O “Encantamento” da palavra em Meu Quintal é Maior Que o Mundo – Por Matheus Amorim

27/10/2019

Montagem: Meu Quintal é Maior Que o Mundo.

Montagem Teatral: Grupo de Teatro Universitário.

Matheus Amorim[1}

Há uma pequena sombra que pisca na panada branca ao fundo do teatro, existe um mundo  que parece correr de todos os cantos de um quintal reinventado, mas que não se mostra enquanto mote e sim enquanto lugar a que se deseja chegar por um caminho de sonhos e encontros onde uma infância se traduz em forma de desejo, medo e incerteza sobre o que se pode a partir da palavra poética, estamos falando de uma obra que tem a aventura do universo infantojuvenil como chão para dançar outras infâncias, outros mundo possíveis que cansaram de ser impossíveis porque a língua não permitia, ou porque o tato já estava previsto a ser raso, quando as crianças apagam suas lanternas outra luz se acende nesse mundo.

Tomar a infância como um lugar previsível, que se pode personificar em dois ou mais olhares sobre o ser, talvez seja uma forma de continuar narrando a vida a partir do mesmo aspecto com que a mesma nos foi apresentada até agora, talvez seja preciso encarar a força da palavra que se exprime ao afirmar "o inseto é maior" como sendo o momento em que tudo deixa de fazer sentido pelo que foi imposto e passa a buscar por outra coisa que não seja apenas um sentido dentro do que se pode reinventar.

O espetáculo mergulha num mundo que se apresenta a partir dos poemas pós modernos de Manoel de Barros e a partir desse lugar cria uma costura de mundos dentro do plano dos sonhos que de sonho perde tudo ao se transformar em "encantaria" do mundo que se vê a partir da busca por uma explicação que não seja racional, nostálgica e meramente melancólica, mas onde se abra espaço para se dizer e sentir de outra maneira, por outra cisma e empiricidade.

Meu Quintal é Maior Que o Mundo traz a palavra em abandono do poeta cuiabano para compor sua peça, potencializando seu lado positivo que se extrai de um olhar extremamente pessoal e crítico do autor sobre a existência na superfície do sentido, sobre como se é possível olhar pela via do que a muito está aqui, emergindo das pequenas coisas. Contudo, se o contexto da obra parece girar dentro do território da perda e de sua experiência, ela não exclui de si em certos momentos a riqueza da explicação que tenta reciclar e transcriar os resíduos que acumularam-se no terreno baldio do poema.

Nesse ponto é que podemos olhar para onde se deseja ir a obra, com um tato bastante sensível à recriação de mundos, o trabalho corporal de algumas cenas é capaz de transmitir a ideia de um quintal que tem sua lama empoçada no corpo indizível do poema, exprimindo a incompletude do personagem ao se transformar na própria lama e no menino que dança sua própria linha no suspiro, como correr de encontro à algo que enfrenta o cruzamento de mundos como uma enunciação de despedida.

Aqui se localiza uma das "encantarias" da obra, a encantaria no seu sentido de desaparecimento misterioso, onde o tornar-se invisível se mostra como parte do transformar-se em outra vida pela via do encontro, ao falar do menino que não escreve com a direita, mas que se entende na esquerda, onde o mesmo vê o pente, o pente folha, toda a atmosfera criada para se dizer tal palavra consegue fazer uma espécie de viração na cena, como se ali, na desdobra do ato outra dobra se apresentasse, se faz possível o sonho, o sonho por outro pertencimento de passagem que resiste a forma fixa, não seria aqui apenas uma interpretação do poema, seria uma torção da forma que se sente e que se deseja comunicar.

É preciso destacar aqui o trabalho de bricolagem e sobreposição de formas na visualidade do espetáculo, parte responsável por todo arrebatamento do público a cada apresentação dos seres desse quintal, houve um entrelaçamento entre luz, figurino e cenografia que se fez enquanto o lugar onde tudo ganha uma vida improvisada, se podia sentir a explicação do poema como invenção dessa vida que caminha no mundo onírico para poder se fazer tão séria quanto o seu brinquedo, a responsabilidade de tão grande afeiçoamento pelo que o espetáculo quer transferir está nesse entrelaçamento muito bem tecido pela equipe.

No que cabe a dizer sobre o brincar nesta obra, pode-se falar que ela não deseja outra coisa senão apresentar-se enquanto resistência às infâncias negadas, todas elas, as que se vive enquanto criança, enquanto jovem ou idoso, infâncias entre, é sobre a uma infância inerente

a idade, aos padrões ou as formas que engessam no trajeto, uma vida como a do autor vanguardista, que se abandona para ser poema.

Cabe aqui falar sobre as alçadas energéticas que a obra movimenta, a presença da leitura de Manoel de Barros bem como as sensações que se tem ao apreender seus poemas como forma de ver a vida em seu desvio, nas suas ausências e emergências está em muitas "obragens" deste quintal, em muitas latas nos pés, no carrinho feito de escrever, no cheiro das folhas, nas bolhas de sabão, no regar a planta e no cantar a própria vida. Não há como perceber tudo isto sem identificar a magia que a sonoplastia do espetáculo apresenta, como se no fundo deste quintal existisse uma ciranda que gira na intenção de acionar a vida de cada ser, os picos das cenas se revelam no som que as mesmas carregam, dessa forma era como se cada ponto dessa grande costura tivesse sido tecida por seu som próprio.

Meu Quintal é Maior Que o Mundo é um voltar ao que não nos foi permitido notar, um desejo de falar a partir do sonho e da poesia de forma que se incorpore uma inversão da forma, é um belo traço do que a coletividade em um processo de arranjos pode proporcionar, uma leitura sobre novas possibilidades de se falar da literatura brasileira no teatro e de como não ficar apenas no literário, o teatro que este espetáculo proporciona é um fazer que busca na potência pessoal de cada participante uma contribuição para se pensar um mundo onde ainda se pode sonhar pelas palavras. Meu Quintal é Maior Que o Mundo é um prego enferrujado achado no meio do quintal, é um prego que não basta apenas enxergar, que se faz necessário debruçar um olhar para melhor enxergar e enxergar sem julgamentos.

27 de outubro de 2019.

[1] Ator e Graduando do curso de Licenciatura em Teatro, UFPA. 

Ficha Técnica:

Elenco

Babu Viana

Carmecy Paixão

Carlos Eduardo

Francielly Natasha

Jayme Leno

Kevin Braga

Lucas Bereco

Mario Saldanha

Mateus Almeida

Maurilo Silva

Raul Lima

Renata Ribeiro

Willian Marignan

Yasmin Santos

Equipe Técnica

Direção e Dramaturgia:

Luiz Girard

Assistentes de Direção:

Kevin Braga e Bernard Freire

Preparação corporal:

Bernard Freire

Figurino e maquiagem:

Kevin Braga

Assistentes de Figurino:

Lucas Bereco, Raul Lima e Renata Ribeiro

Cenografia:

Handerson Ramos

Iluminação:

Malu Rabelo

Direção musical:

João Urubu e Diego Vattos

Assessoria de imprensa e Produção de conteúdo digital:

Rhero Lopes e Lucas Del Corrêa

Fotografia:

Leirson Reis

Curadoria:

Olinda Charone e Paulo de Tarso