Mandinga: uma ode à imanente ancestralidade – Por Elcio Lima

10/06/2023

Montagem teatral: Mandinga

Resultado da disciplina "Técnicas Corporais II", Curso de Técnico de Teatro - ETDUFPA

Elcio Lima[1]

Outrora, mito fora considerado uma narrativa heroica, fantástica e permeada de mistério acerca das ações de seres, mortais ou não, como representação de algo, uma maneira de interpretar o que a mente humana não conseguia mensurar ou compreender. Atualmente, fato, o mito é associado ao que é mentira. Falso faz de conta, uma oposição à verdade. Não à toa tornou-se título associado a certo representante de uma confusa (eufemismo) parcela da sociedade que, pasmem, depositam fé em neofascistas que vomitam frases feitas arraigadas em fajuta religiosidade segregadora, sob a pretensa ideia de serem paladinos arautos da Verdade. Qual verdade?

Ao romper com a prática de intitular um tradicional espetáculo como Mitos, nos dias 27 e 28 de maio, uma das mais numerosas turmas dos últimos anos do curso técnico em Teatro, abriu a roda de discussão e bradou em cena, alto e bom som; de corpo e espírito; que seu trabalho não é e jamais será uma mentira ou mera representação, mas uma homenagem à fé que grita e estremece na terra sob nossos pés, nas nascentes dos rios e nas sombras das florestas que nos cercam. Estamos falando de Mandinga, fruto de experimentos do componente curricular Técnicas Corporais II, do curso técnico de teatro da ETDUFPA, sob a coordenação de pesquisa de Ana Flávia de Melo Mendes, também professora responsável pela disciplina em questão.

Sobre a areia, passos, pulsos, vibrações. O som dos tambores ecoam a toda volta. Entalada na goela da selva de pedra, entre edifícios luxuosos, uma casa antiga. Espaço do encontro de almas sensíveis, descobertas e criações; cura e reflexões.

O calor da cidade aquece a pele de cujos poros exalam o desejo de gritar e expressar arte e encanto. Não ouse tomar por mentira o que viste e ouviste; ou mesmo, e tão simplesmente, porque te foge a compreensão. É chegado o tempo de um novo olhar para o que a fé de muitos, por vezes restrita e carregada de atitudes defensivas; corrosivas e distorcidas; relegou, por meio de sua cosmogonia excludente, às margens dos cânones tradicionais.

Mandinga é teatro de arena cuja dramaturgia coletiva costura a interação entre suas personagens (entidades, encantados, guerreiros, curandeiros, feiticeiras, guardiões, dentre outros) de forma tão rica e orgânica que pouco lembra o estilo de cena solo de seu formato anterior.

Pautado na expressão física por meio de movimentos que resvalam em estilos de luta e dança livre, aliadas ao canto e à poesia; as partituras são, sim, movidas por técnicas, mas sobretudo por um instinto urgente de liberdade dos corpos, na animalidade, na fúria e na leveza. O elenco move-se como um só organismo a ponto de a conexão entre si ser notada nos mínimos detalhes. O que vemos é um espetáculo que soa como uma oração coletiva, que não pede, mas agradece e homenageia.

Em tempos onde o racismo ainda é visto em rede nacional e ao redor do mundo; e o preconceito religioso é tido e defendido como direito de opinião, o grito contínuo do nome do espetáculo causa notável revolta e desconforto em alguns moradores do entorno. "Vão procurar o que fazer, filhos da puta!", ouve-se ao longe. Fazer o que exatamente? Procurar a quem ofender no anonimato de minha janela secreta, no alto de um arranha céu? Não me parece o melhor.

Por duas noites, elencos distintos pisam o chão de areia e dividem opiniões até mesmo – e por que não? – dentro do espaço acadêmico. A nudez que incomoda, o som que causa estranheza, o olhar que intimida, a crítica que soa agressiva e mesmo a mudança do nome do espetáculo. Contudo, na miscelânea do sagrado representado no centro da capital, não houve espaço outro senão para uma prodigiosa tentativa de desagravo a uma ancestralidade que, por vezes, comoveu e suspendeu o ar de um público aturdido ante a beleza do caldeirão criativo e rico de representatividade.

