Natanael e a imersão no mundo de areia – Por Bruno Euller

08/07/2022

Montagem Teatral: "Fale com Estranho"
Montagem: Coletivas Xoxós

Bruno Euller Marlon Costa Oliveira[1]

Que estranho é esse que se deve falar? Um ser real? Um ser misterioso? A dúvida e a curiosidade me instigam a degustar da montagem "Fale Com estranho", da Coletivas Xoxós. A começar, ao adentrar o espaço do Teatro do Desassossego, temos uma estrutura para que o espetáculo seja apresentado ao centro enquanto o público se dispõe nas cadeiras colocadas nas laterais. Temos uma melodia de música clássica ao fundo, enquanto se aguarda o início do espetáculo. Tal som me remete a um estado de visita ao passado. A música antiga, o ambiente com iluminação amarelada, um bom filme de época. Mas a viagem para o mundo da antiguidade se encerra quando começo a analisar a cenografia do ambiente. Pois tudo me parece um pouco estranho.

Dispostas nos limites do "palco" havia duas caixas de madeira, uma cheia de areia e uma sem nada. Ao centro, quatro longos recipientes que me parecem ser sacos do avesso. Claramente são sacos de armazenar ração sendo reutilizados, e isso foi deixado como mera evidência. E dentro destes... muita... muita areia... E ao centro um pequeno vaso de flor esbranquiçada. Um pontinho de esperança na imensidão. Na parede, um quadro antigo de uma criança, uma lembrança do passado. Tudo bem simples, mas curioso. Depois de tanto observar, a música se encerra e logo um silêncio se instaura. Sinto-me desnorteado diante de tantos elementos peculiares e um "silêncio ensurdecedor".

Um corpo entra em cena, um corpo inquieto, um corpo que vaga pelo espaço e que logo passa a mover os objetos estranhos de lugar. A inquietação está no corpo, está no olhar, no andar, em tudo. Tudo muito estranho. Esse ser se ergue pelo chão, pelas paredes, com movimentos extravagantes e uma tremenda agonia, aparentemente preso a um pesadelo. O personagem vem trazer a narrativa de um acontecimento de sua vida, narrada diante da apresentação de alguns objetos escondidos dentro da caixa de areia e de um boneco de pano que mais parece a sua versão na infância.

O espetáculo nos apresenta o passado triste do rapaz, que cresceu distanciado do pai, um fato evidente na sociedade atual. Aliás, quantas crianças crescem sem o afeto paterno dentro de casa? Tendo no lar apenas essa figura como um ser que dispõe apenas de materialidades para os seus e que afetivamente está sempre invisível. Esta é a realidade de Natanael, que só encontrava o pai na hora das refeições e que se via afastado dele por meio de uma fantasia que lhe foi aplicada. A fantasia de que havia um Homem de Areia que vagava pela casa e que iria atrás dos pequenos que não dormiam e os torturavam com areia nos olhos para mantê-los acessos e sofrendo. Uma fantasia tosca e medíocre vinda das pessoas de mais idade que só prejudicaram mais e mais o psicológico do pequeno Natanael. Mais tarde, o pai do menino sofre uma fatídica morte. E acreditem, para o pequeno rapaz, a causa de tudo isso seria o Homem de Areia. É nítido o quanto uma brincadeira utópica adoeceu a criança a ponto de não saber distinguir mais a realidade. E no decorrer do espetáculo vemos sequências de cenas agoniantes desse adoecimento psicológico de Natanael. Ele se debruça sobre a areia, brinca com cabeças de gesso, enquanto conta de forma insana, com tons de voz elevados e movimentos bruscos, como o homem de areia havia acabado com a vida de seu pai. Claramente o luto também colaborou com esse rompimento do menino com o mundo real.

A narração do personagem seguia em um ritmo de instabilidade, ora calmo, ora agitado, às vezes completamente fora de si e em certos momentos parecia que nem estava ali. Diversas outras cenas foram acontecendo, como a do personagem fumando um charuto seguindo a apresentação dos fatos de sua vida, alguns parecendo reais, outros um tanto fantasiosos. Temos também nas paredes, em meio a uma escuridão que se instaura no ambiente em pequenos instantes, a exposição de imagens estranhas, um tanto sem sentido, mas que deixaram o personagem mais fora de si ainda. A construção dessas sequências de cenas foi produzida de forma perspicaz, de modo que não me fizeram ver ou sentir uma narrativa tão lógica ou com elementos tão claros de se compreender, mas que com todas essas estranhezas me deixaram em estado de choque com tudo o que via e sentia, causando agonia e uma sensação de medo e preocupação com o que estava a acontecer com Natanel. E esses fatos vão seguindo até vermos o jovem rapaz num estado de extrema tortura psicológica, completamente fora de si e da realidade, gemendo, falando só, gritando, entrando em colapso, até cair no chão.

Tudo isso me deixou estagnado, fazendo-me questionar o quanto uma pequena história fantasiosa, uma brincadeira ou até a declaração de palavras diante de uma criança, pode influenciar imensamente em seu desenvolvimento futuro. Assim como a ausência afetiva de familiares. A obra é uma verdadeira conversa com o estranho.

08 de julho de 2022

[1] Graduando do Curso Superior Tecnológico de Produção Cênica da ETDUFPA; Bolsista PIBIPA 2022;

Ficha Técnica

Dramaturgismo, Concepção de Sonoplastia e Atuação:

Leoci Medeiros.

Assistente de Dramaturgismo:

Yasmin Ramos.

Assistente de Direção e Operação de Sonoplastia:

Vanessa Lisboa.

Voz em off:

Naisha Cardoso.

Concepção de luz:

Patrícia Gondin.

Projeto Gráfico, Fotografia Cênica e Operação de Luz:

Danielle Cascaes.

Concepção de Figurino e Maquiagem:

Coletivas Xoxós.

Laboratório de Performance Vocal:

Thales Branche.

Assessoria Terapêutica:

Marcos Vinicius Lopes.

Assessoria de Imprensa e Multimídias:

Lucas Corrêa.

Assessoria Psiconceitual e Direção de Palco:

Roberta Flores.

Encenação e Anatomia Cenográfica:

Wlad Lima.

Direção Cênica:

Andréa Flores.

Residência Artística:

Teatro do Desassossego.

Realização:

Coletivas Xoxós.