JOANA – Entre a sístole e diástase da imagin(cor)ação – Por Raphael Andrade

19/11/2021

Montagem Teatral: Grupo Cuíra.

Montagem: "JOANA".

Raphael Andrade[1]

Há criatividade na loucura, ou seria na sua forma inversa? Não intento responder essa pergunta, mas bem sabemos que enquanto nós, ditos "normais", fazemos tudo de forma performada pela regra hegemônica, os esquizofrênicos agem como pensam. E há quem, genialmente, consegue transmutar essa forma de ver o mundo em livro/dramaturgia/teatro. Apesar de sabermos que, com um olhar desatento ou não clínico, a obra poderá ser apresentada de maneira equivocada, intensificando, assim, o lado pejorativo de quem sofre transtorno mental.

Mas não foi com o olhar desatento que o escritor Edyr Augusto nos presenteia com "Joana", uma livre adaptação da obra literária "A Leseira Itinerante" (Histórias de um psiquiatra pelas estradas, matas e rios do sul do Pará), de Fabiana Nanô. O dramaturgo em questão consegue transmutar na sua escrita cirúrgica, uma simbiose entre a comédia e o drama, numa tríade ambiência: miséria, jocosidade e solidão. A genialidade está exatamente ao escrever a dramaturgia de formas simples (mas não simplória) e com um elã vultoso de peripécias, coisas de quem é tão grande que, por saber do seu tamanho, consegue despojar da escrita academicista para fazer potência e boniteza na linguagem coloquial.

É o que podemos constatar na Casa Cuíra, que mesmo em tempos sombrios e pandêmicos, possibilitou-nos irmos ao Teatro. E também de sabermos que há, ali, na Cidade Velha, um espaço que detém essa magia. As vinte e poucos pessoas no velho casarão puderam ser psiquiatras desse espetáculo que eu defino como JOANA- entre a sístole e diástase da imagin(cor)ação. No qual explanarei nas linhas que seguem.

Com emissão de guinchos de roedores e preambulações do que aparenta ser um espectro visto pelo aparelho de TV, a nômade Joana nos é apresentada, ela adentra o espaço saindo de um porão, que mais aparenta ser seu esconderijo ou, quem sabe, sua própria cova. Mostra-se primeiramente à espreita, cuidadosa e arredia, como uma criança que volta, à noite, para a cama.

Ao abrirem as cortinas, nossos olhares deambulam, direcionando-se a cada detalhe da funcionalidade da engenharia teatral, numa mágica paisagem cenográfica apresentada em uma espécie de casinha de boneca frágil que, mesmo com os muitos elementos cênicos, não deixou que a visualidade ficasse "suja". Apesar do simulacro que, aparentemente, seria uma Síndrome de Diógenes (no que tange à ocorrência de colecionismo), um paralelo tanto pela acumulação de objetos; quanto pela subjetividade atordoada da persona. Essa é, portanto, a casa material que Joana habita, que faz parte da sua condição humana que está à margem, na fronteira do seu itinerário de lembranças. Seu figurino, adereços e visagismo nos remetem referencialmente aos anos 70, tempo este gravado na memória e na pele da persona.

De conversa em conversa vai se delineando o clima da cena, parece que já conhecemos a Jô (olha a intimidade!), pode ser aquela tia que sempre aparece no Natal e faz todo mundo rir, mas que sabemos da vida sofrida que a mesma leva; ou poderia ser aquela vizinha que todo mundo aponta o dedo e lembra do seu passado glorioso e da sua atual e dolorosa situação. Pode ser pelo fato de a personagem assumir com raro vigor da sua própria narrativa, como se fosse uma velha narradora de histórias, o que cria um inusitado e risível jogo lúdico.