É lógico que, se tratando de um curso técnico em Teatro, não poderia deixar de observar os muitos elementos que compõem a cena, especialmente a atuação, o improviso, ponto em que alguns se sobressaem sem, contudo, ofuscar o momento especial que cabia a cada um, seja no coletivo ou em solo. Fato é que o grupo se movia como um só corpo a ponto de parecer haver uma rede telepática. A tão sonhada concentração que toda direção espera de seu elenco.

Outro ponto a ser destacado são os trajes de cena, ou simplesmente figurinos. Carregados de simbolismos e elementos que remetiam às matas, rios e terra por meio de materiais que sutilmente revelavam a personagem em cena. De máscaras compostas por folhas secas ao miriti (deslumbrante!); porcos em papietagem, folhagem natural, pintura corporal e sacadas criativas (como uma rede de dormir para o corpo de uma serpente), cada acessório e adereço estava em harmonia com o todo, proporcionando um show de beleza capaz de surgir na simplicidade de uma tanga de folhas a um elaborado e magnífico traje em cetim vermelho (sensação do segundo dia). Luz e som complementam e dão o ritmo e o clima da encenação envolvente, atribuindo a cada pessoa um papel maior que o de expectador: o de cúmplice.

A identidade visual criada por Xviccy, cuja arte do cartaz e outras imagens de divulgação, trazia a palavra Mandinga acompanhada de folhagens, bem como símbolos criados por integrantes, em traços rústicos sobre fundo de pele, remetiam fortemente ao que está tatuado, gravado na identidade de povos originários, na ancestralidade de uma gente que luta a labuta diária e defende suas crenças e sua história, afinal todo o espetáculo trazia em si uma denúncia, seja ao abuso dos corpos, à destruição da natureza, pelo direito ao alimento, em respeito aos povos indígenas, à religiosidade de matriz africana, à vida do pobre, tudo isso ressoava por meio da arte teatral.

Se o mito foi desvirtuado ou mesmo não comporta mais todo o arcabouço de uma cultura que resiste e se dilata, não aceitando mais viver no confinamento, tal qual as raízes sufocadas por diminuto vaso, então que ele parta para que tais raízes cresçam livres pela terra que nutre a vida amazônida e de todo aquele que, em algum lugar do mundo, ainda sofre perseguição por sua fé e pelo direito de expressar sua arte.

Mandinga é feitiço, arte, fé, teatro político, ética e respeito. É uma ode ao sagrado e à dignidade da pessoa humana; mas também, principalmente, um grito de resistência. Esta montagem, no mínimo, merece uma temporada.

Viva o mandingueiro! Viva a Mandinga!

10 de junho de 2023

[1] ator, diretor e autor de contos e dramaturgias. Graduando de Licenciatura em Teatro e Técnico em Figurino Cênico, ambos pela ETDUFPA. Colabora com o projeto de pesquisa "O Clown Nosso de Cada Dia", e integra o projeto de extensão "Tribuna do Cretino".

Ficha Técnica:

Mandinga

Resultado da disciplina "Técnicas Corporais II", Curso de Técnico de Teatro

Elenco:

Xviccy, BorBlue, Criolinho, Vitória Lúcia, Adria Catarina, Rapha Rodrigues, Malu Guedelha, Karina Diaz, Breno Ushôa, Inaê Nascimento, Ingrid Gomes, Kate Por Deus, Miller Alcântara, Rosa Rio, Arth, Ruthelly Valadares, Eduardo Domingues, Bianca Brabo, Iana Briaca, Danilo Couto, Mailson Siqueira, Raí Moreira, Kesynho Houston, Mateus Barata, Raquel Prudente, Safira Clausberg, Iris Tarcila, Lorena Bianco, Fabrício Lobo, Maria Cecília, Sidiane Nunes, Leonardo Verçosa, Meysse Pessoa, Wagner Ratis, Ryan Pardauil, Iego Morano, Eder Juan, Ju Souza.

Dramaturgia:

Coletiva

Iluminação:

Tarik Coelho

Operação de Som:

Ana Flávia Mendes

Coordenação de Pesquisa:

Ana Flávia Mendes

Realização:

Escola de Teatro e Dança da UFPA

Apoio:

Escola de Teatro e Dança da UFPA