Escada e Pontes – Por Edson Fernando

24/11/2022

Montagem Teatral: Manifesto Visagento.

Montagem: Vandiléia Foro

Edson Fernando[1]

"A alma cai pra cima, desconstrói o corpo", dispara as primeiras linhas do manifesto cênico de Vandiléia Foro anunciando a desestabilização da ordem entre aquilo que a tradição cristã me ensinou a acreditar que é (alma/espírito) mas não vemos, e aquilo que vemos, tocamos e sentimos (corpo) mas deixa de ser a cada instante quando a dança às avessas pede passagem.

Embora a dualidade "alma- corpo" permaneça colocada, essa premissa inicial e fundante do manifesto me convida a dar um giro de 180º nas minhas percepções e no meu imaginário cristão que mesmo, há alguns bons anos, perseguindo a trilha do esvaziamento dos valores - tal como outrora Artaud perseguiu, intentando ir ao Tibet para expurgar os últimos resquícios dos dogmas da cristandade implantados nele, desde tenra idade, pelo seio familiar e depois pelo instituição escolar - se mantém de modo latente e me prega esses tipos de surpresas inesperadas diante de uma obra que se coloca como ponte para outros lugares.

Recorro a simbologia da ponte pois ela me ajuda a pensar o Manifesto como um lugar de passagem, de travessia, de transladação... a ponte é "aquilo que permite passar de uma margem à outra" (CHEVALIER/GHEERBRANT, 2007, p.729). "Cair pra cima" me dá pistas, no entanto, de que a jornada é ascensional, isto é, que a passagem, travessia ou transladação aponta pra um movimento de deslocamento vertical. E, nesse sentido, busco compreender a jornada pessoal da atuante no Manifesto por meio da simbologia da "escada, caso esse em que é preciso considerar a ponte como vertical" (Ibidem)

Nesse recorte específico do trabalho da atuante, Vand, na condição de escada, desenvolve sua subida vertical em deslocamentos contínuos e vigorosos. É Nesse movimento que sua alma vai caindo pra cima e se manifesta num corpo que se esvai em estados de delírios tomado por impulsos ora onírico, ora ancestral, ora poético, ora grotesco, ora frágil, ora arrebatador, ora técnico, ora prosaico, ora metafísico, ora intempestivo, ora fulgurante, ora desmedido, ora sufocante, ora prazer... ora sabor, ora dor, ora cura... é como se, na sua dança às avessas, ocorresse a "transição entre dois estados interiores, entre dois desejos em conflito" (Ibidem) Me sinto diante da manifestação de um "corpo sem órgãos", ou, pra ser mais exato, nas palavras de Cassiano Quilici: me sinto "diante de um corpo que apreende seu próprio interior, desdobrando-se imageticamente" (2004, p.197).

Mas ela dança sozinha. Ela sobe sozinha. Acompanho a subida como espectador privilegiado, como mais um voyeur, quando muito como uma espécie de testemunha da daquela dança sagrada da qual não posso ou não consigo bailar em harmonia, em sintonia, em sincronia. Ela dança, ela manifesta estados alterados e nisso se torna a escada de seus próprios desejos, a escada do seu próprio ser, a escada que estabelece o seu rito pessoal para reunir a soma daquilo que é, do que foi e de tudo que possa a vir a ser. Mas é uma subida vertical, movimentos que não me convocam, não me alteram, não me fazem subir junto, enfim, me sinto isolado em minha margem. Então, mesmo se fazendo presente esta escada tão poderosa, me faltam as pontes. É sobre elas que quero falar agora.

Se considero a atuante como a escada de seu rito pessoal, quero considerar também a encenação como a ponte que me ata e me conecta a atuante. Aqui reside o problema da minha experiência no Manifesto, pois as pontes propostas pela encenação não me levam a ela na sua condição numinosa. Não quero dizer com isso que a encenação negligencie o que há de mais vigoroso no trabalho, isto é, a qualidade de presença da atuante, mas sim que percebo e apreendo as pontes propostas pela encenação tão somente por sua estrutura e condição técnica, enquanto elementos que estabelecem o jogo convencional do teatro entre aqueles que agem (atuantes) e aqueles que assistem (espectador).

