Na Ponta dos Floretes – Por Edson Fernando
I Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica.
Montagem Teatral: À Deriva
Edson Fernando[1]
Desde os primeiros instantes os floretes são desembainhados. Sete adversárias sedentas de sangue – umas mais que as outras – estão em posição de guarda. No embate, prestes a iniciar, não há tempo para saudação, cumprimentos ou qualquer espécie de etiqueta tirada dos livros de boas maneiras. Num piscar de olhos e já estamos no frenético "marchar" e "romper" das adversárias que se fitam o tempo inteiro, como se punhais portassem e disparassem dos olhos rasgando o ar a qualquer instante. Atmosfera de perigo eminente. Embora os movimentos iniciais ainda preservem algum estado de cautela, presente entre as adversárias – e, por isso, o "marchar" e "romper" se mantenham por curto espaço de tempo – rapidamente tudo vai escalonando para patamares cada vez mais dramáticos. Então, as adversárias se lançam "afundo", os floretes se tocam, se chocam, se precipitam uns contra os outros; ora uma contra uma, ora uma contra todas; não há respiros, não há trégua, somente o desejo de tocar o tronco da outra e, se possível for, perfurá-lo numa "estocada" certeira, fatal. Um olhar mais atento talvez consiga acompanhar os movimentos de ataque e defesa que se sucedem em "flecha", "parada", "balestra", "contra-ataque", "resposta" ... De tão intensos e rápidos os golpes dos floretes se confundem com o sibilo do vento e tudo se transmuta em angustias, em martírio... de uma, de duas, de todas. Meio atônito, meio surpreso, meio hipnotizado pelo vórtice dos floretes, apenas uma certeza me invade: não estou à deriva, mas rumando até a beira do precipício e estou curtindo o passeio.
"À deriva" é o terceiro trabalho apresentado na I Mostra de Espetáculos de Formação do Curso de Produção Cênica. A montagem teatral é uma adaptação da última peça teatral de Federico García Lorca, "A Casa de Bernarda Alba", e tem a direção assinada por Patrícia Pessoa. Acho o nome da montagem, no mínimo, curioso, pois, como tentei demonstrar nas linhas iniciais, o fluxo da ação teatral me parece muito bem amarrado e o jogo de cena conduz os acontecimentos para um desfecho trágico e inevitável, como num combate de esgrima em que é inevitável chegar à vitória de um ou outro oponente. Vamos por partes.
A primeira coisa que destaco é o recorte feito por Patrícia Pessoa na peça de Lorca, optando por iniciar – assim suspeito – com uma das cenas do final do Primeiro Ato, quando temos a aparição da mãe de Bernarda Alba, Maria Josefa, em estado de delírio, professando a inevitabilidade da infelicidade daquela família; o desfecho desta cena já emenda com o início do Segundo Ato onde temos as irmãs tecendo e conversando sobre Pepe. Por esse recorte, o embate entre as irmãs em torno da figura masculina, que nunca aparecerá em cena, é trazido para o primeiro plano, desde o início, e ganha destaque à medida que a peleja entre Adela e Angústias se desenrola.
Considero que esta escolha me leva à duas direções: por um lado, isso empreende ritmo e andamento para a montagem, me colocando desde o início para acompanhar o eixo principal que move a história escolhida para ser contada, isto é, a paixão e disputa das duas irmãs por Pepe; por outro, sem o contexto que apresenta a figura tirânica de Bernarda Alba – que se encontra no Primeiro Ato da peça de Lorca –, a própria figura da personagem se enfraquece e me aparenta apenas como uma Mãe mandona e controladora, como tantas que ainda temos atualmente. Posso estar redondamente enganado, mas fiquei com a impressão de que o luto de oito, imposto por Bernarda Alba às suas filhas – que deverão ficar trancafiadas dentro de casa, sem nenhum contato com o mundo exterior – depois da morte do seu segundo marido, este fato ou é mencionado muito vagamente ou sequer é mencionado durante toda a apresentação. Esse e outros contextos históricos que permitem discutir e aprofundar as questões sociais direta ou indiretamente ligadas a condição de opressão e repressão das mulheres, ficaram obnubilados para a minha percepção. Então, certamente foi uma escolha ousada da direção que optou por centrar sua atenção nesse recorte e, talvez, apostar suas fichas no conhecimento prévio do público do enredo da peça de Lorca.
Considerando, no entanto, apenas o recorte escolhido, a montagem se apresenta, aos meus olhos, com muita desenvoltura, principalmente, a partir do jogo de cena realizado pelo elenco; jogo de cena este que metaforizei, no início desta crítica, com o combate de esgrima. O texto de Lorca passa pela boca dos atuantes e me chega sempre cortante: ele me corta na medida em que o percebo cortar a cena e o parceiro de cena; a troca de olhares é intensa, marcada, mas orgânica; no centro do palco, a mesa sangra e a chama das velas mantem o jogo sempre aquecido; a trilha sonora, quase sempre num tom flamenco – será? –, intensifica a tessitura dramática; e, como na esgrima, o texto atravessa a cena em golpes e contragolpes, numa atuação bem harmoniosa entre todos os sete atuantes. Esse conjunto de elementos, a meu ver, bem orquestrados pela direção, me mantém vivo e interessado do início ao fim da apresentação.
Por fim, destaco uma coisa curiosa que eu e minha vizinha de plateia percebemos e comentamos no exato momento do ocorrido: numa das cenas finais, Bernarda Alba pede a espingarda e vai até o encontro de Pepe, fora de cena; ouve-se um tiro; Bernarda Alba volta e sugere ter matado Pepe; Adela sai de cena aos prantos e consternada; neste exato momento ouvimos – eu e minha vizinha de plateia, pelo menos – outro tiro, nos levando a crer que Adela se matou com um tiro de espingarda; alguns instantes depois vemos a silhueta de Adela enforcada no centro da cena; eu e minha vizinha de plateia nos entreolhamos estranhando a situação. Tudo bem, pode ter sido um pequeno delírio coletivo que acometeu apenas nós dois, ou algum ruído da encenação que merece atenção.
Outro detalhe também curioso – juro que é o último mesmo – é o porta-retrato vermelho, com a fotografia de Pepe, que Martírio esconde entre suas coisas e é logo descoberto por La Poncia. Quando o objeto entra em cena me provocou um ruido com a unidade da visualidade, pois me pareceu um porta retrato de plástico – posso estar redondamente enganado, afinal uso óculos multifocal, então, me deem um desconto – destoando com toda a ambientação dos demais objetos e elementos de cena.
Mas são detalhes. No cômputo geral foi um prazer ficar "à deriva" na companhia de Patrícia Pessoa e sua equipe técnica.
Evoé
01 de novembro de 2024.
[1] Ator e Diretor Teatral; Coordenador do Projeto Tribuna do Cretino;
Ficha Técnica
À Deriva
Elenco:
Yasmim Ramos
Carolina Rodrigues
Lauren Nunes
Ana Eliza Silva
Julia Favacho
Paula Bastos
Rapha Rodrigues
Iluminação:
Vitor Hugo
Sonoplastia:
Johnatas André
Adaptação:
Patrícia
Pessoa
Cenografia:
Tricia Pessoa e Paulo Santana
Fotografia:
Maria Lima
Assistente de Produção:
Felipe Douglas e Jam Sancas
Direção:
Patrícia Pessoa