Guiomar: rindo e chorando com ambiguidade, dissimulação e ironia - Por Raphael Andrade

28/02/2021

Montagem: Guiomar

Montagem Teatral: Grupo Palha

Raphael Andrade[1]

Sábado, 27/02/2021, parafraseando Caetano, faz "tempo, tempo, tempo, tempo..." que não vou ao teatro e, concomitantemente, não escrevo sobre o mesmo.A pequena escrivaninha parece um cemitério de papel, totalmente pálido, sem rabiscos, à espera de tintas e ideias coloridas.

Parece-me que o sistema nervoso que já anda tão abalado por estar vivendo tempos sombrios, negacionista e em plena pandemia, não tem mais nem forças para escrever uma composição poética minimalista de aldravia. Contudo, essa coisa que alguém denominou de teatro, que significa ipsis litteris "lugar onde se vê", é capaz de desanuviar os pensamentos, clarear as retinas já cansadas de vislumbres tristes de doença, necropolítica e mortes e nos DÁ - verbo muito bem empregado na peça que será explana adiante - forças para seguir.

Hoje, logo após assistir ao espetáculo "Guiomar", com texto da professora e dramaturga Lourdes Ramalho (1929- 2019), disponível também em formato de live, (https://www.facebook.com/fumoartistico) sinto-me privilegiado por ter tido a oportunidade de ir ao teatro presencialmente e poder vislumbrar pelos meus olhos (e não por uma tela de celular) o fazer artístico teatral. Digo isto pela procura constante de vencer o reiterativo cotidiano de isolamento através das plataformas digitais que, possivelmente, pode haver oportunas descobertas, porém, a meu ver, não há verve.

O entusiasmo do artista é saber que o lugar onde se vê, ou simplesmente teatro, sobrevivente há mais de vinte e quatro séculos, jamais será vítima da peste, da covid-19 ou enquadrado em uma tela plana de um smartphone. Pois necessitamos do calor do outro, como diria Wlad Lima "do alcance do tato". Sem referir-me ao público, à ambientação cênica e, o mais importante, à E(SI)NERGIA da atuação.

E energia é o heterônimo de Luana Oliveira, que interpreta "Guiomar", que nos apresenta um processo criador interativo do encontro, da corporeidade, do humor ácido e reflexão política hodierna e inatual. Em que faz valer, assim, a força telúrica do Grupo Palha, que há quarenta e um anos se encontra no entremeio do sensorial e da provocação reflexiva, razão de ser e sustento estético da própria representação visceral do encenador Paulo Santana.

O espetáculo parte do texto indutor da obra sem conjunção aditiva "Guiomar sem rir sem chorar" (1982), que apresenta a personagem-professora nordestina que ensina história de maneira, digamos, não convencional. Nada mais oportuno em tempos de fake news, de desencontros históricos, de espectro político direitista com miasmas pútridos em vez de cerebelo, no qual almeja o revisionismo da história sem cabimento lógico ou respeito às regras metodológicas. Logo, apresentar uma historiadora fazendo recortes do Brasil de outrora e vigente de forma abertamente satírica em seu discurso, sobretudo nos trocadilhos infames, em tempos onde tudo está certo como "dois mais dois é igual a cinco", à la George Orwell, justifica-se à realidade precária do front brasileiro.

Na encenação, Guiomar se agiganta, não há necessidade de muitos elementos, portanto apresenta-se com minimalista interferência de objetos cênicos, o jogo lúdico se estabelece através da iluminação que ambienta e faz parte do jogo, assim como a irreparável e pontual sonoplastia, que carrega a onipresença masculina do meritíssimo, no qual está em uníssono com a expressividade corporal da atriz, aliada às suas instintivas modulações vocais, convergindo elementos da comédia, da chanchada e da bufonaria. Apesar de cair na tentação do riso fácil, repetições de gramelôs e de clichês, faz-se importante mencionar que tal questão ganha força pela proposta estética almejada, perceptível até no gesticular expansivo da solista, apesar de ainda precisar, em poucos momentos, saber o tempo certo dessas inserções.

E ainda pela constatação de que, neste adequado roteiro dramatúrgico modificado sutilmente para os tempos atuais, precisamos estar atentos para entendermos cada nuance do recurso da alegoria, pois se elabora a partir da contra-história da "nacionalidade" brasileira. Há no discurso, críticas ferrenhas à educação, principalmente ao que tange à pós-graduação. De forma irônica, narra a insatisfação com a falta de reconhecimento da sociedade perante os professores, confluindo, na maior parte do texto, para ambiguidades, dissimulação direcionadas às práticas sexuais e entrelinhas (AH, AS ENTRELINHAS...) de problemas sociais.

Guiomar, além de dedilhar conflitos inerentes ao indivíduo nordestino, nos revela no final da obra um substrato dramático que envolve, em apelo carismático, em média os 30 espectadores que puderam ver estupefatos do riso ao choro o final do espetáculo, que carrega nas malhas dos seus discursos, questionamentos acerca das questões sexuais, familiares, políticas e sociais, fator com premente urgência para tempos de tamanha incerteza que, transmutados na caixa preta de ideias, transfiguram-se em veredas de "gente, bicho, árvore e chão".

28 de fevereiro de 2021.

[1] Professor-artista-pesquisador. Especialista em Arte e Educação.

Ficha Técnica

Inspirado na obra "Guiomar sem rir sem chorar",

de Lourdes Ramalho, com adaptação de Paulo Santana.

Solo:

Luana Oliveira

Visualidade e sonoplastia:

Nelson Borges

Designer de luz:

Malú Rabelo

Assessoria de imprensa:

Leandro Oliveira

Arte Gráfica:

Raphael Andrade

Fotografia:

Bruno Moltinho

Filmmaker:

Everton Pereira

Encenação:

Paulo Santana

Produção:

Tânia Santana

Realização:

Grupo Palha