Julgo oportuno e honesto dizer que isso pode, simplesmente e antes de qualquer coisa, dizer mais de minha incapacidade pessoal para me sentir numa experiência liminar ou, melhor dizendo, liminoíde, como apregoa Victor Turner (2008), do que propriamente um problema da encenação. As expectativas que carrego comigo quando vou a uma montagem teatral são de minha responsabilidade, bem o sei. Mas também, não posso deixar de dizer que pesquisas como a do Manifesto Visagento - cuja abordagem de conteúdo estabelece diálogo aberto com a temática do autoconhecimento e, por isso mesmo, a forma se institui e/ou privilegia o campo da Performance -, nestes trabalhos, a expectativa não somente cresce naturalmente como encontra certa plausibilidade para se fazer presente, na medida em que as opções dos artistas envolvidos apontam, sugerem ou nos convidam para esse lugar.

Então, quando a encenação não consegue me colocar numa atmosfera em harmonia com uma experiência que não se quer convencional - acredito eu, posso estar redondamente equivocado e esse é o risco e o prazer da crítica e do crítico - não deixa de ser frustrante. Trocando em miúdos: a relação palco/plateia se assenta numa arena; a área de atuação converge a maior parte das ações para o centro da arena; as interações objetivas com a atuante se mantém no nível sutil, a exceção no momento da entrada da sala de apresentação - registre-se que meu corpo não foi convidado a se manifestar no pano - e quase no final quando alguns são convidados a trocar de lugar na arena; o casarão antigo que abrigou a apresentação que pude conferir não é destacado, não é colocado em ênfase e nem em dialética com a atuante - sobre isso, as paredes, assoalhos e telhados perdem oportunidade de estabelecer narrativas históricas e/ou pessoais com a atuante; os enormes janelões que nos permitem observar o vai e vem da rua ficam despercebidos e/ou sem jogar efetivamente com o conjunto do espaço até o momento final do banho quando, então, eles nos servem de portal/passagem pra ver que é necessário desabitar dos lugares, dos territórios, das peles e das cascas que crescem em nós sem que percebamos; a iluminação, por vezes, me dá a impressão de se limitar a uma atmosfera tímida que compõe bem com a segunda pele de barro da atuante - a tal ponto de me deixar em dúvida se a atuante traja uma fina e transparente malha - mas que não se permite ou não pretende ir além disso.

A soma desses elementos me mantém na condição de voyeur, de espectador privilegiado, mas apartado do jogo performático (?) proposto pelo Manifesto. E quanto mais a escada ascende, mais vou me sentindo distante da conexão profunda com seu "corpo sem órgãos". Quiçá aprendamos a ser escadas num mundo cada vez menos propenso a pontes.

Evoé.

24 de novembro de 2022

[1] Ator e diretor teatral; Coordenador do projeto Tribuna do Cretino;

Referências

CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, gestos, formas, figuras, cores, números. Trad. Vera da Costa e Silva. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.

QUILICI, Cassiano Sydow. Antonin Artaud - Teatro e Ritual. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2004.

TURNER, Victor. Dramas, Campos e Metáforas - Ação simbólica na sociedade humana. Trad. Fabiano de Morais. Niterói; EdUFF, 2008.

Ficha técnica

Atuante:

Vandiléia Foro.

Direção:

Adriana Cruz.

Iluminação:

Marckson de Moraes.

Operação de luz:

Wellington Bruno.

Trilha Sonora:

Cincinato Marques Junior.

Operação de som:

ĺtalo Matta.

Registro de Imagem:

Cincinato Marques Junior.

Fotos:

Marckson de Moraes.

Cartaz:

Vandiléia Foro.

Produção:

Produtores Criativos /

Cris Costa, Fafá Sobrinho, Thiago Ferradaes,

Andréa Rocha e Nanan Falcão.

Divulgação:

Holofote Virtual - Comunicação Arte Mídia.

Agradecimentos:

Casarão do Boneco e Tárik Coelho.