Insubordinação periférica – Por Karimme Silva

08/10/2019

Montagem teatral: JURUNALDEIA.

Montagem: Coletivo  Mergulho. 

Karimme Silva[1]

De onde viemos e como estes lugares se relacionam com quem somos?

Onde estão nossas raízes e de que forma elas tornam-se frutos?

JURUNALDEIA define-se como um "ritual cênico insubordinado da periferia para periferias". E cabe perfeitamente na proposta que apresenta. O espaço Sociedade Recreativa e Beneficente São Domingos, onde é apresentado o ato, fica no coração do bairro do Jurunas. Em meio a muitas crianças, adolescentes e idosos do bairro, o ato se destrincha como uma homenagem. Uma forma de agradecimento ao espaço que acolheu a atuante Carol Magno e sua história de vida. Ela é uma metade cênica; Renato Torres, a outra metade. Ambos fazem parte do Coletivo Mergulho e como o próprio nome sugere, mergulham em depoimentos, observações e na própria história de vida para detalhar cenicamente como o bairro do Jurunas se originou. JURUNA! Em meio a olhares curiosos e admirados, os atuantes se utilizam de um espaço disposto em formato circular e uma iluminação reduzida para falar das histórias e memórias do bairro. Estes termos se entrelaçam em vários momentos, como o da mãe que vive a morte de um filho e o sensacionalismo midiático local, que se utiliza dos bairros da periferia como cenários para crimes e execuções de forma alegórica. Mas quais seriam as maiores alegorias periféricas? O estereótipo que se cria de ser "um lugar longe e perigoso"? Ou um espaço de acolhimento e comunhão da comunidade que ali vive? JurunAldeia quer falar de comunhão (não de uma forma idealizada e romântica), e faz isso com propriedade. As histórias individuais se mesclam com a história do lugar; Carol traz sua família para falar de violências, de como um contexto familiar pode gerar sequelas, bem como as marcas que um vidro quebrado pode deixar no corpo: garrafas são os objetos cênicos, mas esses vitrais aqui falam muito mais do que a sua materialidade: a atuante traz o peso do vidro e sua transparência; traz a beleza e também as marcas.

Não existem coxias na montagem e em vários momentos os atuantes estabelecem diálogos com o público, fazendo com que estes participem nas cenas: a comunidade precisa estar aqui, não somente observando curiosa/admirada, mas sendo parte do que se conta da sua própria história. A dupla se divide bem entre as cenas, enquanto Carol está em primeiro plano, Renato prepara-se para o próximo ato e vice-versa; ambos mantém suas energias em todo o ritual, não deixam buraco algum. Aliás, a palavra ritual mostra-se um termo interessante para definir (n)o contexto cênico: os rituais remetem à celebrações dos povos, a um momento mágico. Este momento se mostra mais forte nas cenas iniciais do ato, com toda a história da tribo Juruna. E como falar dos Jurunas sem falar de Apinagés, Tupinambás, Pariquis? É preciso localizar-se dentro das mais diversas influências indígenas para compreender a própria história. Este ritual busca dirimir preconceitos locais, sociais, musicais e tudo aquilo que coloca o bairro Jurunas longe do que se tem como referência. Importante destacar que o outro atuante vem do bairro do Guamá, outro espaço que possui características semelhantes, demandas e um povo que ali vive e sabe a importância destes lugares para suas próprias histórias de vida. Este ritual cênico também me propôs uma reflexão enquanto espectadora de teatro, pesquisadora e atriz: qual o nosso lugar nisso tudo? Onde estamos enquanto fazedores de teatro em Belém do Pará? Estamos somente no centro, na instituição Teatro? A periferia deve continuar sendo/existindo somente para outras periferias? Até que ponto tu (enquanto artista, enquanto público ou os dois) só te concentras nos espaços formais? O artista vai para os espaços alternativos, assiste os pássaros juninos, os grupos de teatro popular e as manifestações de rua? Ou fica nessa ideia de teatro burguesa, elitista e excludente para se firmar enquanto artista? Tantas perguntas que cada um deve fazer a si mesmo, tá na hora de buscar respostas e ações.

A periferia não nasceu para a subordinação. Não existe pra ser um mero complemento ou um espaço inferior ao que se denomina centro. Aliás, a ideia que se tem de "centro" é muito diversa, dependendo da perspectiva pela qual se observa. Temos em Belém um bom exemplo disto: uma enorme vala a céu aberto que é tida como centro por seus entornos, e mais ainda, pela discrepância social que se gera entre este espaço e muitos outros. JurunAldeia é uma declaração de amor, não-idealizada, não sem enxergar as brechas e dificuldades do lugar. Não sem perceber (e falar) dos problemas enfrentados pelo espaço. Trata-se de um amor realista, que enxerga os defeitos e mesmo assim convive porque ama. Ama o carnaval de rua, os cortejos de boi, as festas de aparelhagem, as figuras folclóricas do lugar. Não se trata somente do espaço geográfico, mas de toda uma afetividade, de um movimento que olha para si não como inferior, mas como um local de força, convivência, resistência e cultura. O olhar que se tem de dentro e para dentro. Uma celebração da periferia insubordinada. Viva Jurunas, viva todos os bairros periféricos, as manifestações artísticas produzidas nesses lugares e os seus encantos.

[1]Psicopedagoga, Atriz formada pelo Curso Técnico em Ator da ETDUFPA, artista-pesquisadora e mestranda do programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES/UFPA).

Ficha técnica
Roteiro, Atuação, Cenografia, Figurino, Trilha Sonora e Divulgação:
Carol Magno e Renato Torres (Coletivo Mergulho)

Direção:

Carol Magno

Iluminação:
Natasha Leite

Adereços:
Selma Magno, Roberta Mártires (Multifário), Aníbal Pacha, Enarê Arte Indígena 

Arte Gráfica:
Josi Mendes