Muralhas invisíveis: os invisíveis continuaram invisíveis – Por Diogo Lira
Montagem Teatral: Muralhas Invisíveis
Montagem:
Grupo de Teatro Palha
Diogo Lira[1]
Não quero fazer um texto acadêmico, com referências e citações, talvez haja um certo juízo de valor, mas creio que, enquanto espectador, não teria como me separar disso. Sigamos.
O que é lugar/protagonismo de fala? Muito se fala a respeito desse tema, mas será que ele está sendo tratado como realmente se deve? Será que escolher pessoas racializadas e carregá-las com estereótipos criados por um sistema de controle que nos oprime é, de fato, o jeito mais proveitoso de se mostrar essas (r)existências?
Nós que vivemos esse lugar e, sobretudo, vivemos a arte sabemos que não.
Licença poética virou doce na boca dessas crianças, e elas se lambuzam. Sem nem ao menos saber com o que estão se lambuzando.
Entenda: representar/interpretar uma personagem com características marcantes, trejeitos específicos, personalidade única, caráter/índole muito particular é uma coisa; representar/interpretar uma personagem que caracteriza uma existência muito específica é outra coisa bem diferente.
Trabalho de ator, nesse contexto de construção de personagem, não é se reunir com um punhado de colegas numa sala e divagar sobre o que é ser uma pessoa com deficiência. Mas quem sou eu para julgar o processo "criativo" alheio? Pois eu digo: eu sou alguém que respeita as existências.
Mas eu não sou hipócrita, eu aceitaria um trabalho assim afinal eu também preciso me manter da minha arte. Contudo, e aqui eu falo da minha índole, eu buscaria saber o motivo pelo qual não haveria um artista que de fato é uma pessoa com deficiência fazendo aquela personagem. A depender da resposta desse primeiro questionamento, eu seguiria. Em seguida buscaria me aproximar dessas pessoas que eu pretendo representar, conhecer suas vivências, suas lidas diárias para que, minimamente, compreender como é estar no mundo daquela forma, como é lidar com o mundo e as pessoas ao redor. Isso é trabalho de ator.
O texto
Bem, com relação a isso não há muito o que falar, setenta porcento é palavrão. Contudo alguns pontos muito específicos precisam ser discutidos aqui.
Uma coisa muito curiosa acontece nesse espetáculo no que diz respeito ao texto. Existem dois núcleos muito distintos. O primeiro é formado por pessoas do povo e o segundo é formado por apenas um homem branco da "elite". O "espetáculo" já começa errado mostrando a visão de um homem branco da "elite" sobre as pessoas que vivem em situação de rua. O homem branco falando como é a vida do povo, majoritariamente negro. E o texto dessa personagem é elegante, às vezes rebuscado. Mas o que mais chama a atenção, e isso passa despercebido pela plateia, é a agressividade dessa personagem nas várias vezes em que delega culpa a sociedade (entenda sociedade como "povão") pela situação em que vivem. Ele aponta o dedo na cara da plateia e diz "a culpa é sua por não fazer nada". Me soa um tanto quanto autoritarista, fascista ou coisa do tipo, me soa algo como "a culpa pela escravidão é do próprio escravizado". Mas eu nem posso culpar tanto a plateia por não perceber essas nuances do texto pois todo esse sistema condiciona o povo à isso. Porém, diferentemente do que o tema do espetáculo se propõe a tratar (pessoas invisíveis da sociedade), ali na plateia essas pessoas não se faziam presente.
Outro ponto importante a se tratar aqui são os discursos da personagem "homem branco na sacada". Essa personagem tem três momentos muito bem definidos no espetáculo:
1 – Da sua sacada ele observa o povo na rua, de lá, ele narra a sua visão romantizada da vida dessas pessoas.
2 – Quando ele desce para a cena, as personagens da rua não estão por perto. Mas ele desce com um único intuito que é de falar das mazelas daquela gente. Mas não penas isso, ao se direcionar para a plateia seu discurso muda e ele atribui a plateia, que nesse momento representaria o povo, toda a culpa dos infortúnios da população, ele aponta o dedo e questiona "o que vocês fazem para mudar isso?".
3 - ele desce com um livro na mão (não à toa é livro do autor) e nesse momento ele está em cena com uma outra personagem feminina que, ao que tudo indica, é uma garota de programa. Além de totalmente desnecessária para o espetáculo pois ela serve apenas para fazer uma propaganda triste do livro publicado (uma automassagem no ego), a cena também mostra uma relação de objetificação do corpo daquela "mulher da vida", insinuando uma relação carnal entre o homem branco e a "puta".
Corpos normativos
Existe esse fenômeno da cultura brasileira que é se interessar pela vida do outro. Mais especificamente pela esfera doméstica. Mais especificamente pela esfera doméstica da vida do outro quando é espetacularizada numa tela. (Rita Von Hunty)
Nada novo sob o sol. Homens negros como bandidos, viciados e estupradores; mulheres como putas ou fanáticas religiosas; homem branco como intelectual e detentor da verdade.
Eu gostaria de fazer duas observações. Primeira: a de que escritores e artistas de alguma estrutura fornecem frequentemente modelos que depois são imitados em mais crua forma e execução mais barata pela indústria de arte que visa o consumo em massa; é, pois, como se a haute Couture do anti-humanismo influenciasse, assim, tal indústria de arte para as massas. Segunda: a de que uma arte que porventura ignore as necessidades das massas e se sinta glorificada de ser entendida apenas por uns poucos apreciadores selecionados é uma arte que abre caminho para o rebutalho produzido pela indústria do entretenimento. À proporção que os artistas e escritores se afastam mais da sociedade, mais porcaria é impingida ao público. O "novo sentido de brutalidade" tido por admirável qualidade da arte moderna segundo alguns estetas possui, de fato, comercialmente, livre curso no mundo burguês da decadência. (Ernst Fischer, A necessidade da arte, 1983, p.-117-18)
Seguindo esse pensamento de Fischer, podemos fazer muitos paralelos com a nossa cena atual, sobretudo no espetáculo aqui referido. Temos os escritores que se acham no direito de escrever a respeito da vida alheia que ele apenas observa de sua varanda, não à toa é um homem branco criando tendências sobre o fazer artístico. É muito fácil falar o que se acha ser a realidade da vida alheia.
