Muralhas Insensíveis: Problemas de Estereótipos

11/09/2023

Montagem Teatral: Muralhas Invisíveis

Montagem: Grupo de Teatro Palha 

Arth[1]

O espetáculo Muralhas Invisíveis é uma adaptação de uma peça escrita por Edyr Augusto produzida pelo Grupo de Teatro Palha. O formato aparente é de um musical. O enredo é, basicamente, regado pela perspectiva do dramaturgo que olha tudo de sua sacada. Do alto, enxerga o cotidiano de prostitutas, dependentes químicos, pedintes e, dentre eles, artistas.

Como o espetáculo teve duas semanas de cartaz e mudanças constantes de personagens entre os atores e atrizes do elenco, é importante ressaltar que, para fins de um bom registro, a sessão inspiradora desta crítica, foi a que ocorreu na sexta-feira, dia 08 de setembro, às 20 horas, no Teatro Experimental Waldemar Henrique.

Antes de iniciar a crítica, acredito que os pontos aqui identificados são de fácil entendimento às pessoas que possuem certos tipos de letramento, não somente pessoas de certos segmentos dão conta de notar discursos retrógrados, mas a escolha de percebê-los vai do bom senso individual de quem acredita num mundo onde tudo se questiona, inclusive o olhar ultrapassado que não cabe mais. Sem mais delongas...

Muralhas capacitistas

É de entendimento, dadas algumas críticas do próprio público que foram assistir ao espetáculo – ou não – que retiraram alguma cena que possuía um capacitismo direto, entretanto, como não assisti a tal cena, me aterei a discorrer somente sobre a permanência da mesma narrativa, a partir daquilo que, por mim, foi assistido.

Mas, primeiramente, o que é capacitismo? Segundo o Ministério da Cidadania (2021): "É o preconceito e a discriminação que a pessoa com deficiência vive na sociedade por ter sua existência relacionada à incapacidade e inferioridade. É COMO REDUZIR A PESSOA À SUA DEFICIÊNCIA." (BRASIL, 2021)

Sendo assim, não é de um todo difícil de perceber esse olhar sobre pessoas com deficiência a luz do que aconteceu no palco do espetáculo: um ator entra em cena para introduzir as primeiras camadas, ele diz que seu personagem não é uma pessoa com deficiência, é um "ator", que aponta constantemente para as muletas que entrou segurando às chamando de William – a pessoa por quem o "ator" estava falando – estranhamente, William, também era chamado de "Blake", uma Pessoa Com Deficiência (PCD), estava personificada nas muletas.

Chegamos à redução de uma pessoa com deficiência a sua deficiência. Supostamente, uma tentativa mal elaborada de um simbolismo teatral, uma alegoria de mal gosto, que não deixa de passar uma mensagem preconceituosa sobre a existência de alguém. Na mesma medida que o ator imitava ter atrofia muscular na perna e deficiência visual, foi gerando o questionamento do porquê não chamaram atores e atrizes com deficiência para fazer determinados papeis e poupar o público PCD de se envergonhar ao assistir tais atrocidades?

Muralhas de outros estereótipos

É incrível como homens negros ainda são colocados em certos tipos de papéis, assim, também, como travestis. Sempre é o mais do mesmo: o negro é ladrão, é o estuprador, a travesti é a prostituta, o homem branco sempre no alto de sua sacada.

Um ponto emblemático da vida do próprio dramaturgo? Talvez. Mas a verdade é que o uso dos estereótipos é feito da pior forma possível nesse espetáculo e de forma desmedida, não teria problema trazer essas representações, já que, de fato, elas estão nesses lugares, mas faltou ao dramaturgo uma sensibilidade maior para compreender através da história da nossa sociedade, não, somente, que o capitalismo tem culpa mas o racismo e o sexismo também têm e de diversas formas esses fenômenos estão entrelaçados.

E é difícil de compreender por que a culpa foi jogada para a plateia, que foram duramente criticadas pela personificação do dramaturgo encenado, que só desceu do alto para culpar o povo, numa tentativa de ser o "salvador" dos indefesos. Contraditório demais, afinal, tem um tempinho que o teatro se popularizou, ainda falta muito para chegar em todos os lugares e ser acessível a todos, é verdade, mas eu não acredito que o pobre que foi assistir tenha alguma culpa, que o preto que foi assistir tenha alguma culpa, e sim, havia pessoa com deficiência tentando assistir ao espetáculo, também não acredito que ela tenha culpa.

Por isso, acho que faltou definir melhor o perfil do sujeito que detém a culpa do sistema que a gente vive promover tanta desigualdade, já que para traçar o perfil das pessoas em situação de rua foi tão fácil, qual a dificuldade de apontar quem são os poderosos, os ricos, os que se beneficiam da pobreza? E eu vou contar que, geralmente, o perfil do sujeito é aquele que na maior parte da história brasileira, que muitos reduzem ao que veem numa Av. Riachuelo, está de pé olhando tudo de cima de uma sacada.

