Joana: O derradeiro solo sobre a condição humana – Por Elcio Lima

29/11/2023

Montagem Teatral: "Joana"

Montagem: Grupo Cuíra

Elcio Lima[1]

A condição humana tem sido combustível e fonte de inspiração para a escrita dramatúrgica e literária desde os primórdios do teatro, ainda que apresentada sob a ótica da fantasia, do mito ou do realismo fantástico. A questão da dignidade da pessoa humana é uma constante em muitos textos de sucesso justamente por abordarem questões universais que, em sua maioria, geram empatia e conexão com o agente receptor. A vida dos outros, num sentido mais profundo, costuma ser deveras interessante quando a abordagem opta por caminhos que nos tomam de assalto, nos pegam pela mão e nos lançam num turbilhão envolvente, onde o final é inesperado e a vida, exposta evisceradamente sobre a mesa, canta e dança suas dores e prazeres diante de uma plateia atenta e atônita. Assim é Joana, montagem teatral do Grupo Cuíra, apresentada no dia 11 de novembro, no Teatro do SESI, integrando a programação do Palco Giratório do SESC 2023.

Na trama, Joana, vivida por Zê Charone, é uma ex-prostituta que encarou as estradas ainda jovem e galgou sua jornada em busca de oportunidades, chegando a Tucuruí, no Pará, por ocasião da instalação da barragem da usina hidroelétrica nos idos anos 70. A dramaturgia, assinada por Edyr Augusto, é inspirada em uma história do livro A Leseira itinerante, de Fabiana Nanô, e transpõe elementos que se conectam de maneira extremamente harmoniosa ante a olhos marejados, seja pelo riso ou pela reflexão à medida que a vida da mulher se descortina, literal e metaforicamente ao longo de quase uma hora em um saboroso solo.

Sob a direção de Olinda Charone, Zê capta a atenção de seus expectadores como quem encara uma serpente. A capacidade de contar uma história é para poucos. Não importa se você vai falar sobre o dia em que correu de um cão na rua ou sobre uma traumática experiência de naufrágio, a forma como se conta é o que importa. E disso elas entendem.

O mundo da mulher em cena é apresentado em tom de conversa. Ela sabe que precisa falar. Precisa ou quer falar? Pouco importa, você vai querer escutar. A peça, curiosamente, evoca estranho saudosismo, talvez por conta da trilha sonora. Há algo de hipnótico no modo como a atriz usa seu corpo ao mimetizar eventos e momentos tais como a viagem, outras pessoas, convulsões, danças. A interação com os elementos de cena, quando surgem, são sutis até que ela os torna pessoas, ou pelo menos sombras de um passado tão presente que ainda pulsa e alimenta sua alma solitária cercada por diminuto espaço numa cenografia apaixonante e primorosa em toda sua simplicidade.

Sob a luz âmbar, as cortinas terracota e o colorido pontual dos objetos de sua pocilga explodem aos olhos emoldurando a figura humana que se agarra com unhas, dentes e gingado ao momento que tem para falar. Aliás, quem realmente para afim de escutar uma mulher surrada pela vida cuja mente deteriorada por anos de drogas e bebidas baratas não inspiram mais que dó ou repulsa? Na vida real, nas ruas, nos prostíbulos, nas esquinas... pode ser que uma minoria curiosa pela vida frágil e vulnerável que pulsa nas sombras do progresso ainda o faça, a maioria, contudo, segue o itinerário desviando de vidas tais que a arte consegue transpor para a cena e dar visibilidade, humanidade e voz.

A vulnerabilidade é uma característica intrínseca à condição humana, e todos estamos sujeitos a doenças, envelhecimento e experiências que tecem nossas vidas. Zê consegue expressar toda essa sujeição do riso ao choro; do silêncio arredio ao olhar que desafia seu público ao reconhecimento dessa vulnerabilidade, que pode inspirar compaixão, empatia e solidariedade ao compreendermos que todos compartilhamos da mesma condição, ainda que por trajetórias diferentes. No entanto, isso também pode gerar medo e ansiedade, pois confronta nossa sensação de controle e segurança. A busca por formas de mitigar ou lidar com o tema é uma constante na jornada humana, refletindo-se em esforços para melhorar a saúde, prolongar a vida e encontrar sentido nas experiências.

Joana é uma história para ser ouvida e vista com atenção. Um espetáculo que flerta com uma espécie de pessimismo social, uma resignação causada pela loucura, sob pinceladas de comédia. A personagem cava e nos leva ao fundo de seu poço enquanto narra aventuras e desventuras de uma vida desenhada pela relação entre a prostituição e a solidão feminina. Um trabalho que levanta tantas questões que caberiam em horas de debates e livros tais como: estruturas sociais e econômicas; estigma e isolamento; impactos na saúde mental; escolha pessoal, dentre outros.

Em última análise, a relação entre a prostituição e a solidão feminina destacada na peça, prima pela importância de abordagens compassivas, abrangentes e holísticas para lidar com as complexidades dessa realidade, bem como do abandono.

Ao término da sessão, após uma performance tocante, não tem como sair do teatro sem continuar escutando o ruído estridente, metáfora de um horror social, em meio às palavras firmes disfarçadas de resiliência na voz da personagem engolida pela escuridão.

Sempre que estiver em cartaz, recomendo: assistam Joana!

29 de novembro de 2023

[1] Elcio Lima é ator, diretor, escritor, dramaturgo e figurinista. Aluno do curso técnico em Figurino cênico e graduando de Licenciatura em Teatro. Colabora com o projeto de pesquisa O Clown Nosso de Cada Dia, e integra o projeto de extensão Tribuna do Cretino.

FICHA TÉCNICA

JOANA

Grupo Cuíra

Zê Charone como "Joana"

Direção:

Olinda Charone

Dramaturgia:

Edyr Augusto

Inspirado na obra "A Leseira itinerante", de Fabiana Nanô

Cenário e Figurino:

Charles Leon Serruya

Sonoplastia:

Marluce Oliveira

Desenho de Luz:

Marcos Quinan

Montagem de Luz:

José Igreja (Zezinho)

Concepção da Estrutura Cenográfica:

Wlad Lima

Cenotécnico:

Ribamar Monteiro

Serralheiro:

Aldo da Silva Pereira

Visagismo:

Ronaldo Fayal