Minha cara Vera, como a história de tua família me afeta – Por Arth
Montagem Teatral: Minha cara Vera,
Montagem: Cia Terceiro Sino
Arth[1]
Antes do sino tocar, um sentimento de solidão me pegou logo no hall de entrada do Teatro Experimental Waldemar Henrique, pois, a pessoa que vos escreve, desatenta, não estava informada sobre o cancelamento da sessão das 17h30. Assim, me formei a pessoa espectadora mais disciplinada da história dos espetáculos da cidade de Belém, chegando com duas horas de antecedência para um espetáculo que começaria apenas às 19h30. Bem, eu não estava só, havia o segurança, algum funcionário, alguém da equipe do espetáculo, que me atendeu muito bem... algumas outras pessoas começaram a chegar, o público estava se formando, e junto delas nos formamos como as pessoas mais empenhadas para assistir a um espetáculo na cidade de Belém, porque choveu muito nessa cidade, no dia 18 de maio de 2025.
Na recepção do público, pelo chão e em cima dos sofás, manchetes de jornais impressos em A4 espalhados, lembrando casos relacionados a um período histórico do nosso país. A essa altura eu sabia onde estava me metendo. Eu começo a sentir um frio na barriga, mas não sou eu quem vai apresentar, o frio é mais pelo desafio de pensar em escrever algo sobre esse espetáculo, sobre a história que ela representa e sobre como afeta, não somente a mim. O que me toma é um suspense de como a realidade vai ser retratada, de como uma obra vai ser adaptada, de como através da interpretação a verdade vai ser cobrada, para não deixar esmorece respostas para injustiças injustificadas. Mas de que espetáculo estou falando?
É o "Minha cara Vera,", as aspas servem para indicar que no título faz parte a virgula, porque é necessário identificar que este é um título vocativo, evoca a personagem que pairou no vencedor do Oscar, o filme Ainda Estou Aqui, lançado em 2024, baseado numa autobiografia de mesmo nome lançado em 2015 por Marcelo Paiva, que também erradia para a essa adaptação teatral feita pela Cia Terceiro Sino. Aqui, marca a tensão de uma grande responsabilidade, depositada na ousadia de Matheus Martins, no lugar de diretor, desafiado pela própria escolha, através do sucesso do filme, que passou a representar uma memória de importância nacional.
Pois bem, os sinos tocaram. O espetáculo é precedido de uma incisão, as vozes em off poderiam somente ter desejado que todos os presentes aproveitassem ao espetáculo, mas se ouve nomes citados: Dilma Rousseff, Augusto Boal, Bergson Gurjão Farias, Rubens Paiva... vítimas sobreviventes da tortura ou assassinadas-desaparecidas, e dentre outros nomes que são memoráveis que de alguma forma resistiram ao regime militar.
Na primeira cena, o indício de que Vera Paiva, filha de Eunice e Rubens Paiva, teria uma participação mais presente na história. Eunice, interpretada por Bianca Brabo, e Vera, por Yasmin Ramos, marcam o início do espetáculo sentadas sobre cadeiras uma de costa para a outra, onde se institui a relação mãe e filha, e os pressupostos do vocativo presente nas correspondências das cartas que as duas iriam trocar a partir do momento que Vera vai morar em Londres, na Inglaterra. Lá, ela vive a vida e, na trama, tentam esconder de Vera o que está acontecendo no Brasil e, consequentemente, o que estava acontecendo com a sua família, suas cenas são de angústia por não receber mais cartas de cá durante esse período. Suas aparições são essas, enquanto a família... O que aconteceu com a sua família? Ao longo do espetáculo, a resposta vai aparecendo. Mas quem assistiu viu, aqui nesta crítica, eu vou oscilar os olhares, não vou me ater somente a descrição do que vi, mas também como sentir os aspectos dramáticos tanto como técnicos também.
Pois bem, começo com a consideração de que as diversas cenas expressam um intenso estudo de encenação, também que as escolhas foram bem-feitas, o elenco demonstra domínio no jogo cênico utilizando todos os espaços prováveis, todos dominam a proposta de palco. Tento descrever o espaço cênico da seguinte forma, na perspectiva da pessoa espectadora: três plataformas montadas com praticáveis ao fundo, uma ao centro, a mais elevada, que configura a sala de estar da família, outras duas uma a cada lado, como um degrau abaixo, a esquerda o quarto de Eunice e Rubens Paiva, a direita o quarto das crianças, no proscênio ainda se fazia cena e muito bem explorado.
Observa-se que houve a recursa da supressão de personagens secundários, como consequência, pelo número de atuantes, a necessidade de que alguns "coringassem" foi inevitável. Mas a forma como esses personagens atravessavam a cena foi algo curioso, porque elas apenas apareciam, faziam a sua ação e saiam, mas isso significa que não incomodou, porque foi perceptível o pouco que se mudava para descaracterizar uma personagem da outra, no entanto, a marca dessas personagens como transeuntes na cena foi uma alternativa que "reduziu os danos". Enfatizo, aqui, como foi interessante ver o trabalho de Rapha Rodrigues indo e voltando com outros personagens. No espetáculo, ele foi Marcelo Rubens Paiva, mas uma vez ou outra aparecia como militar todo de preto, boné e bigode e destoava bastante da característica do personagem principal dele, que era infantil e vestia roupa com tons mais claros.
