Manual de sobrevivência - Por Karimme Silva

02/04/2019

Montagem Teatral: Guerra ao Horror.

Montagem: Grupo de Teatro Varieté

Karimme Silva[1]

Sobrevivência pós-guerra. Eis o prólogo de todas as situações vividas pela Tenente Aço (Assucena Pereira) e o Recruta Zero (Ruber Sarmento) no espetáculo Guerra ao Horror, realizado pelo Grupo de Teatro Varieté. O espetáculo narra a saga de dois sobreviventes após a queda de seu avião na floresta amazônica. Caracterizados como clowns, os dois atores buscam a narrativa e a ação através da comicidade. Em um ambiente desconhecido, ambos buscam recursos de sobrevivência, aprendidos antes em um quartel. Sim, são palhaços do exército e cenicamente apresentam um contraponto interessante: enquanto a Tenente Aço exerce a ordem, o Recruta Zero, subordinado em patente, busca a execução das tarefas de busca e reconhecimento do espaço, não sem muitas situações cômicas. Enquanto ela é a autoridade, ele é o atrapalhado subalterno. Apresenta-se certo equilíbrio entre os dois atuantes, sem faltas ou excessos, pois ambos se complementam. Cenicamente, existe uma relação de poder, tal qual a exercida em quartéis militares. Os atuantes brincam com a ideia de ordem/desordem, apresentando gestos bem desenhados, típicos do que costuma se perceber na Commedia dell'arte e o jogo mostra-se ágil, mesmo quando ocorrem imprevistos. Zero brinca com o texto e com as nuances dele, manifestando-se um bom improvisador; Aço põe ordem na bagunça, como chefe. Mesmo que através do texto e como personagens, sejam membros do exército, ambos possuem a postura, a caracterização e os atos de clowns, o que divide a interpretação em camadas.

Nisto reside, precisamente a eficácia da comicidade circense: o descompasso entre uma atuação natural e comedida, que está fixada pela dramaturgia, e aquela outra, que tem sua origem na farsa, própria do palhaço. A primeira se fundamenta nas razões do espírito e a outra, naquelas que advém das necessidades do corpo, selado e fadado à submissão. São razões opostas que se confrontam em cena. Na comédia circense não há a primazia da primeira em detrimento da segunda. Ao contrário, a eficácia cômica acontece justamente quando a encenação prioriza a interpretação farsesca e improvisada do palhaço diante das várias situações. (BOLOGNESI, 2009, p.25)

Ainda que dramaticamente haja uma situação de tensão (como sobreviver em um lugar desconhecido tendo poucos recursos?), a dupla mantém o alívio cômico, alcançado pela ação em relação ao texto dado. Talvez, se o corpo não fosse tão ágil em relação ao texto, o resultado não fosse visível. Mas a comicidade chega ao público, junto com a quebra do distanciamento brechtiano. "Na encenação prevalece o jogo aberto com a platéia e ele desperta o exercício livre do ato risível, independentemente do enredo dramático" (ibidem, p. 27). Neste caso, sobreviver é também dar risadas.

Apesar da comicidade, há momentos em que sobreviver é tenso. Mesmo para os palhaços. Zero é mais alegórico nos momentos de tensão. Tenente Aço - que depois descobrimos se chamar Açúcar - traz pra si as memórias infantis. Neste momento, metaforicamente o Aço (tão duro e inquebrável) torna-se Açúcar. E é talvez o único momento onde não se vê a Tenente e nem a palhaça. Acompanhada de um ukelele, a atuante mostra emoção ao cantar a cantiga que aprendeu na infância. A voz não acompanha em volume a força e as ordens de outrora, porém é a hora do palhaço sem máscara. Precisamos de estratégias de sobrevivência, mesmo quando desarmados. Ao final, um chamado: "- Tenente Aço? Recruta Zero? Vocês estão aí?" O rádio quebrado finalmente funciona e se pode ouvir que existe alguém do outro lado. O resgate chegou. Também há um público ali também procurando alívio cômico, também preocupado em guerrear o horror existente, também buscando resgate. Do outro lado da linha, alguém grita: "- A guerra acabou! Nós vencemos!" O áudio do resgate traz boas notícias. Boas? Pra que uma guerra acabe, infelizmente muitos morrem. Infelizmente não existem acordos de paz sem certos 'favores' estabelecidos. Acordos não se fazem sem trocas. Quando se percebe a cultura de certa forma exaltando uma militarização em meio a tantas mortes, percebemos que a guerra não acabou. O horror continua aí e os tenentes/recrutas da vida real seguem armados e atirando. Infelizmente, a arma deles não são os risos dos palhaços. Não é a arte. Sobreviver continua sendo tática de guerrilha, principalmente para os menos favorecidos. Segue o questionamento que finaliza o espetáculo, mas não finaliza de forma alguma o combate a todo horror estabelecido:

Nós vencemos?

02 de abril de 2019.

[1]Psicopedagoga, Atriz formada pelo Curso Técnico em Ator da ETDUFPA, artista-pesquisadora e mestranda do programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES/UFPA).

REFERÊNCIA

BOLOGNESI, Mario Fernando. Amor e Comédia: O Palhaço em Cena. ouvirOUver, n. 5, 13 out. 2009.

FICHA TÉCNICA

Elenco:

Assucena Pereira e Ruber Sarmento

Produção:

Grupo Teatro Varieté

Divulgação:

Grupo Teatro Varieté

Visualidade:

Assucena Pereira, Ruber Sarmento e Tais Sawaki

Arte e Sonoplastia:

Aj Takashi

Iluminação:

Bolyvar Melo

Direção e preparação corporal:

Tais Sawaki