Encantarias: Teatro das Águas, Poesia da Vida – Por Elcio Lima

30/12/2023

Montagem Teatral: Encantarias

Montagem: Escola de Teatro e Dança da UFPA

Elcio Lima[1]

Na tarde quente o horizonte se fecha em Belém. Nublado, cinzento, um rompante de chuva desperta os incautos estudantes espraiados às margens do rio onde se abeira a Universidade Federal do Pará. Um cenário fascinante onde as gotas bailam nas águas num balé agridoce, entrelaçando histórias e mistérios que acontecem nas bandas de lá e de cá. Era 24 de novembro e lá estava eu, observando a vida acadêmica e os corres da equipe preparando o espetáculo ENCANTARIAS, um dos vários que integraram a programação da Mostra Cênica 2023 da ETDUFPA.

Resultante do trabalho e estudo coletivo de discentes dos cursos técnicos de Teatro, Cenografia e Figurino, bem como da colaboração de muitas outras mãos e mentes sensíveis e criativas, a obra, sob a direção de Andréa Flores e Marluce Oliveira, versava sobre o imaginário ribeirinho através de uma ótica diferenciada. Abordando a pluralidade religiosa amazônida, seres encantados, histórias reais permeadas de mistério, críticas sociais e questões políticas urgentes postas de modo quase cirúrgico. Por mais de uma hora, o espetáculo se desdobrava em profusão de acontecimentos, tudo cuidadosamente costurado pelas mãos e mente de Jhonathan Navegantes, o dramaturgista.

Minutos após a chuva, público reunido sob a capela ecumênica da UFPA, um grande esqueleto circular de madeiras e parafusos, a atriz Rosa Rio, à luz da vela, abre a cena com uma prece a São Benedito enquanto a boca da noite a todos encobre. Num instante ela assume outra persona, a típica mãe conselheira, o arquétipo da velha sábia, sem estereótipos. Aliás, na minha opinião, esta palavra foi afugentada da encenação em todas as partes que lhe dão forma. E enquanto o rio segue seu curso ao fundo da cena, uma rica trama é tecida ante aos olhos de uma audiência fisgada pelas cores, pelo som e pela curiosidade. Desavisados se avizinham, uns estranham e se vão; outros ficam e se acomodam até mesmo pelo chão. Escutamos e vemos um coletivo reverenciar uma gama de crenças típicas de um povo, o que inevitavelmente evoca uma espécie de saudosismo, um rememorar saboroso de eras passadas, de uma infância roubada pela tecnologia, de uma fé insistente e sincera que queima no fundo dos olhos e aquece o coração. Foi exatamente esta a sensação que tive na cena dos meninos contadores de histórias e ao longo das horas que pareceram anos, como se pela mão fosse pego e arrastado por um passeio vertiginoso através das águas fluviais, tudo isso sem sair dali, da primeira cadeira da primeira fila (que eu não sou besta, sabia da grande procura e cheguei cedo).

A peça demonstra uma importante base na antropologia cultural que desempenha um papel fundamental na análise dessas crenças. É um espetáculo por meio do qual se busca entender a relação intrínseca entre as comunidades locais e o ambiente aquático que as cerca. Isso inclui investigar as tradições orais, rituais de propiciação aos encantados e a maneira como essas crenças moldam o modo de vida das populações ribeirinhas. Sua força reside na maneira como dá vida às narrativas, utilizando a linguagem teatral para criar atmosfera e transmitir a magia que permeia essas histórias, várias delas conhecidas, uma vez que desde a infância, muitos já escutaram histórias de cidades interioranas, de visagem, da feiticeira, das ditas horas mortas...

