Fardos – Por Edson Fernando

31/10/2022

Intervenção cênico-performática: "Café da Dona Pereira"

Montagem: Projeto ReMatintas

Edson Fernando[1]

Antes de qualquer observação e/ou consideração, gostaria de dizer que a proposta de intervenção cênica-performática - vou chamar assim, acreditando que tal classificação consiga dar conta da fluidez de linguagens presente no trabalho - oferecida pela Casa Matinta, continua a me proporcionar uma experiência agradável, instigante e diferente de boa parte de tudo que tenho acompanhado da nossa produção local. No entanto, ao contrário da primeira intervenção que ocorreu numa noite de novembro de 2016 - ocasião em que estive ao lado dos parentes e amigos da família, para velar a Dona Pereira -, neste novo encontro, quase seis anos depois, reunidos para tomar um café com as irmãs, filhas, tias, netas, primas, avós, bisnetas, amigas, vizinhas... enfim, com as mulheres direta ou indiretamente ligadas à família Pereira... neste novo encontro, as coisas me pareceram um pouco desajustadas, desarranjadas, desequilibradas e/ou soltas demais ao longo do encontro que se prolongou por cerca de uma hora.

Suspeito tratar-se do fardo de Dona Pereira.

Não me refiro propriamente ao fardo genético, isto é, da transmissão genética dos poderes sobrenaturais que se passa entre as parentas. Nem tão pouco me refiro ao fardo adquirido por meio de interdição moral ou religiosa - como, por exemplo, criança nascida de relação proibida entre uma mulher e um padre. E menos ainda do fardo provocado por encantamento, isto é, aquele pelo qual a velha Matinta utiliza o conhecido ardil para sacramentar o encantamento da vítima: "Quem quer? Quem quer?".

Em todos esses casos, estou convencido de que a sabedoria popular presente em solo belenense seria mais que o suficiente para prevenir a mais desavisada das almas, de modo a preservar sua integridade espiritual e romper o encantamento das danadas Matintas. Se bem que ultimamente tem se multiplicado, assustadoramente entre nós, umas almas bem lesadas - do tipo gala seca, mesmo -, alienadas de qualquer tipo de bom senso material ou espiritual, vítimas da era digital - bombardeamento de informações sem filtro crítico algum - e/ou da lavagem cerebral das igrejas caça níquel que se proliferam como praga e que não se acanham em cultuar qualquer bezerro de ouro, desde que lhes seja garantido os lucros financeiros e os privilégios da "família de bem brasileira". A estes, o fardo mais agourento da mais traquina e irrequieta Matinta ainda me parece pouco para quitar as dívidas junto ao equilíbrio cósmico e cármico do universo.

Me refiro, isso sim, ao fardo da linguagem teatral, ao fardo da relação palco-plateia convencional, ao fardo do público como espectador da ação e da ação teatral como catalisadora de todos as atenções na medida em que ela enreda início, meio e fim de um acontecimento que será tensionado ao longo de sua duração até chegar ao seu clímax, momento do desfecho para o bem ou para o mal das personagens. Enfim, me refiro, portanto, ao jogo de convenções estabelecidos no imaginário e comportamento daqueles que frequentam os espaços culturais da cidade.

Para discorrer sobre esse fardo, que suspeito se abater sobre o Café da Dona Pereira, volto minha atenção, brevemente, para o Velório da Dona Pereira, intervenção performática que, a meu ver, soube lidar muito bem com os limites dessas convenções, ora flexibilizando as linguagem, ora abrindo mão de mise en scène e formalismos técnicos e ora costurando tudo de modo fluído sem cair no mero pacto ficcional contemporâneo no qual público e atuantes fingem conhecerem as novas regras de desconstrução das linguagens. Espero conseguir, de modo sucinto, esclarecer um pouco sobre isso para, então, problematizar os desarranjos, desajustes e desequilíbrios do Café.

