P5qDpA_aem_4Rm6qpm-vUhm5m1g4KdYMA&m=1
FICHA TÉCNICA:
Falo de Genis
Elenco:
Felipe Almeida, Brendon Macêdo, Rhero Lopes, Amanda Feio, Dayci Oliveira, Alana Lima, Brenda Paixão, Luana Valadares, João Melo, Cynthia Pampolha, Jam Bil, Marina Moreira, Marinéia a Bonita, Bárbara Lopes, Ivana matos, Eliane Flexa, Caio Tosman, Bruno Herrera, Marcos Begot, Lucas Borsoi, Lucas de Castro, Adelia Boaventura, Anny Cohen, Paulo César, Siane Morais, Natan Magno, Anderson Monteiro
Direção:
Edson Fernando e Marton Maués
Realização:
Escola de Teatro e Dança da UFPA – ETDUFPA