Contudo, além de misticismo, a tessitura dos acontecimentos cruza águas turvas e agitadas ao tocar em temas e questões políticas sensíveis, utilizando do teatro para fazer críticas sociais, dando voz e visibilidade a tantos que partiram desta existência terrena por negligência humana. As vítimas de naufrágios e a poluição dos rios é uma jornada emocionalmente impactante que confronta o público com a realidade ambiental urgente e as tragédias humanas resultantes. A narrativa habilmente entrelaça as histórias das vítimas, proporcionando uma visão sensível e comovente dos efeitos devastadores da degradação ambiental. Os atuantes desempenham seus papéis com uma intensidade palpável, expondo a dor, a resiliência e a busca por justiça das personagens ao utilizarem a expressão corporal e facial de maneira poderosa, transmitindo a agonia das vítimas de maneira visceral. Neste ponto, embora o conjunto brilhe pelo desenho do todo, destaco as atuações fulminantes, ainda que tão curtas (o que prova que tempo de cena não importa se longo ou mínimo, desde que uma atuação viva se faça presente) de Sidiane Nunes e Dan Couto. Nunes como uma mãe que busca o filho em meio ao naufrágio é de partir o coração e assusta na cena que representa abuso sexual; enquanto Couto protagoniza uma das cenas mais arrepiantes do ano onde a forma como os atores interagem com o figurino, movendo-se como correntezas ou refletindo a luz como as ondas do rio, entrega uma coreografia visual impactante. A escolha de incluir relatos reais e testemunhos contribui para a autenticidade da narrativa, conectando ainda mais a audiência às questões urgentes em discussão.

Houve ainda a crítica ao descaso para com o trato dos rios que cortam nossa capital que, hoje mortos, acumulam lixo e doenças, mas ainda assim despertam um curioso sentimento de rir de si, algo típico do pobre cuja vida não permite mais que uma forçada resiliência que se âncora na graça, na algazarra e na brincadeira para lidar com o sofrimento. Foi, digamos, o alívio cômico promovido pela representação dos canais da capital paraense ao som de um tecnomelody autoral muito divertido, com um elenco cuja veia cômica se mostrou crucial. Em outras palavras, o equilíbrio se fez presente em todos os momentos do espetáculo (ao menos naquilo que o público vê). A trilha sonora e a sonoplastia, muito bem executadas, desempenharam um papel vital na criação de atmosfera e na transição entre as diversas histórias. A sincronia entre a música e as narrativas pôde intensificar a experiência, proporcionando momentos emocionais impactantes.

E sobre a visualidade, o que dizer? Coordenada por Grazi Ribeiro e Paulo de Tarso Nunes, responsáveis pelas equipes de figurino e cenografia, respectivamente, a representação visual dos encantados e do humano, além da ambientação ribeirinha, são pontos altos, proporcionando uma imersão eficaz no universo místico da Amazônia.

O figurino deslumbrante, majoritariamente confeccionado em renda que evoca os rios e igarapés, é uma escolha estética ousada e brilhante que eleva a experiência teatral a novas alturas. A delicadeza da renda cria uma conexão visual única com a temática aquática, transportando a audiência para as águas místicas da região amazônica. A textura intrincada da renda é uma manifestação artística que reflete com maestria as sinuosidades dos rios, capturando a essência da fluidez e da complexidade desse ecossistema. A escolha de tons que lembram os matizes das águas em seus tons de chá, terracota, folhas mortas, barro e algas contribui para a harmonia estética, tornando o figurino não apenas uma vestimenta, mas uma representação visual poética. Um trabalho de pesquisa que apresenta mais que um conceito, revela a sensibilidade do olhar dos artistas criadores por trás de um dos mais ousados e belos projetos que já vi na ETDUFPA. Um trabalho com alma!

O mesmo se pode dizer da cenografia. Basicamente a reprodução de um trapiche que apresenta belas texturas muito bem executadas, típicas desses locais surrados pelas águas e pelos pés ávidos de tantos viajantes, complementada pela iluminação dramática que lembra o ocaso ou a chama das lamparinas. A surpresa do final foi um verdadeiro encanto, um exemplo de como a cenografia se desloca de paredes e painéis móveis tão costumeiros, revelando versatilidade e criatividade por meio do movimento de formas luminosas de seres aquáticos.

