Fantasmas de Areia – Por Edson Fernando

29/06/2022

Montagem teatral: "Fale com estranho"

Montagem: Coletivas Xoxós

Edson Fernando[1]

Nos transformamos naquilo que mais tememos.

Embora essa premissa facilmente descambe para o nicho das frases com retórica de autoajuda ou discurso motivacional, gostaria de apontá-la em direção a uma rima poética-filosófica que pretendo desenvolver no decorrer desta crítica, rima esta que farei com o pensamento do filósofo grego, Aristóteles, cujas passagens abaixo servem para encetar a discussão que me foram provocadas a partir da montagem teatral "Fale com estranho", da Coletivas Xoxós.

Ora, se a função do homem é uma atividade da alma que segue ou que implica um princípio racional (...) o bem do homem nos aparece como uma atividade da alma em consonância com a virtude, e, se há mais de uma virtude, com a melhor e mais completa. (...)

A felicidade é, pois, a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo (...)

Por este motivo, também se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou por alguma espécie de adestramento (...). (1987, p.16-18 grifos meus).

Os destaques que faço nos grifos acima serão mais bem compreendidos a partir da comparação com outra citação, desta vez do filósofo e historiador norte-americano, Will Durant, que ao analisar e interpretar a ética aristotélica nos afirma: "Nós somos o que repetidamente fazemos. A excelência, então, não é um ato, mas um hábito" (2000, p.102 grifos meus). Entenda-se dessa passagem, que Durant opta pelo uso de "excelência" como o melhor termo para se remeter a areté grega, geralmente traduzida erroneamente, segundo ele, como "virtude" (Ibidem, p.101). Então, sua perspectiva de análise da ética aristotélica conclui que a "virtude" deve ser exercitada repetidamente até se tornar um "hábito".

No cerce dessa discussão - seja em Aristóteles, seja em Durant -, portanto, está a questão do "hábito" tomado como regra moral, ou seja, dos nossos atos em sociedade que devem ser regidos por princípios morais/racionais. O filósofo estagirita desenvolve essa importante reflexão na "Ética a Nicômaco", obra que nos fornece o "caminho do meio-termo justo" como metodologia eficaz para o exercício das virtudes, rumo a maior delas, qual seja, a "felicidade", considerada por ele como a mais nobre e elevada das virtudes, por sua natureza absoluta e autossuficiente (1987, p.15). Trilhando esse caminho, nos ensina o estagirita, se alcança a "felicidade" pela via mediana, isso porque "a virtude moral é um meio-termo (...) entre dois vícios, um dos quais envolve excesso e o outro deficiência" (Ibidem, p.37 grifos meus). Em outras palavras, e recorrendo a sabedoria popular, poderíamos dizer: "nem tanto ao mar, nem tanto a terra"; ou ainda: "nem tanto ao mar, nem tanto a areia". E partir de agora, penso que já é ora de começar a rimar, ouvir e "falar com estranho".

Nos transformamos naquilo que mais tememos. Seguindo essa premissa eu poderia me transformar numa séria de coisas, afinal assumo minha frouxidão publicamente em todas as ocasiões em que me sinto desafiado a contrariar as expectativas daqueles que depositam em mim um tanto de bravura e valentia que definitivamente não combinam com minha pessoa. Vejamos por partes.

No campo da "entomofobia": morre de medo de aranhas, baratas, besouros, percevejos, abelhas e, em geral, meu pavor diante de insetos que voam me leva a identificá-los, imediatamente, como uma possível barata voadora; e diante de uma ameaça iminente, o máximo que consigo é me defender com uma boa dose baygon. Ratos e catitas, podem entrar nessa conta, mesmo não sendo insetos e, nesse caso, como nem o baigon dá jeito, só me resta a fuga. Boas possibilidades, aqui, deu me transformar no Gregor Sansa depois da metamorfose. Felizmente não tive essa sorte, talvez salvo por meu DNA humano ou por ser apenas um rapaz latino-Jurunense que Kafka jamais escolheria para suas experiências criativas.

