Essa Chuva É Minha Sina – Por Ivana Matos

19/03/2018

Montagem teatral: A Casa do Rio.

Montagem: Grupo Gruta de Teatro.  

Ivana Ignêz Barbosa de Matos[1]

Quando pus os pés naquela casa sabia que minha presença não era em vão, tudo estava conectado. O ar úmido que se encontrava por toda parte era da mata, que, por meio da neblina, atravessava um rio de águas barrentas até tocar minha pele e ocupar meus pulmões. Boas-vindas! O espírito da minha criança reconheceu de imediato o abraço do vento e logo depois os objetos postos no chão, até mesmo a toalha florida que cobria a velha mesa no centro do espaço. Era inevitável, já que a formação da minha memória tem muito do interior do estado e do imaginário amazônico - lendas, cantigas, criaturas. Cresci conversando com as árvores, pedindo permissão para subir e descer, e me recolhendo sempre antes das 18h - momento que os seres místicos acordavam.

Já havia passado das 18 horas quando se ouviu o primeiro barulho da rabeta cortando o rio. As três mulheres que viviam na casa não conseguiam conter a preocupação provocada todas as vezes que esse motor danava a ranger, até o assoalho já estava completamente tocado pelos passos nervosos. A ameaça de uma chuva disposta a cair tornava o clima mais apreensivo, uma vez que a estrutura do lugar era frágil o suficiente para ceder a um temporal. Ainda assim, era perceptível uma alegria fugaz, um brilho no olhar incisivo que partia da alma de cada uma delas quando contavam retalhos de histórias. Os corpos tomavam a forma do ambiente, ora rígidos pelo medo, ora mutáveis pela musicalidade. Um corpo cede mais que o outro, dependendo muito da umidade da carne, por isso é importante não deixa-la secar! Foi o que compreendi vendo a sororidade nutrida entre as três, tornando possível o banho de cheiro - rito contra as rachaduras da alma.

Depois de um tempo, a inquietação também fez parte de mim. Notei que aquelas irmãs não conseguiam se desvencilhar da casa, estavam presas a um tipo de âncora que imobilizava o rumo de suas vidas. Existia um desejo intenso de atravessar as águas, mas era contido pela dificuldade de abrir mão do hábito, das amarras que pareciam privilégios. A independência é de fato desesperadora para quem nunca provou a liberdade. Mas o momento dessa decisão se aproximava, a qualquer momento aquela estrutura podre poderia cair sobre suas cabeças e era necessário um posicionamento urgente, uma mudança irremediável.

Até que a chuva caiu, derrubando consigo a forma que meu olhar se direcionava. Antes me permiti distinguir as três por conta das narrativas que julgava diferentes entre si, embora coincidissem devido a uma proximidade afetiva. Estava muito além do laço afetivo, tratava-se de um único ser, uma única mulher vivendo as confusões da existência dentro de uma casa vulnerável. Desde então me senti parte da transição. A condição feminina nos uniu de tal forma que a transformação dela passava ser a minha também - empoderamento. Partindo do princípio de que nós mulheres somos uma só quanto classe social e política, a ascensão de uma só é legitima quando todas também se elevam - metamorfose mútua.

A chuva foi o estopim da vontade comedida, muito tempo provocada pelo medo, até que a chama de uma vela gerou a iluminação da consciência, o despertar dos sentidos. Ir para a chuva é romper com o sistema, destruí-lo a partir da sua fragilidade. As duas mulheres que se vão na água são como cascas que o corpo não precisa mais, embora tenham sido de extrema importância, sem as quais não haveria forças para aguentar os danos. Essas crostas são deixadas para que esse novo ser respire e transpire a revolução.

O ato da volta fez surgir uma nova relação despretensiosa entre nós, como semente de esperança plantada no peito. Pois o retorno que é feito não é para a casa que antes existia, mas para a estrutura que deve ser reconstruída, reinventada. E é importante que essa nova formação seja sempre orvalhada, aberta para as estrelas, tal como é a alma da gente - se não alimentar definha, seca, até o ponto de quebrar.

Quando pus os pés para fora daquele lugar presumi que a conexão com a chuva não terminara, logo depois o céu de Belém legitimou essa intuição.

19 de Março de 2018.


[1] Estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Pará (UFPA); Participante do Minicurso de crítica teatral "Por uma crítica menor".

Ficha Técnica:

Montagem teatral: 

A Casa do Rio 

Grupo Gruta de Teatro

Dramaturgia: 

Adriano Barroso

Direção: 

Henrique da Paz

Elenco: 

Astréa Lucena, Monalisa da Paz e Waléria Costa

Cenário: 

Boris Knez e Aldo Paz

Figurino: 

Jeferson Cecim

Maquiagem: 

Mariana Paz Barroso

Cabelos: 

Germana Chalu

Iluminação: 

Sonia Lopes

Assistente de iluminação: 

John Rente

Produção: 

Belle Paiva Tati Brito