Outra observação pertinente foi em relação a projeção das vozes, tive certa dificuldade de compreensão porque algumas não estavam preenchendo o teatro. O "waldeco" é grande e isso é necessário. Apesar dessa impressão ter sido inicial, porque na medida que as cenas exigiam mais energia e um empenho maior na representação de uma forte emoção o corpo/voz dos atuantes parecia aquecer e começar a expandir. Mas Adrynny Oliveira interpretando Eliana Paiva, filha do famoso casal, demonstrou, como sempre, sua ótima capacidade de projeção, enfatizo o trabalho dela porque consegui escutá-la em cada palavra que saia da boca do início ao fim. E eu precisava, ouvir, pois eu acabei escolhendo a última arquibancada para sentar.
As cenas que me cativaram de alguma forma foram: a da despedida de Vera, o palco muito bem trabalhado com praticáveis formando três plataformas, com o jogo de luz trocando e apagando dando destaque as coreografias individuais e coletivas das personagens cada uma no seu espaço/cômodo dançando, revela o experimento cênico que reverbera no jogo e na atenção da encenação como falei, mas, sobretudo, da iluminação incrível que oferecia um alento dinâmico aos olhos. A cena da morte do Rubens Paiva, interpretado por Rubens Leal, foi feita para imaginarmos a probabilidade de como aconteceu o fatídico ocorrido, foi um momento de tensão, com direito a afogamento, que poderia ser mais aproveitado, mas o drama paira no ar, com Rubens se esgueirando da morte pelo chão no caminho em meio da plateia, faz a gente criar um instinto de sobrevivência por ele, a gente queria que ele sobrevivesse, mas as garras dos ditadores sumiram com o seu paradeiro.
Houve outras cenas que me provocaram tanto pelo aspecto cênico quanto pelo que ela me remetia emotivamente: A cena que Eunice e Eliana são levadas pelos militares e a sutileza de representar de que Eliana sofreu violência sexual além do terrorismo psicológico que junto de sua mãe sofreram – não dizendo que há sutileza na violência, mas na forma como isso foi responsavelmente trazido para cena – A morte do pimpão embalada pela música "Pra não dizer que não falei das flores" de Geraldo Vandré, conseguiu me tirar uma lagrima do olho. Também, o momento que Eunice é abraçada por Rubens enquanto exclamava: "Eu preciso saber se você ainda está aqui!" completamente assolada pela falta de respostas. O espetáculo se encerra com o momento da icônica fotografia "Nós vamos sorrir!" com a família toda sorrindo e confrontando o que a mídia e ditadura esperavam.
Por fim, "o Minha Cara Vera," foi audacioso e genuíno no que se propôs, de nos fazer imaginar outras formas de se ler uma boa obra e a realidade de uma época que a gente tem a consciência de que não queremos de volta. Confesso que foi tendencioso, eu não li o livro, mas ainda estou aqui afetada pelo filme, pelo lugar que me afeta, na consciência histórica do que se viveu nesse país: a restrição da liberdade, a ausência de direitos humanos, a tortura, o estupro, o assassinato e os desaparecimentos. A gente toma cuidado para não desaparecer essa memória em honra a todos que se foram pela violência que ainda se mantem impune, essa é a sombra, isso é o que me afeta, porque eles passam ilesos, mas nós não. Foi aí que o espetáculo me pegou, com o cumprimento social de lançar mão, mais uma vez, de todas as vezes que for preciso dizer que: "Ditadura nunca mais!"
25 de maio de 2025.
[1] Ator/Atriz-criadora de dramaturgias pretas e amazônidas e poeta da poesia falada: slam poesia. É arte-educadora no Instituto Bienal das Amazônias (BDAS). Formada em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e no curso Técnico em Teatro, pela Escola de Teatro e Dança da UFPA (ETDUFPA). Cursa Especialização em Arte, pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e é graduanda em Licenciatura em Teatro, na UFPA; participante do minicurso "Crítica teatral e semiótica: estudos introdutórios" realizado pelo projeto TRIBUNA DO CRETINO.
FICHA TÉCNICA
MINHA CARA VERA,
Elenco:
Adrynny Oliveira, Ally, Bianca Brabo, Kálita Farias, Letícia Shibata, Luis Carlos, Mika Saulo, Rapha Rodrigues, Rubens Leal e Yasmin Ramos
Direção-geral, Teatral e de arte:
Matheus Martins
Preparação de Elenco, direção de Movimento e de Cena:
Luis Carlos Monteiro
Direção Vocal:
Yago Castro
Direção de Produção e direção de cenografia:
Diana Albuquerque
Assistência de Produção e Direção de Movimento:
Caila Manza
Iluminação:
Isabella Bravin
Realização:
Cia Terceiro Sino