Já no campo da "acrofobia", depois de residir por mais de 9 anos no quinto andar do Aldeia do Rádio, prédio construído no Jurunas na década de 80, expandi minha sensação de conforto até mais ou menos essa altura. No entanto, em lugares que não estou acostumado a frequentar, esse limite geralmente despenca e o frio na barriga me invadi dicunforça. Nessa conta, entram elevadores panorâmicos, bondinhos, mirantes, torres, topo de montanhas, roda gigante, viagens de avião etc. Particularmente, só de imaginar que preciso visitar alguém ou alguma encomenda num dos andares do Manoel Pinto da Silva, já sinto as pernas bambas. Talvez pudesse me transformar, aqui, num instrutor de paraquedismo ou até quem sabe, num piloto de avião. Felizmente também não tive essa sorte, salvo quiçá por minha veia artística.

Quanto ao campo da "harpaxofobia" - isto é, medo de ser assaltado -, varia um pouco conforme o período do dia - geralmente aumenta a noite - e o espaço de tempo de um assalto a outro. Por exemplo: a última vez que fui vítima de assalto, perdi a bicicleta e fui ferido na mão com um gargalho de garrafa; o ferimento na mão foi superficial, mas profundo no psicológico: passei alguns meses com bastante receio de voltar a andar de bicicleta; mas como esse é o principal meio de transporte que escolhi pra trabalhar e resolução de coisas domésticas, fui superando aos poucos e hoje já voltou a minha rotina diária. É claro que voltar do trabalho às 22h, trafegando por ruas quase desertas, como a Generalíssimo Deodoro e a Serzedelo Correia, ainda causa receio, mas esse desconforto é superado pelo prazer de pedalar pelas ruas da cidade. Sem dúvida, aqui, fui salvo de me transformar num delinquente pela incisiva instrução de meus pais, em particular de minha mãe, que além de me colocar na escola, não aceitava outro resultado no boletim que não fosse "APROVADO" e, de preferência, antes do período da recuperação. Imaginem vocês o que me ocorreu aos dezesseis anos quando reprovei na primeira série do segundo grau (hoje ensino médio)? Nunca nenhum dos três filhos da matriarca Silva havia realizado tamanha audácia. Ser impedido de ver minha primeira namorada, que bateu na porta de casa naquela noite, foi o menor dos meus males. Enfim, nenhuma chance de entrar pro mundo da marginalidade. Valeu mamãe!

Poderia listar ainda minha "hematofobia" desde os tempos do "fura dedo". Exames de sangue continuam sendo bastante desconfortáveis, embora as agulhas de silicone tenham amenizado bastante o sofrimento físico; o desconforto psicológico, obviamente, se mantem inalterado. Nessa conta entram, é claro, os filmes de terror - sangue é sangue, mesmo que ficcional - e imagens com gente se acidentando gravemente. Agora imaginem vocês se eu tivesse me transformado num agente da SUCAM (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública) e saísse por aí, à noite, com a minha maleta preta na mão, portando pequenas agulhas e lâminas para coletar testes de filariose? Suei frio só de imaginar. Neste caso, certamente fui salvo de me transformar no temido "fura dedo" pela extinção da SUCAM, em 1991.

Nenhum desses campos, no entanto, é mais digno de nota e faz jus a premissa em questão do que minha natureza por assim dizer "apolínea". Desde pequeno fui fascinado pelas linhas retas, pelas formas geométricas, jogos de quebra-cabeça, brinquedos de encaixe e até pelos cálculos matemáticos simples. Lembro, até hoje, do prazer que senti com a tarefa da terceira ou quarta série do primário: escrever de 1 a 100 em números romanos; minha empolgação fora tanta que resolvi continuar escrevendo até chegar à 1000; e depois ainda passei um tempo brincando de escrever em números romanos pulando de mil em mil ou fazendo combinações do tipo: 1055 = MLV, 1127 = MCXXVII, 4990 = IVCMXC, 9999 = IXCMXCIX e por aí em diante...

Quando cheguei no segundo grau tive a convicção - de um adolescente de quinze anos - que a melhor área de estudos seria, sem sombra de dúvidas, o CE, isto é, as Ciências Exatas. Naquela ocasião, deveríamos escolher entre as áreas do CE, CB (Ciências Biológicas) e o CH (Ciências Humanas) - não recordo se também nos ofereciam, no segundo grau, o CA (Ciências Agrárias). Acredito que inspirado pelo patriarca da família Silva - pedreiro e serviços gerais de marceneiro, pintor, eletricista e encanador - o curso de Edificações na Escola Técnica Federal (hoje IFPA) se apresentou logo como a melhor opção e se colocou como minha meta, mas que logo foi deixada de lado com minha não aprovação no teste de seleção. Restou-me o consolo de cursar CE no "orelha de burro" (antiga escola Orlando Bitar, atualmente creche Prof. Orlando Bitar). E foi exatamente nesta etapa da vida que comecei a desconfiar desse meu apreço pelo universo das "exatas" quando, ao final do ano letivo de 1991, confirmo a primeira grande decepção escolar da família Silva: R E P R O V A D O. Como isso havia acontecido comigo, garoto estudioso que penteava o cabelo pro lado e adorava contar números romanos?