Por ocasião do Velório, toda a atmosfera visagenta, misteriosa e de assombração se coaduna com as incertezas calculadas do roteiro e do percurso que trilhamos naquele casarão pouco iluminado, de generoso quintal e de muitas janelas abertas que nos permitem ver de dentro pra fora, mas também de fora pra dentro, as várias entidades que povoam o lugar; e são muitas delas e estão por toda parte. Uma delas, em especial, estabelece a unidade entre todas as partes que se encontram dispersas ao longo de todo o Velório: a velha de cabeça branca. Eu a batizei assim, desde a crítica passada, por motivos óbvios: ela possui cabelos brancos. E de tão alvos eles não só se destacaram na minha percepção-recepção da intervenção, como também conduziam nossos deslocamentos por todos os cômodos do Casarão assombrado.

Permito-me a imprecisão da memória - afinal isso se passou a quase seis anos atrás -, mas tenho quase certeza que essa entidade, a velha da cabeça branca, fazia a ponte perfeita entre todos os espaços e tempos de atuação. Havia ações simultâneas ocorrendo quase o tempo inteiro, mas a velha da cabeça branca não me deixava perdido ao acaso e nem solto entre os cômodos da casa por entre as entidades que por ali transitavam. É bem verdade que ela não exercia nenhum comando direto, nenhuma ordem explicita ou orientação categórica de que deveríamos seguir esse ou aquele caminho; o que me lembro é de indicações gestuais, indicações corporais sutis e/ou códigos subliminares exercidos com a maestria do olhar, por exemplo. Um simples acenar de dedos me parecia o suficiente para entender que as ações se deslocariam para este ou aquele ambiente. Bastava seguir a velha da cabeça branca e eu estaria no lugar "certo" para conferir o próximo acontecimento. É claro que o tempo de fruição de cada cômodo assombrado e cada intervenção das entidades variava de pessoa pra pessoa, mas o fio condutor - a velha da cabeça branca - se desenrolava a minha frente e isso me assegurava tanto tranquilidade para fruir um pouco mais ou um pouco menos cada momento, quanto me deixava livre para estabelecer ou não relação causal entre os acontecimentos que iam sendo vivenciados.

A velha da cabeça branca, portanto, no meu entender, me assegurou uma experiência de trânsito entre os códigos e convenções da linguagem do teatro e dos elementos da performance. E acredito que esse transitar entre os dois - Teatro e Performance - é que tornou a experiência do final, arrebatadora: me deixando conduzir por ela durante todo o velório, acreditando que ela exercia a simples, mas determinante, função de mestra de cerimônia, fui tomado de assalto quando ela simplesmente desaparece como num passe de mágica, ou melhor dizendo: como num bater de asas de uma genuína Matinta. Ela não é o que parecia ser, ou seja, uma simples condutora da ação cênica; ela é a própria personificação de uma entidade que coloca em xeque a existência da ação cênica ao desaparecer sem deixar vestígios. Será que realmente vivenciamos tudo aquilo que acabamos de ver no Casarão ou foi um engano, um sonho, uma feitiçaria?

