O Choque de Oito Pessoas em Uma Só – Por Ana Clara Mesquita
Montagem teatral: Solo de Marajó.
Montagem: Grupo Usina de Teatro
Ana Clara Mesquita[1]
O espetáculo paraense "Solo de Marajó", feito pelo Grupo Usina e dirigido por Alberto Silva Neto, é uma obra extremamente poética, política e certamente muito regional. Baseado no romance Marajó (1947), de Dalcídio Jurandir, este monólogo interpretado por Cláudio Barros, além de apresentar uma performance digna de um pavor maravilhoso, também representa um exercício de resistência estética e de valorização da pura identidade amazônica. A peça adota uma proposta cênica simples, na qual o ator – sim, apenas ele, como já é de se imaginar em um monólogo, afinal — sem qualquer artifício ou apoio visual, dá vida a oito personagens diferentes apenas com seu corpo e sua voz, demonstrando um domínio técnico e sensibilidade interpretativa simplesmente de arrepiar.
Eu gostaria de poder elaborar mais sobre outros aspectos como figurino ou cenário, todavia, não teria muito o que falar sobre, uma vez que um dos detalhes que mais me chamou atenção nessa montagem foi justamente a ausência desses dois elementos. Essa ausência de cenário e figurino tradicional, a meu ver, reforça a força simbólica da atuação e aproxima o público de uma experiência sensorial e imaginativa que se torna rara no teatro contemporâneo, além é claro de proporcionar ao espectador um espetáculo de um homem só, que me deixou em uma dúvida constante entre achar o ator um completo lunático ou um gênio da atuação.
É uma obra ao mesmo tempo poética e política, que conseguiu a façanha de me manter uma hora presa do início ao fim com sua força regional autêntica, e atuação absurda de Cláudio Barros, que representa um exercício de resistência estética e de valorização da identidade amazônica. O que mais me surpreendeu também foi como, com uma proposta cênica extremamente minimalista e simples, o ator conseguiu dar vida a oito personagens distintos usando apenas o corpo e a voz. A habilidade dele em nos fazer visualizar cada figura como se estivessem diante de nós é, no mínimo, impressionante.
Devo dar certo destaque a cena em que ele interpreta uma mulher ribeirinha contando sua história de dor e resistência, por ter me causado uma sensação notável de tristeza e emoção: sem recorrer a figurinos exagerados ou troca de voz caricata, ele altera apenas sua postura, suaviza o timbre e modifica o ritmo do corpo, tornando clara a presença dessa personagem. Numa outra cena, que me deixou completamente chocada e emocionada, ele se transforma bem diante dos meus olhos num menino explorado, encurvando o corpo e olhando para cima de forma tão expressiva que senti um nó na garganta só de observá-lo.
Agora, falando de certos aspectos que me soaram familiars, quando pude notar durante o espetáculo, logo me veio em mente essa semelhança com um dos textos que já estudamos em sala. Sob a ótica do Teatro Pós-Dramático, de Hans-Thies Lehmann, "Solo de Marajó" rompe com aquela linearidade narrativa tradicional e careta, e se afasta do teatro representativo. Mesmo que derive de uma obra literária, a peça leva o texto para a cena de forma performativa, destacando o corpo do ator como principal meio de comunicação. A ideia de "pos-dramático" se materializa lindamente nesse detalhe: Cláudio Barros não apenas atua – ele se transforma em cada personagem com gestos e ritmos tão precisos que eu me vi hipnotizada durante várias cenas. Outro exemplo marcante é quando o ator encarna um lavrador idoso; ele desacelera os movimentos, projeta o corpo para frente e respira com esforço, compondo toda a fisicalidade da personagem sem uma só palavra. Talvez ele seja mesmo um gênio, e não um lunático.
Outro aspecto coerente com o pós-dramático é a relação não hierárquica entre os elementos cênicos. Não há subordinação da atuação ao texto dramático; muito pelo contrário, o texto torna-se apenas mais um componente entre outros – como o silêncio, o movimento, a respiração e o espaço vazio – que se articulam de forma autônoma. Isso ecoa uma percepção que tive sobre a obra de Lehmann de que a cena contemporânea é algo como uma teia de ações performativas, onde o ator deixa de ser mero portador da fala dramática para se tornar um criador cênico pleno. Houve momentos de silêncio tão longos que me deixaram desconcertada – no melhor sentido. Foi nesses instantes que percebi o quanto o não dito também pode nos impactar profundamente. Aquele silêncio desconfortável não é desconfortável atoa.
Desde sua estreia em 2009, "Solo de Marajó" percorreu vários estados brasileiros e, especialmente, as comunidades ribeirinhas do Pará através da iniciativa MAMBEMBARCA, uma turnê fluvial que levou arte e reflexão a regiões historicamente esquecidas. Sua participação em festivais nacionais e internacionais consolida sua importância dentro do panorama teatral brasileiro.
Enfim, para mim, Solo de Marajó se mostrou muito mais do que uma peça. É um manifesto cênico que valoriza a memória coletiva, a literatura regional e o potencial transformador do teatro como instrumento de denúncia, afeto e pertencimento. Sua proposta de encenação dialoga com os princípios do teatro pós-dramático e da performance, desafiando convenções, e me ofereceu uma experiência que foi ao mesmo tempo provocadora, sensível e profundamente engajada com questões sociais, e olha que eu nem sou fã desse tipo de coisa.
12 de Agosto de 2025
[1] Graduanda do Curso de Licenciatura em Teatro; crítica teatral produzida como atividade acadêmica da disciplina Teatralidades Contemporâneas ministrada pelo professor Edson Fernando.
Ficha Técnica
Solo de Marajó
Grupo Usina de Teatro
Atuação:
Cláudio Barros
Texto original:
Marajó, de Dalcídio Jurandir
Dramaturgia, Iluminação, Encenação e Direção:
Alberto Silva Neto.
Dramaturgia, Figurino e Atuação:
Claudio Barros.
Fotos de divulgação:
JM Conduru Neto.
Coordenação de Produção:
Vanda Dantas