Morte ou vida? – Por Edson Fernando

03/11/2024

I Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica.

Montagem Teatral: "Diante da Morte"

Edson Fernando[1]

Existe uma crença popular, criada e reforçada pelo cinema, de que diante da morte conseguimos ver toda a nossa vida passar como um filme a nossa frente. Essa me parece ser a premissa da montagem teatral "Diante da morte", quarto trabalho apresentado na I Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica. A montagemé inspirada na peça "Toda minha Vida por Ti!", de Edyr Augusto Proença, e conta com a direção de Bruno Euller.

Considerando essa premissa que saltou aos meus olhos, me pergunto: Qual morte se encontra no centro de gravitação da encenação? Quem se vê diante da morte? Qual "filme" está sendo posto em retrospectiva para reflexão derradeira? A questão da morte se coloca em primeira ou em terceira pessoa? Em outras palavras, é o dilema "vivo ou morro" ou "o que faço com o morto"?

A proposta de encenação de Bruno Euller, no meu entendimento, parece brincar com esses caminhos e desviar minha atenção – consciente ou inconscientemente – para a última perspectiva, isto é, opta por colocar a intriga centralizada na disputa entre as duas irmãs solteironas mais novas, Rosa e Gigi, competindo pelo amor de Amadinho. Seguindo esta perspectiva, meu olhar acompanha o desenrolar da trama que me parece se delinear, ao longo de quase toda a montagem, sem muito compromisso com reflexões existenciais ou temas correlatos que o valham.

Considero que essa opção da encenação se mostra acertada, pelo menos para o panorama geral no qual a montagem se assenta, isto é, uma comédia de costumes com as típicas personas construídas, satiricamente, como caricaturas de comportamentos e/ou normas sociais que se pretende ridicularizar para extrair daí reflexões a partir do cômico das situações. Desse modo, tudo se passa na casa das três personagens principais – Irene, a irmã mais velha, Rosa e Gigi – em convívio conflituoso retratado por meios de uma série de gags que vão desde a paixão por times de futebol, até o tratamento desleixado dispensado ao idoso, neste caso, Irene.

Destaco duas considerações importantes sobre este aspecto. Em primeiro lugar, embora, a opção pela comédia de costumes "abone" o uso de personas caricaturais, observo que as situações cômicas retratadas ficam, quase sempre, na superfície da caricatura, isto é, ficam na primeira camada, na camada do exagero dos trejeitos, na camada dos jargões cotidianos e/ou dos maneirismos gestuais e fisionômicos. Assim, sinto dificuldade em ultrapassar esta camada superficial da caricatura e penetrar nas camadas satíricas do texto e das situações inusitadas. Fico com a impressão de um desejo exacerbado de envolver a plateia, a todo instante, recorrendo aos mais diversos artifícios, como a paixão pelo Clube do Remo, por exemplo. Neste caso, uma esquete inteira é dedicada a esse tema, com direito a distribuição de bandeirolas para o público e canto do hino do clube. A paixão de Gigi pelo time de futebol, no entanto, que poderia ser um traço cômico a ser explorado durante toda a montagem, é pouco ou quase esquecido no decorrer dos acontecimentos e não é nem um pouco determinante para os rumos da intriga. Isso faz com que esse elemento, portanto, fique quase gratuito, no meu entender, pois ele não ultrapassa a primeira camada da caricatura, isto é, do torcedor fanático por seu time de futebol.

Para refletir sobre esta primeira problematização e para ser justo com a montagem é preciso trazer novamente as questões primordiais que a I MEF tem me possibilitado pensar: Como se opera a escolha da montagem? Como se dá a escolha e formação do elenco e da equipe técnica? Quanto tempo dispõem para ensaios e pesquisa? Qual a infraestrutura para ensaios e material para encenação? Quanto tempo para ensaiar e fazer experimentações de encenação no Teatro Universitário Cláudio Barradas?

Não posso deixar de manifestar o meu constrangimento quando ouço o diretor da montagem afirmar, inocentemente, ao final da apresentação, que a cenografia e visualidade da encenação é produzida "com material de muitas casas". Isso ao mesmo tempo demonstra como o teatro é feito pelo senso do coletivo e pela paixão dos artistas, mas também como a UFPA precisa dar atenção redobrada para o setor das Artes, oferecendo infraestrutura e manutenção dos seus espaços, como o Teatro Universitário Cláudio Barradas e a própria ETDUFPA, mas também com recursos financeiros para custear as especificidades das linguagens artísticas. Considerando a presença do atual reitor, do ex-reitor e do pró-reitor de extensão, professor Gilmar Pereira, professor Emmanuel Tourinho e Nelson José de Souza Júnior, respectivamente, na apresentação do dia 02 de novembro de 2024, tenho esperanças de que se sensibilizem, lutem e garantam melhores condições para as futuras montagens do curso de Produção Cênica e das inúmeras ações e produções dos outros cursos técnicos e da licenciatura em teatro, todas elas abrigadas na Escola de Teatro e Dança – ETDUFPA.

