Lapsus: quando dor, perdão e amor se transmutam – Por Elcio Lima

06/06/2023

Leitura/Espetáculo: Lapsus

Montagem: Cia2 de Teatro 

Elcio Lima[1]

Há tanto de belo quanto há de obscuro no ser humano, e tudo são potências em nossas vidas. Quando se pensa na história de uma pessoa, na maioria das vezes temos a tendência a ressaltar as qualidades, os grandes feitos em benefício do outro, os momentos felizes e de superação. Repassamos trajetórias como quem revisa as páginas de um livro, saudosos até que também nós nos tornemos saudade na vida de alguém (ou não).

Há ainda quem ame contar sua própria história e a enfeite aqui e ali, mas e quando a história começa a se desfazer como fumaça, perder-se em si mesma, se afogar num mar de esquecimento dentro de nós mesmos, não restando nada além do inevitável confronto entre o passado e o presente?

Em Lapsus, recente trabalho da Cia. 2 de Teatro, vemos um pai que luta contra o Alzheimer tendo que lidar com seus preconceitos e medos ao lado do filho que expulsara de casa anos antes por ser homossexual.

Inspirado no filme "Meu Pai", de Florian Zeller (2020), Mario Zumba assina a dramaturgia e atua ao lado de Marton Maués, que também dirige o que ambos passaram a chamar de leitura espetáculo. O projeto surge como leitura dramática realizada em residências a partir de janeiro de 2023 e ganha apresentação em espaço cênico pela primeira vez na Casa dos Palhaços, em 26 de maio de 2023. A campanha boca a boca se mostra melhor que rastilho de pólvora e logo a Cia. 2 de Teatro vê um projeto pequeno e simples ganhar o gosto do público e tornar-se gigante ao levar para tantas salas, pátios e varandas um drama familiar onde a dor é o combustível da cura a partir de uma ficção comovente que, sim, poderia ser a história de muitas famílias, amigos e amigas que abrem suas portas para a dupla de artistas.

Em quase quarenta minutos, Mario Zumba e Marton Maués dão voz a um pai e um filho em conflito onde as feridas sangram e um é o bálsamo do outro de alguma forma. Texto em mãos, sentados em lados opostos, aos poucos e entre discussões, sorrisos e reclamações; vemos a relação conflituosa de ambos de descortinar ante nossos olhos. O texto de Zumba, rico em detalhes de um passado que grita urgente por um novo olhar, lança feixes de luz, vez ou outra, sobre seu público que embarca, meio sem perceber, em uma viagem vertiginosa, e, como cúmplices de uma confissão, pode se sentir constrangido, impactado, emotivo, frágil, revoltado, saudoso... Num indo e vindo de uma memória em desespero, o Pai, vivido por Zumba, esperneia e grita sua visão de mundo agressiva e detestável para logo em seguida mostrar seu lado mais vulnerável e, talvez por isso mesmo, o lado que desperta a empatia que parece não ter ou tanto lutou para esconder. Enquanto isso, Marton é a voz resiliente e generosa de alguém cuja vida sofrida não se tornou uma ladainha eterna, mas uma ação onde a atitude nobre fala muito, mesmo no silêncio.

Em uma sociedade onde ainda hoje se discute a sexualidade de A ou B, como se isso não fosse algo que diga respeito à mais ninguém senão A ou B, Lapsus levanta um debate ainda mais importante que a militância em torno de uma bandeira.

Assim como a vida fragmentada das personagens, seja porque parte dela lhes foi tomada, cerceada, violentamente sequestrada por tradições que acabam por perpetuar comportamentos machistas e sexistas; o espectador se torna peça chave a partir dos diálogos e, como se olhasse através de um espelho partido, se percebe parte da trama, seja pela lembrança de alguém ou de si mesmo refletida nas falas do texto que, diga-se de passagem, embora trate de temas tão em voga, não cai, um instante sequer, na armadilha da panfletagem barata e dos discursos rasos.

Lapsus é drama pós-dramático, leitura acrescida de elementos que a tornam um espetáculo cuja encenação se cria a partir de sutilezas que se costuram na mente de quem assiste, não como falhas ou fragmentos nebulosos ou mesmo incompletos, mas como um teatro que nasce da escuta e se completa na reflexão que semeia. Uma obra que é, ao mesmo tempo, ensaio e resultado; exercício e descoberta; processo e chegada; a cada nova apresentação algo novo há de vir a ponto de se querer assistir sempre que possível.

Você merece presenciar Lapsus, afinal é do novo que precisamos e ele sempre vem.

06 de junho de 2023

[1] Elcio Lima é ator, diretor e autor de contos e dramaturgias. Graduando de Licenciatura em Teatro e Técnico em Figurino Cênico, ambos pela ETDUFPA. Colabora com o projeto de pesquisa O Clown Nosso de Cada Dia, e integra o projeto de extensão Tribuna do Cretino.

Ficha técnica:

LAPSUS

Elenco:

Mario Zumba e Marton Maués

Produção:

Cia. 2 de Teatro

Direção:

Marton Maués

Dramaturgia:

Mario Zumba

Cartaz e teaser:

Elcio Lima