Com um trabalho tão belo seria difícil notar algo que pudesse destoar do todo, mas houve (sempre há) alguns detalhes: uma ou outra voz esganiçada, uma fala cantada, uma atuação engessada, uma atuação exagerada, um único ator que não entrou maquiado (achei muito estranho), uma certa morosidade no olhar de um ou outro que parecia refletir questões internas, enfim. Que peguem todas as experiências e reflitam, estudem e amadureçam, porque o que vejo é um coletivo com grande potencial, tanto que talvez uma parte não tenha se dado conta disso (ainda).

E assim, à luz da lua serena, o rio dança, reflete o prateado, uma doce aliança. ENCANTARIAS deixa saudades. Daquelas saudades de quando você volta do interior para a cidade grande. Deixa também a certeza de que um teatro político e tipicamente amazônico se faz presente e desempenha um papel vital ao preservar e respeitar práticas únicas, contribuindo para uma compreensão mais profunda da diversidade cultural ao longo dos cursos d'água. Ninguém, para o bem ou para o mal, volta o mesmo depois dessa peça pois, como disse Heráclito, "nenhum homem pode banhar-se no mesmo rio duas vezes, pois na segunda o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o homem".

Isso é teatro vivo, minha gente!

30 de dezembro de 2023

[1] Elcio Lima é ator, diretor, escritor, dramaturgo e figurinista. Aluno do curso técnico em Figurino cênico e graduando de Licenciatura em Teatro. Colabora com o projeto de pesquisa O Clown Nosso de Cada Dia, e integra o projeto de extensão Tribuna do Cretino.

Ficha técnica

ENCANTARIAS

Elenco

ARTH, BIANCA BRABO, BRENO UCHÔA, CAROLINA RODRIGUES, DAN COUTO, DIOGO LIRA, DUDU DOMINGUES, EDER JUAN, EDSON ELIAS, ELIANE GOMES, INAÊ NASCIMENTO, JÉSSICA RIBEIRO, KATE POR DEUS, LEONARDO VERÇOSA, MAILSON SIQUEIRA, MALU GUEDELHA, MATEUS BARATA, MEYSSE PESSOA, NICOLAS WILKER, PEDRO COUTO, RACQUEL PRUDENTE, RAPHA RODRIGUES, RAUL LIMA, RENAN BORGES, ROSA RIO, RUBENS LEAL, RYAN PARDAUIL, SAFIRA CLAUSBERG, SEU RA7, SIDIANE NUNES, VAGNER MENDES, VICTOR MENEZES, VITÓRIA LÚCIA, WILLIAN MARIGNAN

Direção e Encenação

ANDRÉA FLORES e MARLUCE OLIVEIRA

Dramaturgismo

JHONATHAN NAVEGANTES

Direção de Movimento

XVICCY

Direção de Palco

LILLY SILVA

Direção de Visualidade

GRAZI RIBEIRO e PAULO DE TARSO NUNES

Direção Musical

MARCOS ADLES, SOFIA ALVAREZ e THALES BRANCHE

Músicos de Cena

LUANY GUILHERME, MARCOS ADLES, PEDRO MIRANDA JR. e SOFIA ALVAREZ

Composições Originais

ARTH, EDSON ELIAS, RAPHA RODRIGUES e THALES BRANCHE

Preparação Corporal

XVICCY, LILLY SILVA e DENILENE NAVEGANTES

Estagiários

XVICCY, LILLY SILVA, DENILENE NAVEGANTES,

JHONATHAN NAVEGANTES e JANNE MEDEIROS

Curadoria de Cenografia

PAULO DE TARSO NUNES

Cenógrafos

LEEANDRA LEE, VICTOR MOURA, ELIAN MÁGNO e DANI FRANCO

Assistentes de Cenografia

JOÃO VICTOR DE ALCÂNTARA, MURILLO VIEIRA e LUCAS LIRA

Curadoria de Figurino

GRAZI RIBEIRO

Figurinistas

ALLYSTER FAGUNDES, REGIANE CARDOSO, BRUNO SACRAMENTO,

IZABELLA ALVES, KEDMA CASTRO e MAITE CASTRO

Assistentes de Figurino

THAISE FARIAS, VITÓRIA CUNHA, TIANA FERREIRA e ENZO GABRIEL

Apoio de Figurino

IZIDÓRIO NETO