Podemos questionar também qual seria a necessidade daquele público ali presente, estariam ali apenas pelo entretenimento? E se for esse o caso, podemos voltar a fala da Rita, no começo desse trecho sobre a "espetacularização da vida do outro". Mas vejo isso como um grande problema pois a plateia ri e se diverte com as mazelas de uma população que não faz a mínima ideia de que está sendo representada naquele local, por pessoas que sairão dali e seguirão para suas casas sem nem ao menos notar os tais "invisíveis" pelos seus caminhos. De fato, é uma brutalidade expor vidas e existências dessa forma, com o simples intuito entreter e se promover com a imagem do outro.
Também temos pessoas com deficiência. Sim, temos isso também. Contudo, sendo interpretadas por pessoas sem deficiência.
Um ator entra com muletas nas mãos e as joga no chão na frente da plateia e faz um discurso vitimista sobre ter sido impedido de fazer seu trabalho de ator. Oras, penso eu que se o intuito era falar/barra dar visibilidade à esses corpos, qual o motivo de terem abandonado a cena original onde os atores usariam muletas e cadeira de rodas? Se existe um certo medo de ser "cancelado" é porque algo de real existia no questionamento.
Eu poderia aqui fazer uma fala quilométrica a respeito de imagens de controle. Falar do quanto a indústria da cultura e o capitalismo alienam e condicionam as pessoas a verem e ouvirem apenas aquilo que a estrutura de poder quer. Mas deixo isso a cargo dos leitores. Um exercício de reflexão para todes.
Acessibilidade
O espetáculo contou com acessibilidade na segunda sessão do penúltimo dia, LIBRAS e audiodescrição. Tudo certo. Mas eu me pergunto: será que foi acessível mesmo?
Para mim que não sou pessoa com deficiência já se torna complicado voltar para casa num sábado as 22 horas, imagino como seria para uma pessoa com deficiência.
Era visível que a tal acessibilidade era improvisada, a Intérprete de LIBRAS teve que ficar quase no meio da cena pois não havia um espaço reservado para ela. O audiodescritor estava fazendo seu trabalho sentado ao lado de uma pessoa com deficiência visual cegueira, fazendo a descrição ao pé do ouvido. Um detalhe: ele tinha um pedaço de fita crepe cortado grosseiramente e colado na sua camisa sobre o peito no lado esquerdo, sobre o pedaço de fita estava escrito grosseiramente com algum tipo de caneta marcador o símbolo da audiodescrição. Me pergunto como seria se houvesse três pessoas cegas na plateia.
Pessoas com deficiência foram discriminadas por sua deficiência não ser aparente. Pessoas com deficiência foram destratadas pela direção e produção do espetáculo ao questionarem a representação PCD no espetáculo.
Em suma, o espetáculo foi triste, chulo, ofensivo, mal escrito, um verdadeiro desserviço.
17 de setembro de 2023
Referências
Fischer, Ernst. A necessidade da arte. 9ª edição, 1983.
https://youtu.be/OZO3XNIakN0?si=kDkXZCZkaRo2IJfa
[1] Artista Visual e da Cena, Arte educador e pesquisador em artes. Atualmente cursando o Técnico em Teatro na ETDUFPA.
FICHA TÉCNICA
ELENCO
Leandro Astral, Yuri Ganha, Lucas Bereco, Kesynho Houston, Xviccy, Claudio
Raposo, Marina Di Gusmão, Isabella Valentina, Lorena Bianco, Krystara Monteiro,
David Silva
DRAMATURGIA
Edyr Augusto
DIREÇÃO E ENCENAÇÃO
Paulo Santana
ASSISTÊNCIA DE DIREÇÃO
Kesynho Houston
ESTAGIÁRIA DE DIREÇÃO
Victoria Rodrigues
DIREÇÃO MUSICAL
Ismael Mello, Pelé do Manifesto
COMPOSIÇÃO MUSICAL
Pelé do Manifesto, Ismael Mello
DIREÇÃO COREOGRÁFICA:
Kekeu, Luana Lemos
PREPARAÇÃO CORPORAL
Luana Lemos, Kekeu
CENOGRAFIA:
Charles Serruya
FIGURINO
Claudia Palheta, Lucas Belo
COSTURA
Marcia Gonçalves
ADERECISTA
Marcia Almeida
DESENHO DE LUZ
Malu Rabelo
SONOPLASTIA
Suely Brito
PAISAGISMO SONORO
Ismael Mello
ASSESSORIA DE IMPRENSA E REDES SOCIAIS:
Leandro Oliveira
DESIGN GRAFICO E DIREÇÃO DE ARTE:
Claudia Palheta e Victoria Rodrigues
PRODUÇÃO DE VIDEO
Victoria Rodrigues
FOTOGRAFIA DO PROGRAMA:
Xviccy, Kesynho Houston
MONTAGEM DE ARTE DO PROGRAMA
Victoria Rodrigues
ASSISTENTE DE PRODUÇÃO
Suely Brito
PRODUÇÃO
Tania Santana, Zê Charone
REALIZAÇÃO
Grupo de Teatro Palha