Calma, não acaba por aí, teve uma coisa que denunciou o jogo propositivo de estereótipos racistas de direção ou da equipe de figurino do espetáculo: uma atriz branca me assustou, não pude deixar de perceber que estava usando uma peruca de cabelo crespo. Nem de longe, isso, no segundo decênio do século XXI, é algo inteligente de se fazer. Por que utilizar de uma característica do povo negro para reforçar esse imaginário ruim sobre essa estética? Já não bastava colocar os atores e atrizes negros e negras onde eles estavam, precisava fantasiar uma pessoa branca com características de uma pessoa negra, para quê? Fica aí o questionamento...

Muralhas técnicas

No mais, atores e atrizes entregando um corpo cênico interessante, talvez isso se deva ao fato de uma boa parte do elenco desenvolver trabalhos com dança. Projeção de voz estava bem, salvo os barulhos que os atores faziam enquanto o enfoque da cena não era neles, talvez isso se deva a alguma mudança de cenografia que eram os andaimes, cujo atores e atrizes tinham que se virar para se locomover, mas as falas provocativas para o público em momentos que não eram os seus turnos de cena, impedia que algumas partes da plateia, dependendo de onde estivesse, ouvisse quem estava de fato no enfoque, pareciam que estavam competindo pela audiência, mas dava pra todo mundo brilhar na medida que todas as problemáticas apontadas eram amenizadas com algumas coisas engraçadas que surgiam pra quebrar a tensão de uma tentativa de abordagem séria sobre o tema, mas meio que arriscada e incompatível com um formato de um musical pretendido – o que foi meio jocoso.

"Travestriste" foi a personagem com mais primor, com gosto de Moulin Rouge, deu vontade de querer ver mais. Raimundona poderia ter falas melhores, além de 9 de cada 10 palavras que ela soltava serem palavrões.

A cenografia muito bem estruturada, cativante. A visualidade dos figurinos de estampa de jornal estava muito bonita, só que foi meio constrangedor o momento que elas foram utilizadas. A musicalidade foi interessante.

Quebrando muralhas invisíveis

É preciso reforçar que nem todo mundo precisa, de fato, estar a par de todas as pautas sociais, mas parece que o mundo invertido se faz assim: quem teve acesso é quem menos procura saber, e quem não teve acesso são os que mais sabem, uma loucura, não é? Ou seria uma grande vergonha para quem teve acesso?

Essa crítica, além de ser um alerta sobre o tema que mais circulou enquanto o espetáculo esteve em cartaz, que foi o capacitismo, é um bom motivador para refletirmos sobre três perguntas essenciais para as próximas cenas do teatro belenense paraense: Quem as fazem? Com quem elas são feitas? E por que elas são feitas?

Ao refletirmos, lembremos que nem todas as pautas precisam ser pautadas, principalmente, se a gente não está em certos lugares de fala, mas nada impede que pesquisas sejam feitas, e se houver pesquisa, que busquemos contatar as pessoas para ter certeza das nossas fontes, e que a pesquisa seja para além de usar de uma população de vulnerabilidade para exaltação da própria imagem, enquanto faz uso das imagens de controle sob ela. Refletiremos? Fiquemos atentos.

11 de setembro de 2023

Referências

BRASIL. Ministério da Cidadania. Precisamos falar sobre capacitismo. Brasília, 2021.

[1] Artivista. Formado em Letras - Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Discente do curso Técnico em Teatro e da Graduação em Licenciatura em Teatro, UFPA. Bolsista no projeto de pesquisa "Entre a máscara, a quimera e a ciborgue: inventar corpos insurgentes para desmontar políticas de morte".

FICHA TÉCNICA
ELENCO

Leandro Astral, Yuri Ganha, Lucas Bereco, Kesynho Houston, Xviccy, Claudio Raposo, Marina Di Gusmão, Isabella Valentina, Lorena Bianco, Krystara Monteiro, David Silva

DRAMATURGIA

Edyr Augusto

DIREÇÃO E ENCENAÇÃO

Paulo Santana

ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO
Kesynho Houston

ESTAGIÁRIA DE DIREÇÃO
Victoria Rodrigues

DIREÇÃO MUSICAL
Ismael Mello, Pelé do Manifesto

COMPOSIÇÃO MUSICAL
Pelé do Manifesto, Ismael Mello

DIREÇÃO COREOGRÁFICA:
Kekeu, Luana Lemos

PREPARAÇÃO CORPORAL
Luana Lemos, Kekeu

CENOGRAFIA:
Charles Serruya

FIGURINO
Claudia Palheta, Lucas Belo

COSTURA
Marcia Gonçalves

ADERECISTA
Marcia Almeida

DESENHO DE LUZ
Malu Rabelo

SONOPLASTIA
Suely Brito

PAISAGISMO SONORO
Ismael Mello

ASSESSORIA DE IMPRENSA E REDES SOCIAIS
Leandro Oliveira

DESIGN GRAFICO E DIREÇÃO DE ARTE
Claudia Palheta e Victoria Rodrigues

PRODUÇÃO DE VIDEO
Victoria Rodrigues

FOTOGRAFIA DO PROGRAMA
Xviccy, Kesynho Houston

MONTAGEM DE ARTE DO PROGRAMA
Victoria Rodrigues

ASSISTENTE DE PRODUÇÃO
Suely Brito

PRODUÇÃO
Tania Santana, Zê Charone

REALIZAÇÃO
Grupo de Teatro Palha