Agora voltemos ao Café. Assim como no Velório, o clima visagento presente desde a central de atendimento virtual da equipe de produção corrobora para o estabelecimento de uma atmosfera misteriosa e assombrada desde o primeiro contato. A arquitetura da frente do Casarão no cair da noite mantém e reforça visualmente todo o clima soturno propositadamente planejado pela produção. A recomendação é chegar às 19h em ponto, mas a ansiedade e minha meticulosidade me fez chegar vinte minutos antes. Tudo fechado, tudo no escuro, tudo em silêncio. Tudo me remete a sensação de porta de cemitério. Cerca de vinte minutos de espera até avistar, por entre as grades do portão, o fio de luz que rasga a escuridão: é o bailado da chama de uma vela acesa, posta em cima de uma mesinha, no canto da porta de entrada do Casarão. Quase que simultaneamente a matriarca Pereira e o caçula Pereira - os nomes, batizados assim, são por minha conta - rompem a paisagem: a primeira surge próximo a porta, envolta num véu negro; a chegada do segundo é precedida pelos quiques da bola do círio, para logo depois revelar o garoto, vestido todo de preto, que corre e brinca com a bola. Este último é de longe a aparição/assombração mais bizarra e assustadora de todo o Café. É ele quem me recebe, purifica meu corpo e libera a passagem no portão me deixando ir ao encontro da matriarca Pereira. Ela, por sua vez, me orienta a verificar o tamanho do fio da minha vida para, em seguida, me mostrar o caminho por onde devo adentrar no Casarão. Daí em diante o fardo vai se tornando cada vez mais intenso ao longo de todo o Café, pois na ausência da velha da cabeça branca todo o universo de encantarias e entidades, espalhadas por todos os cômodos e espaços do Casarão dividem nossa atenção. Bom, o problema não é exatamente essa divisão e dispersão da atenção, pois se o propósito do Café fosse (e será que é?) precisamente oferecer uma experiência simultânea com todas as entidades presentes ao longo da duração do encontro, oportunizando a cada pessoa a li presente traçar seu próprio caminho de fruição, a divisão da atenção seria a pedra de toque da encenação. No entanto, fiquei com a impressão de que essa simultaneidade das ações vai ficando cada vez mais rarefeita com o passar do tempo, a ponto de num determinado momento termos uma boa concentração de entidades no quintal da casa (anfiteatro), com quase todo - senão todo - o público sentado observando as "cenas", como se naquele exato momento é que o acontecimento central se desenvolvesse. Esse fato é curioso e, pra mim, revelador do comportamento e expectativas tanto do público, quanto dos atuantes. Preciso me deter mais nisso pra me fazer entender.

Depois que a entrada nos espaços é propriamente liberada, individualmente, pela matriarca Pereira, as pessoas vão entrando e seguindo quase o mesmo trajeto, de modo intuitivo, haja visto não haver alguém que oriente exatamente por onde e pra onde ir. Então, o primeiro lugar que sou induzido a acreditar ser o começo da "ação central" é a cozinha, cômodo onde somos recebidos com uma mesa farta de comidinhas pelas vizinhas Pereira. Na cozinha, vamos comendo, conversando com as vizinhas e nos agrupando lentamente, à medida que as pessoas vão chegando. Os poucos lugares na mesa são logo ocupados e não demora para que a cozinha concentre boa parte - se não todo - o publico num só ambiente. Gera-se com isso uma sensação de que cada coisa acontece no seu determinado tempo e não simultaneamente. Então, mesmo quando as vizinhas começam a dar pistas de que temos que explorar as outras partes da casa - seja para dar lugar aos que estão em pé, na cozinha; seja para fazer a encenação acontecer simultaneamente - cresce em mim a impressão de que o público age pelo efeito de manada, isto é, reagem àquela situação da mesma forma, seguindo a mesma direção, embora não exista direção nenhuma planejada.

Assim, ao sair da cozinha e sem observar movimentação no quintal, sigo pelo corredor do Casarão até os salões da frente; este é o novo local de concentração de público e de atuantes. Espontaneamente se forma uma plateia em formato de arena com as pessoas encostadas pelas paredes; pelo menos seis Pereiras transitam e mandigam neste momento por ali, enquanto há outras espalhadas pelo jardim lateral e outros cômodos do Casarão. A formação espontânea dessa plateia gera novamente no ambiente a expectativa de novo acontecimento a ser acompanhado coletivamente. Tal expectativa, no entanto, vai sendo eliminada à medida que se percebe que as ações, das diversas Pereiras por ali, não estão conectadas entre si de modo lógico e linear; evidentemente estão entrelaçadas por uma coerência de natureza mítica, não linear, não causal e absolutamente alegórica, o que nos força a construir um entendimento muito particular de tudo aquilo que nos cerca. Então, assim como se formou espontaneamente, a plateia vai se desfazendo gradualmente até se recompor novamente em nova área de concentração, desta vez no quintal.

