Necropolítica – O vírus mais letal – Por Raphael Andrade.

Montagem: "Meu nome é Ana"

Montagem Teatral: Grupo Palha

Raphael Andrade[1]

Eu me chamo Raphael! e essas sete letras todas juntas formam a primeira palavra que aprendi a escrever. E, ao falar em escrever, parece-me estranho tocar novamente em uma caneta, porém há mais ou menos um mês por conta da pós-graduação, voltei a escrever novamente com este instrumento. A letra que parece mais um hieróglifo, foi trocada, muitas vezes, pelo modus operandi dedo/teclado/tecnologia, algo que já nos parece indissociável na contemporaneidade, onde escrever e depois digitar cada letra no teclado no mundo moderno que força a linearidade simbiótica de sociedade x estudo x trabalho é perda de tempo.

Mas acredite, caro leitor, poder tocar numa caneta e riscá-la com tinta em uma agenda/papel/livro aleatório da esquerda para a direita em um zigue-zague de letras construídas por pensadores que utilizaram mais uma técnica de construção racional para dizer algo, ainda é eficaz, ao menos para mim, pois a escrita flui melhor, mesmo que, vez ou outra, eu tenha que rabiscar a perninha do "a", que parece mais um "o". E, ao estar ziguezagueando por às, efes, erres, agás e cês, na tentativa de construir um pensamento descritivo para uma crítica teatral, me vem à mente o que perpassou a escrita de Penélope para criar "Meu nome é Ana".

De antemão, acho que existem três poderes na escrita: PODER escrever e PODER ser lido, seja com caneta ou por teclado é uma forma de estar no PODER, nem que seja na efemeridade daquele momento, pois há um leitor que está atento na construção do pensamento nas letras rabiscadas em cada frase, contudo, o melhor (ou pior) disso tudo é que ele pode compactuar ou não com a tua ideia. E, ao rabiscar cada letra em "Meu nome é Ana", algo atravessou a escrita de Penélope, seja por vivências, memórias, fatos cotidianos, política, dores e tantos outros meios de mostrar algo a alguém (lugar onde se vê) - etimologia da palavra teatro.

Ao mostrar algo para alguém, dentre tantos rabiscos, Penélope afunila sua ideia na contemporaneidade, em plena pandemia do Coronavírus, que já está confluindo (tomara) para o pretérito, principalmente por estar escrevendo após um pouco mais de um ano e seis meses do boom da doença, exatamente em 18/09/2021, dia em que o boletim epidemiológico da taxa de ocupação dos leitos de UTIs e clínicos chegaram ao zero porcento de ocupação em Belém. Espero que, após tantas vidas ceifadas por uma necropolítica vigente, possamos apenas lembrar disso como um passado distante, mas que também não esqueceremos, sobretudo por ter deixado marcas indeléveis em nossas vidas.

Retornando à dramaturgia de Penélope e, concomitantemente, seu solilóquio, a atriz/dramaturga entrega tudo desde sua primeira tosse, há uma pressa de mostrar o paroxismo de suas ações, em que Freud chamaria de ab-reação perpassada por uma anomia social à la Durkheim. Na narrativa, sobressai à denúncia da solidão materna, na qual a obra tende à prevalente resistência da violentação do feminino numa transcendente atemporalidade, indissociável no contexto histórico patriarcal ainda vigente.

As camadas de situações enfrentadas por Ana, intensificam-se num trágico e cruel convívio com a opressão e o preconceito, que a pandemia intensificou e desvelou de forma mais abrangente. Nesse enredo, é perceptível a veemente entrega da atriz e autora, sustentada pelo comportamental psicofísico de uma mulher que sofre transtornos mentais (que beira o burlesco), alvitrada, às vezes, por uma visceral exteriorização de uma personagem sitiada por todos os lados (sob suporte do olhar lancinante de Paulo Santana), com camadas de Interseccionalidade - "mulher, prostituta e gorda", como desvela Ana.

Contudo, se a atriz imprime densidade, o texto traz linearidade, isto é, faltou a peripécia. Seria este um pensamento teatral ocidental teorizado e realizado desde Aristóteles? Decerto! Porque tal teoria possibilita, na cena, a nuance de não linearidade de estar vendo a mesma coisa ou saber como finalizará o enredo. Mas Penélope permite fincar sua obra na seara da coesão e do alcance no recado cênico e ponto. Nada errado, se analisarmos o fato do contexto cruel, avassalador, do isolamento social que vivenciamos na práxis, desvelando, assim, a vida como ela é.

E essas três letras pensadas e descritas em caneta ou teclado para dar vasão na personagem ANA, juntamente com o aporte brilhante de luz e som no alcance vivo entre atriz e espectador, faz ecoar o surto feroz de quem está sozinho com o vírus infeccioso pela COVID, mas também nos faz lembrar que muitos estão infectados com um vírus sem variante mais letal que chaga em série, somente, nos mais vulneráveis: a desumanização e industrialização da política de morte, que mata sem piedade e risca de papéis nomes como Anas, Marias, Penélopes e Izabéis.

18 de setembro de 2021.

[1] Professor-artista-pesquisador. Especialista em Arte e Educação e Mestrando em Artes.

Ficha Técnica

"Meu nome é Ana"

Dramaturgia:

Penélope Lima.

Com Penélope Lima interpretando a personagem "Ana".

Direção e Encenação:

Paulo Santana

Arranjo Musical:

Geraldo Sena

Músicas:

"A Estrela"

Gilberto Ichihara, baseado no poema de Manuel Bandeira

"Sob o estado de emergência"

Gilberto Ichihara

Criação e Execução de Visualidade e Sonoplastia:

Nelson Borges

Criação e Execução de Designe de Luz:

Malú Rabelo

Assessoria de Imprensa:

Leandro Oliveira

Arte Gráfica:

Raphael Andrade

Fotografia:

Bruno Moutinho

Produção:

Tânia Santana

Parceria:

Grupo de Teatro Palha

Apoio:

Centro Cultural Atores em Cena

Patrocínio:

Lei Aldir Blanc. Secult / Governo do Pará. Secretaria Especial da Cultura.

Ministério do Turismo. Pátria Amada Brasil / Governo Federal.