O artista como poema-mundo – Por Alberto Silva Neto

16/02/2020

Montagem: mEU pOEMA iMUNDO

Montagem Teatral: Coletivas Xoxós

Alberto Silva Neto[1]

A inauguração de um novo espaço cênico em Belém já é motivo de alegria. Melhor ainda quando isto acontece com a apresentação de um bom espetáculo, cuja poética dialoga com a arquitetura do lugar para afirmar as identidades artísticas de sua fundadora-mor. É o que ocorre com mEU pOEMA iMUNDO, criação do Coletivas Xoxós, com encenação assinada por Wlad Lima, apresentada neste final de semana no Teatro do Desassossego, localizado no subterrâneo do Espaço Cuíra, na Cidade Velha.

Este poderia ser mais um espetáculo de porão de Wlad, que há três décadas produz uma poética encravada nestes singulares espaços espalhados pela cidade, e até resultou em sua tese de doutoramento O teatro ao alcance do tato, pela Universidade Federal da Bahia, publicada em livro no ano de 2015. Mas, esta criação vai além, ao apresentar um discurso cênico em tom marcadamente confessional sobre experiências de vida desta encenadora, sempre atravessadas pela relação dela com seu corpo gordo.

Embora o teatro de Wlad Lima se afirme cada vez mais no campo metalinguístico e, não raro, convoque elementos autobiográficos, a coisa ganha contornos explícitos nesta direção de Leoci Medeiros. Isto porque a narrativa, testemunhada por apenas 20 espectadores a cada sessão, apresenta uma persona cuja aparência física e comportamento vocal/gestual evocam, a todo instante, a presença inequívoca de Wlad, embora a autora da dramaturgia e encenação do espetáculo jamais esteja em cena.

A missão de "ser no parecer" Wlad, como diria Louis Jouvet, cabe à atriz-palhaça Andréa Flores, parceira em criações recentes como Ô de casa, posso entrar para cuidar? e Rala, palhaça! O paradoxal é que Andréa, apesar de literalmente vestir a pele de Wlad, ao trajar um macacão com enchimento idealizado com mestria pela figurinista Grazi Ribeiro, jamais busca a encarnação pela metamorfose. Ao contrário, seu mérito maior é imprimir um tom distanciado, bem próprio da forma narrativa, capaz de configurar uma espécie de depoimento dela mesma sobre a artista a qual representa.

As regras do jogo, aliás, são apresentadas claramente logo nas primeiras palavras do texto, quando Andréa explica que aquele lugar não é um teatro (leia-se no sentido de edifício teatral), ela não é gorda e aquilo não são cadeiras - referindo-se aos recipientes plásticos de diversas formas e tamanhos acomodados num engradado de metal, com os quais opera para construir inúmeras imagens e diferentes lugares durante sua atuação.

Assim, a narrativa vai revelando os princípios poéticos e procedimentos operativos bem pessoais desta encenadora, como é caso do pensamento gerado em formas espiraladas, ou o registro quase diário dos instantes de inspiração feito num caderninho estrategicamente colocado ao lado do vaso sanitário - "trono" de todas as manhãs, antes de sair para a labuta diária como professora e artista. Também desfilam aos olhos do espectador as relações íntimas dela com o ambiente doméstico - destaque para uma velha poltrona, objeto que pode ser lido como sua própria personificação -, e com espaços da cidade assiduamente frequentados, como livrarias e mesas de bar.

A celebração festiva da vida, mostrada com leveza e boas doses de ironia pela atriz-palhaça, predomina na encenação, embora esta não se furte a pontuar momentos de dor e sofrimento, revelando atmosferas sombrias marcadas pela melancolia e desilusão.

A propósito, as bases poéticas sobre as quais se funda esta criação cênica são reveladas quando a atriz-palhaça declara "eu não faço poesia, eu sou um poema". É possível identificar neste discurso a ideia de que o/a artista ultrapassa a noção de ser agente da criação poética ao fabular mundos com sua arte, mas é ele mesmo, com sua trajetória de vida e sua atitude de ser/estar no mundo, poesia em pessoa. Isto parece esclarecer a grafia do título do espetáculo, cujas primeiras letras são minúsculas; se as retirarmos, a expressão mEU (POEMA) iMUNDO torna-se EU, POEMA-MUNDO.

De fato, é a poesia em pessoa que traduz Wlad Lima a inundar aquele porão. Resta desejar que esta artista, juntamente com seus colaboradores e colaboradoras, tenha sempre muita força e coragem para seguir transbordando um desassossego tão urgente quanto necessário para esta Belém tão árida e resistente a toda forma de fazer poético que a ela se oferece. Vida longa a este novíssimo espaço cênico da nossa cidade.

16 de fevereiro de 2020.


[1] Professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA; Dr. em Artes pelo DINTER UFMG/UFPA. 


Ficha Técnica:

Montagem:

mEU pOEMA iMUNDO

Equipe de Criação:

Performance:
aNDRÉA fLORES.

Encenação e Dramaturgia:
wLAD LiMA.
 
Iluminação:
iARA sOUZA.

Figurino:
gRAZI rIBEIRO.

Fotografia e Design Gráfico:
dANIELLE cASCAES. 

Elementos Cenográficos e Layout da Fachada:
bRUTUS dESENHADORES.


Assessoria de Imprensa:
LeNISE oLIVEIRA.

Direção Cênica e Sonoplastia:

LeOCI mEDEIROS.