Ocorre que exatamente naquele mesmo ano eu também entraria em rota de encontro definitivo com o Teatro. A juventude da paróquia de Santa Terezinha do Menino Jesus conhecia um dos seus mais expressivos diretores e atores teatrais de todos os tempos - dada minha modéstia, eu mesmo me atribuo tamanho prestígio e talento. Então, a militância na Pastoral da Juventude, particular e diretamente ligada a escrita, atuação e direção de montagens teatrais de cunho de contestação social ampliou de modo decisivo os meus horizontes e minha visão de mundo ganha outros contornos. E fazer teatro dentro da igreja me fez perceber também que havia teatro sendo feito fora dela. Essa "descoberta" foi coletiva quando, então, saíamos depois da missa da juventude, no domingo à noite, rumo ao anfiteatro da praça da república pra ver, deslumbrados, apresentações como "Violetango", da Cia Atores Contemporâneos, "Os sete gatinhos", da Dramática Cia ou ainda "O pastelão e a torta", de um grupo que não recordo o nome. O mundo do teatro se mostrava aos meus olhos com todo o seu esplendor.

E, então, simultaneamente o meu "fantasma de areia" começou a se formar, sem que eu percebesse exatamente o que se passava, sem que eu me incomodasse tanto, no início, com sua manifestação em forma de poeira, sem que eu me dessa conta do processo, de grão em grão de areia fui me transformando no fantasma de areia do "artista apolíneo": meticuloso, planejador, obsessivamente organizado, perfeccionista, rigoroso, metódico, calculista, preciso, exigente, detalhista, categórico, cartesiano (cruzis!!!).

É claro que algumas dessas características se mostram produtivas em qualquer processo de criação e até pra quem pretende encontrar algum equilíbrio na vida - acredito nisso, mas pode ser só o meu fantasma de areia se manifestando novamente. A questão, talvez, seja encontrar o "meio-termo justo" de que nos falava Aristóteles e, nesse caso, saber equilibrar esses grãos de areia apolíneas com o fogo dionisíaco que tudo consome, tudo transforma e tudo aquece com a chama incandescente das paixões incontroláveis. E esse é o estranho que venho perseguindo desde os tempos de teatro na igreja, posto que o familiar, pra mim, sempre se manifestou sob a forma de números romanos ou cálculos de precisão matemática.

Desde então, quanto mais "dionisíaco" tento ser na minha vida e nos meus processos de criação, mas me vejo enredado nas minhas manias e tramas "apolíneas". Por isso também, cada vez mais procuro estranhar esse familiar fantasma de areia que me tornei, na tentativa de quem sabe, compensar meu excesso de areia e minha deficiência de fogo - afinal, sabemos que o excesso de areia apaga o fogo, mas que o fogo ao produzir altas temperaturas é capaz de transformar areia em vidro. Minhas esperanças são renovadas sempre que testemunho esse tipo de alquimia acontecendo nos palcos. Não foi diferente quando visitei a casa de Natanael (seria esse realmente o seu nome?), o estranho fantasma de areia que conheci na noite do último dia 21 de junho.

Ele é um homem alto, magro, pálido, um pouco descabelado, barbudo, braços longos, dedos das mãos enormes, vive descalço, de paletó e calça comprida cor de terra... por vezes, percebo sua face transfigurada por um olhar cândido, uma ternura tão espelhada na suavidade de sua voz e na delicadeza dos gestos que me faz acreditar ser apenas um garoto de quatro anos de idade, embora tenha a estatura de um jogador de basquete adulto da NBA.

