Lágrimas de inspiração em tempos obscuros e de solidão – Por Evanildo Mercês

10/11/2021

Montagem teatral: "Picadeiro: solo onde plantei minhas lágrimas"

Finalizamos uma importante etapa da vida de nossa Companhia Teatral com a última apresentação de 2021 da temporada da peça "PICADEIRO - Solo onde plantei minhas lágrimas" (solo com o ator Salustiano Vilhena), projeto financiado com recursos da Lei Aldir Blanc, por meio da Secretaria de Estado de Cultura - SECULT.

Um processo colaborativo que resultou num espetáculo poético, sensível e, ao mesmo tempo, denso. No entanto, não escapamos da tensão desse terrível momento pandêmico, pelo qual a humanidade atravessa. Era preciso conceber o espetáculo, sem esquecer de cuidar das nossas vidas frente à ameaça do vírus.

Como ocorre, geralmente, nos processos de criação, o caminho para se chegar a um resultado satisfatório (pois um espetáculo nunca encerra seu processo) é árduo e, no caso do teatro, sempre há espaço para o crescimento contínuo e dinâmico do rizoma.

E, nesses processos de criação, os desejos, sonhos, incertezas e controvérsias em movimento, nunca devem ser tratados como inimigos ou obstáculos, mas sim, como possibilidades.

Depois de alguns anos sem se apresentar nos palcos, a Má Cia. De Teatro volta. E volta simples, sem perder o seu estilo de uma jovem companhia teatral de Icoaraci que se arrisca nesse perigoso jogo experimental da cena para fazer teatro no Distrito para quem quiser ver. Volta simples, porque o grupo consegue, sem pretensões sórdidas, escolher acertadamente aquilo que pretende levar ao palco ao brincar com a tragédia da vida real, dizendo em tênues nuances a dor que um bom texto pode proporcionar à plateia. E isso faz da Companhia uma eterna aprendiz da arte, principalmente, quando consegue transformar o teatro numa brincadeira séria, que transcende a nossa realidade esmagada e nos transporta para o nosso universo de travessuras líricas de criança.

O novo espetáculo da MÁ CIA. DE TEATRO, é fruto de uma montagem de textos de diversos autores, como Fernando Pessoa, Rubens Alves, Bertolt Brecht, entre outros, que, juntos formam uma verdadeira poesia sobre a vida. Trazem como tema a solidão, memórias, conflitos existenciais e vida e morte.

"PICADEIRO: Solo onde plantei minhas lágrimas", é mais um daqueles espetáculos que começam enleados de uma infinidade de ideias sobrepostas à mesa, muitas vezes perdidas na nossa própria insegurança, mas que, aos poucos, vão se articulando e ganhando corpo, "como aquele menino que recebeu uma bacia de jabuticabas. A primeira ele comeu displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói os caroços".

"PICADEIRO..." é o tipo do espetáculo que nos dá liberdade para re-experienciarmos as aventuras do passado. Re-descobrir no nosso baú de memórias (e às vezes de ilusões) novas dores, cores, sabores e prazeres, desconsertando o que foi equivocadamente consertado e consertando o que não se consertou. E nessa assertiva filosófica, damos continuidade na nossa existência, desvendando novos rumos para ela.

A peça mostra a solidão de um artista intérprete de um palhaço, relegado ao abandono e que busca uma sobrevida nos poucos anos que lhe restam. A peça é uma metáfora sobre a vida e a morte, mas, também, sobre sonho e beleza. Uma profunda reflexão sobre o nosso estar/existir/resistir nessa realidade que, também pode ser, às vezes, um verdadeiro pesadelo, demonstrando o seu lado mais sombrio quando se revela cruel e violenta com o homem.

É uma metáfora. Mais, ao mesmo tempo, se confunde com os nossos momentos de crises e decadências, principalmente em tempos pandêmicos, em que a batalha pela sobrevivência é uma praxe que exige mudanças de hábitos, confinamentos e consciência de si enquanto ser coletivo. E, no nosso caso, como pessoas de teatro, por que não trazer à tona nossos delírios e alucinações para a cena? Afinal, nossas lembranças e memórias - felizes ou tristes - também não são instrumentos para a nossa imaginação e loucura em forma de poesia? Ou estamos apenas devaneando num vácuo sem eco? De fato, são perguntas implícitas na peça, cujas respostas vem de forma mansa e suave..., sem gritos. Porque o grito incorreto e intempestivo pode agredir e desagregar. Nesse sentido, optamos por textos densos e sensíveis, cuja concepção cênica pudesse alcançar o íntimo mais oculto da alma do ser humano: o medo da morte. Quem nunca contou seus anos? Quem nunca foi ou ainda é escravo de uma moralidade que impreca ameaças e castigos em forma de valores religiosos impregnados de medo e opressão? Será que Deus é isso daí? Não. Pois "Deus em virtude da sua perfeição não pode criar o pior. Faz sempre o melhor".

A concepção do espetáculo traz, na sua essência, características fundamentais do teatro contemporâneo: Um cenário - de Carlos H. Gonçalves - que, banhado de luzes ambientes, se impõe coeso, lembrando uma bela instalação viva e repleta de paixões; Sem dúvida, um visual rigorosamente belo, realçado pela potente e inexorável interpretação do nosso renomado ator Salustiano Vilhena que, com seu talento, trabalho e generosidade foi determinante no resultado. Aliás, vale dizer que, Salustiano Vilhena merece um artigo à parte, não só por esse esmerado trabalho, mas pela sua linda história como artista amazônida de teatro.

A praticidade cenográfica, a concepção visual e a rigorosidade com a técnica e organicidade no trabalho do ator, são alguns aspectos imprescindíveis nesse espetáculo. É uma prerrogativa da companhia que, assim como outros grupos da cidade, não abre mão desses conceitos. Além do rigoroso trabalho de texto, tais prerrogativas são "regras" como uma ponte que visa levar ao palco um espetáculo que possa ser visualmente lido e (con)textualmente entendido.

E para este ator e diretor que vos fala escapar de qualquer desconforto que possa ocorrer da acusação de egocentrismo ou vaidade (discurso típico do nosso atual tribunal inquisidor), vou terminar com a citação de dois comentários significativos e sensíveis de alguns espectadores que assistiram o espetáculo: "Para mim, foi um mergulho onde me fez refletir sobre pontos da minha vida, deixando-me emocionado...". Ou como disse um segundo espectador: "PICADEIRO é um renascer. Um encontro com a inspiração". Os textos selecionados para esse solo, nos impulsionaram para a criação de uma linda história que promove uma revisitação às perdas, às dores, às alegrias, aos lugares, às pessoas, às paixões etc., nos devolve a motivação e a coragem de seguir em frente em tempos tão obscuros... "mesmo com a terrível possibilidade de morrer!".

09 de novembro de 2021.

FICHA TÉCNICA:

Solo com o ator

Salustiano Vilhena

Direção, Sonoplastia e comunicação:

Evanildo Mercês

Concepção artística, Adaptação do texto, Produção e Design gráfico:

Carlos Gonçalves

Assistência de Produção e contrarregra:

Adriana Ribeiro

Vídeo e Operador de som:

Mateus Raiol

Figurino:

Ila Falcão

Transmissão, Som e Vídeo:

Ícaro Lima

Agradecimentos:

Guilherme Teixeira

Gorete Figueiredo

Palhaço Buscapé

Marcos Rozek

PMB / FUMBEL / BIBLIOTECA PÚBLICA MUNICIPAL AVERTANO ROCHA;

Governo do Pará / SECULT