O maior triunfo da persona é, sem dúvida, não possuir em suas ações nenhuma demonstração caricatural de uma mulher que sofre transtorno mentais, graças a verbalização e as ações da mimese corpórea de Zê Charone, que faz emergir um corpo inteiramente emprestado para Joana, que converge no carismático aporte sensorial no dimensionamento psicológico e na presencial fisicalidade alcançada pela representação da atuante, ora tomada entre meios tons, ora em entusiásticas vocalizações e até nos graves taciturnos, num mergulho cortante no exílio solitário e dúbio da condição miserável humana.

Em cena, temos a precisão das luzes integralmente em tom âmbar, e só! Pois o colorido está na atuação. Assim como as assertivas canções que ajudam a criar a atmosfera do jogo cênico. Além, claro, do preciosismo olhar apurado e preciso da diretora Olinda Charone, mulher que levanta a bandeira do Teatro Popular, se fosse pintora, Olinda pincelaria seu trabalho na arte impressionista (menos ao tentar romper os laços com o passado) à la Monet, pois até a sombra infeliz de Joana a mesma consegue colorir. Embora a personagem queira, muito provavelmente, ser retratada por Toulouse-Lautrec, que era fascinado em pintar cortesãs.

Joana alucina, não de forma que, como Mileto, cai no poço por olhar as estrelas. Ela foge do mundo material para o mundo das ideias (não de acordo com Platão), para poder inventar overdoses prazerosas. Parafraseando Cazuza: ela cria veneno antimonotonia para não ser engolida pelo caos. Afinal, como ressoa Artaud: "ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno" (1983, p.2).

Na solitude, a personagem consegue superar o medo lembrando da tenra felicidade que só cabe no pretérito, para que, assim, vibre em frequência como em uma festa. E, ao improvisar mundos, confunde-se nos territórios da sua mente e territorializa junto aos avós que a criaram, ao pai que muito a amedrontava, aos prazeres carnais e pelas glórias vivenciadas da época da construção da Usina de Tucuruí, mas o que Joana queria mesmo era voltar à barriga de sua mãe, pois poderia sentir-se segura novamente em um eterno looping. Sim, no deambular da sua mente Joana se afasta, contudo, sempre retorna ao passado primoroso que, porventura, ninguém sabe se realmente existiu. E pra quê saber? "Deixa assim!"

E este instigante jogo cênico, ao mesmo tempo, confunde o que seria insuspeito ou ilusório, e opera nos nossos mecanismos mentais o alerta contra a mera complacência de mais uma "contação de histórias", pois há entrelinhas, muitas! E esta simbiose de alguém que prefere vislumbrar o pretérito que singulariza a sua envolvência com o nosso tempo, transcendendo, de um epitáfio real, a infelicidade de sobreviver subversivamente e jocosamente para que, assim, consiga suportar as chagas imensuráveis do tempo presente. Entre o ir e vir pulsante de uma sístole e diástase da imagin(cor)ação.

19 de novembro de 2021

Referência

WILLER, Cláudio. Escritos de Antonin Artaud. Coleção Rebeldes & Malditos. Tradução, seleção e notas de Cláudio Willer. L&PM, 1983.

[1] Professor-artista-pesquisador. Especialista em Arte e Educação e Mestrando em Artes.

FICHA TÉCNICA:

Atriz:

Zê Charone

Dramaturgia:

Edyr Augusto

Sonoplastia:

Marluce Oliveira

Desenho de Luz:

Marcos Quinan

Montagem de Luz:

José Igreja (Zezinho)

Cenário e Figurino:

Charles Leon Serruya

Concepção da Estrutura Cenográfica:

Wlad Lima

Cenotécnico:

Ribamar Monteiro

Serralheiro:

Aldo da Silva Pereira

Visagismo:

Ronaldo Fayal

Cabeleireiros:

Guimas
Marcelo Duarte

Costureiras:

Lucila Vasconcelos e Graça Pantoja

Arte Gráfica:

Raphael Andrade

Produtora:

Zê Charone

Direção:

Olinda Charone

Agradecimentos:

Geraldo Viana Sales
Fabiana Nanô
Alice Moraes

Edson Santana