Retomando o raciocínio, a segunda consideração importante que gostaria de destacar pode ser vista como um desdobramento da primeira. Explico: considerando que a encenação coloca sua ênfase na disputa entre Rosa e Gigi pelo amor de Amadinho, e considerando ainda que a atuação entrega um trabalho que poderia ter sido aprofundado para outras camadas do texto e das situações mostradas, o papel da Irene e todo o potencial para discutir as questões existências, direta ou indiretamente ligadas a estar diante da morte, ficam obliteradas quase completamente até a cena final, quando então, num desfecho inaudito, me é revelado que todos os acontecimentos se passam no plano da memória de Irene – pelo menos essa foi a minha leitura.

Por essa perspectiva, Irene ganha outros contornos muito mais interessantes e que me possibilitam pensar na razão ou não de viver naquela condição, ou seja, na completa solidão, em companhia apenas dos fantasmas de suas memórias. Contudo, sinto falta dessa camada densa do papel sendo construído gradativamente por toda a montagem. Ao contrário disso, o que percebo é a montagem se distanciando dessas questões e camadas mais complexas e, por vezes, deixando a Irene abandonada a própria sorte num cantinho da cena, quase invisível, dado que todo seu entorno é povoado pelas caricaturas e maneirismos da demais personagens. Dando o benefício da dúvida, esse aspecto não deixa de ser curioso, pois me possibilita pensar que isso se trate de uma estratégia da própria encenação abordando, de modo muito sutil, a condição de invisibilidade dos idosos em nossa sociedade. Desse modo, valeria a pena viver sob as condições desumanas e degradantes que Irene vive? Gostaria de acreditar realmente nisso como estratégia da encenação, mas, tecnicamente, sou levado a perceber a fragilidade das situações construídas e, portanto, a virada de perspectiva somente no final me chegou apenas como um melodrama.

Dois outros aspectos que julgo merecerem destaque giram em torno da música executada ao vivo presente na montagem. O primeiro deles refere-se à disposição espacial proposta para área de atuação. A equipe de musicistas fica posicionada um pouco a frente do centro da área de atuação, do lado esquerdo do público, quase ao lado do cenário que retrata a sala da casa. Ao todo, são quatro musicistas que ocupam essa faixa, com destaque para o piano que é tocado em cena. Como as dimensões do teatro não são muito favoráveis para agrupar muitas coisas ao mesmo tempo, o cenário da sala casa precisa dividir espaço com a área dos musicistas e ainda deixa o palco penso para o lado esquerdo, exatamente o mesmo lado que Irene fica durante toda a apresentação.

Ainda neste primeiro aspecto, outro dado é a visualidade dos musicistas: sinto a unidade visual entre eles ser quebrada com a caracterização de Amoras Signoreth que se posiciona a frente do piano e divide os vocais com Sofia Alvarez, esta última posicionada para tocar o piano. O figurino de Amoras me parece não dialogar com o visual mais casual e/ou formal dos outros musicistas em cena, e menos ainda com as demais personagens da montagem. Desse modo, acredito que esse quebra-cabeça da disposição espacial da área de atuação mereça e possa ser revista pensando em como agregar os musicistas a proposta de encenação. Então, se de fato tudo se passa no plano das memórias de Irene, onde cabe colocar a equipe musical?

A qualidade musical da montagem é o outro aspecto que merece ser destacado. A participação dos quatro musicistas executando as canções, sem dúvida, engrandece a qualidade sonora da encenação. Mas também temos ambientação e intervenção de música mecânica. Não acredito haver disparidade nisso, mas fiquei com gostinho de quero mais da música ao vivo construindo sentido e atmosfera dramática, principalmente no desfecho da última cena. No mais, é de se parabenizar que Bruno tenha conseguido reunir equipe tão competente para trabalhar ao vivo ao lado do elenco.

Evoé

03 de outubro de 2024

[1] Ator e Diretor Teatral; Coordenador do Projeto Tribuna do Cretino.

Ficha Técnica

"Diante da Morte"

Elenco:

Amora Maria

Brenda Gonçalves

Karlos Eduardo

Marcelo Rudolph

Pedro Canavarro

Rafael Lima

Ste Ribeiro

Musicistas:

Amoras Signoreth

Alysson Oliveira

Cadu Xavez

Sofia Alvazes

Direção de Arte:

Ada Cllima

Direção Musical:

Cadu Xavez e Sofia Alvazes

Cenografia:

Jully Campos

Concepção de Luz:

João Felipe Marçal

Operação de Luz:

Arthur Melo

Figurino:

Acervo da ETDUFPA

(coordenado por Ézia Neves)

Com Curadoria de Ada Cllima

Maquiagem Cênica:

Ada Cllima

Kaylany Silva

Regiane Castro

Fotografia e Filmagem do Espetáculo:

Kaylany Silva e Regiane Castro

Fotografia do Cartaz:

Ada Cllima

Operação de Sonoplastia:

Gustavo Sanato

Assistente de Produção:

Mia Marliveira e Yuriel Soul-za

Social Media Designer:

Bruno Euller

Apoio:

Guajarina Pensão Cultural

Haus of Amoras

Direção:

Bruno Euller