Pra quem nunca esteve no Casarão é justo dizer que o seu quintal abriga o anfiteatro dos Tajás - se não estou enganado. Logo, o local planejado para receber apresentações teatrais, com seus dois ou três lances de degraus circulares, reforça a ideia de que é chegada a hora de presenciar o acontecimento principal da intervenção. O público se senta para acompanhar a desenvoltura das Pereiras que se deslocaram até lá. Arrisco dizer que quase todas as Pereiras que se chegam até o quintal já haviam sido vistas em outros cômodos do Casarão, ou seja, a rigor já acompanhamos suas ações, seus pequeno ritos, suas pequenas encantarias e estripulias. Evidente que a atmosfera do quintal, com seu vento fresco, pouca luz e a noite estrelada, dão contornos diferentes para fruir tudo aquilo que já fora vivenciado antes, mas não deixa de me gerar certa frustração, pois a travessia por entre a vegetação ali presente, para chegar até o anfiteatro, me faz crer que estou adentrando o próprio território das Matintas, isto é, a mata, local mais que propício para novas mandingas, assombrações e estripulias das danadas. Não é propriamente o que ocorre. Apenas uma intervenção nova se destaca aos meus olhos: são as Pereirinhas mais atentadas que laçam suas vítimas com o abrir de suas asas para aplicar um susto nos mais incautos que se encontram por ali.

Passado algum tempo no quintal atuantes e público vão se espalhando novamente pelo Casarão, sem mais se concentrarem na mesma proporção ocorrida anteriormente no salão da frente, na cozinha e/ou no quintal. É propriamente nestas três ocasiões de concentração de público e atuantes que identifico o fardo, o fardo da linguagem teatral mencionado anteriormente. Se por um lado observo a expectativa do público em se ancorar num local para assistir ao "acontecimento principal" que nunca chega, por outro também observo os atuantes sendo atraídos para os locais de concentração de público. E esse me parece ser o jogo que espontaneamente se configurou no dia que tomei o Café com as vizinhas Pereira: público ávido por assistir, atuantes seduzidos para se apresentarem ao público.

A questão final que deixo em aberto com a equipe da intervenção é: a quem pertence realmente esse fardo: aos atuantes? ao público? Ou a ambos?

Sinto falta da velha da cabeça branca.

OBS: Considero digno de nota que na data de hoje chutamos a bunda de um facínora. Que lhe caiam todos os fardos criminais que ele próprio colocou em curso, que apodreça na cadeia e queime no fogo dos infernos.

30 de outubro de 2022

[1] Ator e diretor teatral; Coordenador do projeto Tribuna do Cretino

FICHA TÉCNICA:

Coordenação Projeto ReMatintas:

Adriana Cruz

Relatoria:

Paulo Ricardo Nascimento

Estagiários:

Patrícia Pessoa e Gutto Ferreira

Olhar cenográfico:

Maurício Francco

Identidade Visual e Design:

Carol Abreu

Todos os atuantes são participantes dos Laboratórios do Projeto ReMatintas

Laboratório de Manipulação de Objeto-Rede:

Vandiléia Foro

Sidiane Nunes

Tarsila Maquiavel

Laboratório de Mascaramento:

Anibal José Pacha Correia

Claudia Gomes

Inaê Nascimento

Karina Azevedo

Victoria Santos

Jeziel Espindola

Ivone Xavier

Laboratório de Performance:

Maurício Francco

Sol Di Maria

Laboratório Objetos Luminosos para Cena:

Thiago Ferradaes

Izi Neto

Tarik Coelho

Laboratório Sons e Cena:

Cincinato Jr.

Oiran Gomes

Ítalo Matta

Laboratório de Figurino:

Nanan Falcão

Ila Falcão

Thereza Ojú

Laboratório de Produção Criativa:

Cristina Costa

Fafá Sobrinho

Andréa Rocha

Marcelo Brito

Fernandu Sarmento

Maridete Daibes