HOMO BUFALUS – Por Karimme Silva

03/07/2019

Montagem teatral: Forte como um búfalo.

Montagem: Grupo de Teatro Os Varisteiros

Karimme Silva[1]

O espetáculo Forte Como Um Búfalo, do grupo de teatro Os Varisteiros, propõe uma perspectiva de se abordar o teatro físico como construção de cena, além de utilizar como indutor dramatúrgico as histórias e vivências de moradores da Ilha do Marajó (PA). Um Marajó de paisagens e encantos, mas também de desigualdades e das relações de poder. Partindo de uma direção colaborativa, o grupo propõe um resgate de memórias dos habitantes do lugar, contadas através de imagens e da ação cênica. A peça privilegia e dá espaço à paisagem marajoara, tomando-a como fonte de sentidos:

Paisagem é uma fonte incessante de significação e uma vez acessível ao olhar e à mente, torna-se guia para as ações e condutas humanas; não se trata de um horizonte fixo e estático, mas construído de movimento, valores e sentimentos. Ao incluir aquilo que tem significância para os diferentes sujeitos, a paisagem deixa de ser o pano de fundo das atividades e acontecimentos e integra-se à existência humana (CABRAL, 2000, p. 41 e 42).

Loureiro (2016), em várias de suas obras, confirma uma percepção que abarca múltiplas possibilidades: "Na linha da ribanceira, entre o rio e a floresta, estão os arquivos da vida amazônica. É uma verdadeira escola do olhar. Uma pedagogia da contemplação" (p. 127). Os atuantes buscam imergir-se na paisagem. Há a projeção de cenas enquanto recurso visual, de modo a ilustrar a narrativa. Em cena, a história de homens, mulheres, idosos, contada sob a perspectiva de dois atores. A peça assume um caráter de quebra; intercala-se entre a cena e a realidade; em alguns momentos, não há distância entre Marcelo e Rangel com o público. Em outros, é a representação das histórias alheias. Em algumas cenas, é possível fazer um comparativo com o Solo de Marajó, de Cláudio Barros, através das memórias narrativas. Tais quais Dalcídio, todos buscam imprimir-se em trajetórias vividas nesta imensidão de campos e rios.

O ato de correr em esteiras remonta a uma trajetória vivida; a impressão é de que elas estão presentes para criar uma condição física que se nivele ao texto. É como se naquele momento, rememorar fosse chegar à exaustão. Muito é lembrança, mas nem tudo. São dois atores em cena: um branco, que faz as vezes de dono das terras, e o negro, que é o empregado artesão de argila. Ambos se tensionam a ponto de demonstrar a desigualdade entre patrão e empregado, entre negro e branco, entre riqueza e fome. O Marajó também tem nomes e fomes.

"As contradições sociais, no Marajó, assim como em outras sociedades latino-americanas, ainda provocam conflitos entre classes, visto que, nestas localidades há uma rede de poder e forças, que se constrói, no embate, entre os diversos níveis de poder, capaz de gerar uma disputa social" (FOUCAULT, 1979). A iluminação reduzida aponta para a direção do texto, eu preciso falar do que eu consigo lembrar, mas as memórias podem ser apagadas a qualquer momento, como se observa na transição entre cenas.

é tão difícil olhar o mundo e ver
o que ainda existe

Nos diálogos que se seguem, sejam eles de lembrança ou embate, evidencia-se o gestual de ambos os atores: o corpo se (en)carrega de dar força às palavras, aquele homem que vem do barro se firma, a argila endurece pra sustentar a voz, há peso em muitos momentos. É uma voz que existe enquanto fala de dois homens, mas que se perde ao se tratar das memórias femininas que também compõem o texto. Histórias de senhoras, das mulheres marajoaras, fortes como búfalas. Um ponto interessante trata da ambientação do espaço: a casa de arte e paisagismo São Folhas alude a uma aura familiar, como se estivéssemos na casa de algum parente ouvindo as estórias de visagens no interior - quem viveu sabe. O ambiente é acolhedor e dá espaço para um clima intimista e aconchegante, com poucas luzes. Na estética do espetáculo há forte presença de marrom e âmbar, talvez em alusão a essa lama como elemento fundamental do espaço: sem ela, jamais existiria a cerâmica marajoara; a minha força vem do barro, a minha força vem do mangue. Os dois atores buscam um corpo que possui como indução a luta marajoara, como forma de reterritorializá-lo:

