Entre uma Rotação e Outra – Rajadas de Sacralidade – Por Raphael Andrade.

31/08/2018

Montagem Híbrida: Traços de Esmeralda

Concepção, Pesquisa e Encenação de Ana Flávia Mendes 

Raphael Andrade[1]

Peço licença, pois guardei os dias.

Alguns podem questionar o porquê de eu ter escrito essa crítica para a TRIBUNA DO CRETINO, pois a plataforma serve para produzir textos sobre espetáculos teatrais. Todavia, a partir dos meus estímulos sensoriais, posso afirmar que presenciei uma simbiose de gêneros artísticos em Traços de Esmeralda, resultado da pesquisa sobre a deidade na figura feminina, no qual possui como cerne o caráter transcendental na dança imanente. Logo, o espetáculo é de dança; mas também é teatro. Não que seja um espetáculo dramatúrgico de cunho textocêntrico; ao contrário, se pudermos sintetizar o que é proposto em cena, criamos o neologismo "corpocêntrico" - o corpo como centro que metamorfoseia-se em outros corpos. Existe fulcro mais teatral que essa possibilidade de ser outros e/ou si mesmo? Mas não posso sintetizar apenas por esse viés. Pois cada espectador cria na sua subjetividade o que o espetáculo transmite.

Neste enredo, me pergunto o que sentiu a portadora de deficiência visual na plateia, uma possibilidade, a meu ver, fora o estímulo auditivo musical do espetáculo e a captação do ambiente, criando, nesta perspectiva, outros mundos e sensações possíveis. Outra possibilidade, se olharmos pelas lentes hodiernas e diacrônicas da antropologia e da performance art, o espetáculo seria de cunho performático e ritualístico, ou seja, as possibilidades são múltiplas e permanecem em uma linha tênue de gêneros que se nutrem em uma hibridização sincrônica e poética de estilos.

Não vejo necessidade de tentar questionar qual gênero se encaixaria melhor como proposta do espetáculo, apesar de respeitar e ressaltar a designação da autora em cognominar seu trabalho de cunho também híbrido: Coreofotografia. E, a partir deste enfoque, explanarei sobre o que presenciei e senti.

CORPO/CENA

Na escuridão, entre uma cadeira de balanço, plantas, árvores, iconografia sacra e altar cigano, existe um corpo lugar de rememoração em cena que, mesmo inerte, carrega em si uma trajetória de devires - seja de pensamento, idealização do sagrado e das concepções e ações que podem (ou não) modificar-se na relação com o mundo. Um corpo que "colocado entre os objetos que agem sobre ele e os que ele influencia, não é mais que um condutor, encarregado de recolher os movimentos e de transmiti-los"[2]. Um corpo atravessado por figuras que fazem parte do nosso imaginário amazônico e transcendental. Um corpo duo: sacro e demasiadamente humano.

Em cena, constatamos um corpo que se esconde e oscila em uma cadeira de balanço. E, por um atavismo da tenra idade, relembro minha avó que, além de humana, carrega sabedoria e misteriosa sacralidade. E a referida cadeira, e a figura que se sustenta sobre ela, se converte semioticamente - A mulher-sacra cria, reformula e transforma a compreensão deste signo que nos remete à ancestralidade. Ela carrega sobre si e pelo espaço variadas sensações místicas. Nem Deleuze poderia imaginar que numa rotação poderiam emaranhar centenas de sensações de imagem-movimento e imagem-tempo em uma simplicidade autóctone potente. E neste rizoma de várias vertentes e pontos de fugas, nascem ao rodar da saia, matintas, pombo-giras, ciganas e deusas do mato.

Somos transpassados pelo mistério. A realidade que não pertence ao mundo dos homens é exposta em nossas retinas. Percebemos a constituição em cada traço e movimento coreografado o reverberar da hierofania[3]. É a figura da Esmeralda a nos impactar. Ela que é humana, divina, variante do mineral berilo, a mais nobre dentre todas as demais gemas. Dentre as cores, a verde, a morena, negra e olhos de âmbar enigmáticos a lumiar e observar. Na coreografia, cambré estilizado, mãos suaves e seguras que pairam sobre o ar. Traços maduros de uma bela mulher que roda a saia de vento e gemas de esmeraldas numa espécie de rito de passagem a nos enfeitiçar. Entre uma rotação e outra - traços de sacralidade. Onde a nuance, por vezes introspectivas da persona, dilata a funcional economia dos elementos cênicos no anfiteatro com traços de pictórica solidão, potencializando, neste enfoque, a cúmplice interatividade palco/plateia e o fervilhar das emoções.

Quando gira, permanece no eixo, porém permanece ligada à cosmologia, onde todo o universo GIRA, gira, gira. Logo, remete-me imediatamente à umbanda e aos sufis, que utilizam (de maneiras diferenciadas) o giro para adentrar em um estado de transe em um elo entre o céu e a terra. E, ao girar, se transubstanciam no sagrado.

A sua fisicalidade permanece em contidos episódicos de arroubos gestuais. Ensinando que a maturidade de quem sabe dominar o corpo e que não precisa muito para fazê-lo - o menos sempre é mais. São traços pequenos, milimetricamente construídos por braços, pernas, tronco, ombros e mãos. Que por horas modifica-se em um envolvente feeling energético, em um tom reflexivo e enigmático de conversa olho no olho e na pulsão de uma expressiva exteriorização do conflitante suporte da condição humana em busca da sacralidade. É o corpo/sacro, corpo/memória, corpo/recognição, corpos/outros, corpo/cena. Sim, precisamos adjetivar este corpo que, dançando, atuando ou imóvel sob a cadeira, conta-nos uma história dramaturgicamente.

E, parafraseando o escritor Saramago, finalizo:

"Ela dança e, dançando, coloca em movimento tudo que a rodeia. Nem o ar nem a terra são iguais depois da imanente porta-bandeira de si, Ana Flávia Mendes Sapucahy, haver dançado".

31 de agosto de 2018.


[1] Ator, Performer e graduando em licenciatura em Teatro pela UFPA.

[2] Bergson, 1990, p.59, grifo meu.

[3] O termo foi cunhado por Mircea Eliade em seu livro Traité d'histoiredes religions (1949) para se referir a uma consciência fundamentada da existência do sagrado, quando se manifesta através dos objetos habituais de nosso cosmos como algo completamente oposto do mundo profano.

Referências:

BERGSON, Henri. Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. Tradução: Paulo Neves da Silva. 1ed. São Paulo: Martins fontes, 1990.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Ficha Técnica:

Montagem Híbrida:

Traços de Esmeralda

Concepção, Pesquisa e Encenação:

Ana Flávia Mendes

Fotografias Indutoras:

Guy Veloso

Laboratório de vivência háptica

Iara Souza

Dramaturgia e Atuação:

Saulo Sisnando

Figurino, Confecção e Arte Gráfica

Cláudia Palheta

Iluminação e Ambientação:

Tarik Coelho

Maquiagem:

Iam Vasconcelos

Consultoria Cênica:

Miguel Santa Brígida

Consultoria Cênica:

Luiza Monteiro e Ercy Souza

Assessoria:

Gláucio Sapucahy, Danielly Vasconcellos,

Feliciano Marques e Wanderlon Cruz

Consultoria Religiosa:

Igor Reis

Registro Fotográfico:

Dani Cascaes

Supervisão de Projeto:

Thays Reis