Sua casa, aparentemente, me é familiar: no chão da sala, um tapete de lona plástica preta - daquelas de cobrir materiais de construção, barro, aterro, areia... - aberta no chão; dois quartos, cada um com uma cama feita de grandes gavetões de madeira compridos, uma cama com colchão de areia e a outra sem colchão; de volta a sala, quatro colunas gregas, uma em cada extremidade do centro da sala, feitas de sacas plásticas - do tipo saca de ração de 20k pra cachorro - de pé, sustentadas por algumas pás de areia que lhe servem de base; no centro da sala, outro tapete alaranjado por sobre o primeiro, feito de outro tipo de lona de textura mais áspera e grossa; o teto é confortavelmente baixo, daqueles que permite uma pessoa de 1,70m, como eu, caminhar sem nenhum constrangimento ou perigo de acidente na cabeça - desde que não invente de pular efusivamente sob qualquer pretexto.

Minha familiaridade com esse lugar se explica pelas memorias imediatas que me acionam: as lonas me remetem a minha infância inteira, período que minha casa atravessou uma longa e lenta transição: da palafita de madeira dos meus primeiros anos de vida, até a casa de alvenaria da minha adolescência e juventude, ocasião que já tinha forças e já havia aprendido a bater massa de cimento e concreto pra ajudar meu pai - todo material de construção era coberto com esse tipo de lona pra proteger da chuva. Já tive filhas felinas (quatro) e filhos caninos (dois), daí minha recordação e leitura das sacas de ração. E, por fim, as túnicas e estolas dos padres de Santa Teresinha eram guardados em armários largos com enormes gavetões; como também já fui coroinha, por vezes era eu quem guardava e organizava as vestimentas nesses gavetões que se transformaram nas camas de Natanael.

É nesse lugar familiar, portanto, que vive o fantasma de areia que Natanael se transformou e que me instiga a pensar novamente sobre a natureza do fantasma de areia que eu me transformei. Mas à medida que vou conhecendo sua história, seus dramas, suas emoções e experiências de vida é o seu cadinho, sua alquimia, o fogo abrasador que corre em suas veias que me saltam aos olhos. Desde que ouviu a história do "homem de areia" contada por sua babá, essa lenda o perturba, o atormenta e prioriza sua atenção a tal ponto dele próprio quase se transformar naquilo que um dia mais temeu. Parafraseando Durant: "Nós somos e/ou nos transformamos no que repetidamente tememos".

Natanael é todo areia, tudo a sua volta é areia. Em determinados momentos sua fala parece solfejar poeira, sua alma me parece desértica, árida; das olheiras pesadas e dos olhos esbugalhados de medo, dor e sofrimento parecem rolar lágrimas em forma de minúsculas partículas de areia; seus poros transpiram pó, sua boca deixa escapar saliva em forma de polvilho, seus dedos parecem se expandir e se moldar perfeitamente toda vez que captura algo entre as mãos. E fora temendo tanto o "homem de areia" que Natanael se transformou num fantasma de areia.

E, no entanto, sua natureza resiste a petrificação, seu corpo nunca se solidifica, seu organismo segue num processo contínuo de se moldar as necessidades e desafios que a vida lhe apresenta. Intuo que é seu fogo dionisíaco, a chama que corre nas veias produzindo a alquimia perfeita em seus membros de areia. Fogo alimentado por seus delírios, recordações vagas, experiências desencontradas, fatos incompreendidos de outrora, sentimentos confusos, sonhos, estados sinestésicos entrecortados por lembranças difusas... ele é literalmente um "fantasma de areia", mas nunca o próprio "homem de areia"; desafia, assim, a minha premissa e me faz pensar em como proceder na minha própria alquimia com o fantasma de areia que me tornei. E me encoraja também a pensar sobre as próprias referências aristotélicas que uso, e cito aqui nesta crítica, como metodologia de autoanálise. Afinal, quem garante que somente os parâmetros fundados na racionalidade ocidental podem oferecer a justa métrica entre vícios e deficiências?

Portanto, se de fato "somos o que repetidamente fazemos", então, que superemos o medo de nos transformar naquilo que mais tememos e sejamos fantasmas de areia num cadinho de fogo, como nos ensina Natanael (ou Leoci). E mesmo que esse fantasma de areia não nos pareça nada familiar, fale com esse estranho, pois afinal estranho tem sido este mundo escroto que nos desencoraja dos sonhos, utopias, loucuras e delírios subversivos.

29 de junho de 2022.

[1] Ator e diretor teatral; Coordenador do Projeto Tribuna do Cretino.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética. Trad. Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1987 (Os Pensadores).

DURANT, Will. A história da filosofia. Trad. Luiz Carlos do Nascimento Silva. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

Ficha Técnica

Dramaturgismo, Concepção de Sonoplastia e Atuação:

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Residência Artística:

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Realização:

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