[...] sendo que é no encontro (no caso, do ator consigo, com suas memórias despertadas no corpo) que se produz uma outra cartografia, um outro caminho, talvez ainda desconhecido, mas que merece ser percorrido, pois traz em sua trajetória vivências históricas. Seria isso o intento em desterritorialização para territorialização que nunca termina: eu me aproprio de algo que existe e ressignifico frente a meus gestos de leitura, pela interpretação e pelo interesse. Busca-se, assim, uma reorganização disso mesmo (JACOPINI, 2013, p. 66).

Na transição entre homem e búfalo, surgem diversas metáforas entre o corpo de um dos atuantes e seu ambiente cênico: a mudança de temperatura da luz, uma musicalidade por vezes previsível (o que seria mais forte do que guitarras distorcidas para a transição de homem e animal?), um corpo coberto de lama. A caixa cênica se torna menor quando a máscara, habilmente pendurada próxima ao teto, desce para encontrar o corpo do ator; uma ligação entre um organismo subjétil e uma máscara, por si só, totalmente imbuída de forças e significados. No momento em que o corpo adquire esta nova forma, os movimentos inscrevem outra qualidade/presença, dando lugar ao espécime de um novo mamífero, também sendo parte desta ilha de encantarias. Surge aquele que pode ser dócil, e ao mesmo tempo, traiçoeiro. A força da presença de um novo espécime, em outro corpo, encontrado na lama e na terra, nos campos e rios, nas contemplações e nas desigualdades.

Evoé, Homo Bufalus.

dessa terra sou

e sobre ela

me reproduzo

cruzo

devoro outros animais

tão rudes quanto eu

carnais criaturas

arranco pedaços

arranho predadores

e luto

luto até o fim

até que a carcaça me deixe

luto não somente

pela vida animalesca

mas contra a ignorância do ser homem

e pelo desejo em mim latente.[2]

03 de Julho de 2019. 

[1]Psicopedagoga, Atriz formada pelo Curso Técnico em Ator da ETDUFPA, artista-pesquisadora e mestranda do programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES/UFPA).

[2]Trecho de "Selvagem", poema de autoria própria. Disponível em: https://medium.com/@Karimme/selvagem-e9c674dae389

Referências

CABRAL, Luís Otávio. A paisagem enquanto fenômeno vivido. IN: Geosul, Florianópolis, Vol. 15, nº 30, p 34-45, jul./dez, 2000.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

JACOPINI, Juliano Ricci. O texto teatral (en)cena.2013.Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de Campinas/Unicamp, 2013.

LOUREIRO, João de Jesus Paes. Meditação devaneante entre o rio e a floresta. Arteriais - Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes, p. 120-132, out. 2016. ISSN 2446-5356. Disponível em <https://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ppgartes/article/view/3924/3905>.

FICHA TÉCNICA

Montagem:

Forte como um búfalo

Produção:

Grupo Os Varisteiros

Atores:

Marcelo Andrade e Bruno Rangel

Direção coletiva:

Assucena Pereira, Bruno Rangel, Enoque Paulino, Marcelo Andrade

Dramaturgia:

Enoque Paulino, Marcelo Andrade, Bruno Rangel

Iluminação:

Assucena Pereira e Enoque Paulino

Cenografia:

Bolyvar Melo

Músicos:

Yuri Reiner, Jimmy Góes, Rebeca Bertazo e Geovanna Bertazo

Assessoria de imprensa:

Laíra Mineiro

Produção de conteúdo:

Dani Franco

Material gráfico, fotografia, direção de vídeo e direção musical:

João Urubu

Tipografia:

Mael Anhangá e Liv Malcher

APOIO

Dani Franco - Comunicação Cultural

Urubu Pavão

StudioZ

São Folhas - casa de arte e paisagismo