O reflexo do mar nas mãos que falam: que deus recebe os afogados desta senhora? – Por Matheus Amorim.

04/07/2022

Montagem Teatral: Senhora dos Afogados

Montagem: Escola de Teatro e Dança da UFPA

Matheus Amorim[1]

A obra teatral "Senhora dos Afogados" teve sua estreia nesta quarta-feira no Espaço das Artes em Belém do Pará! A dramaturgia originalmente escrita pelo consagrado dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues, é encenada pelas turmas dos cursos técnicos em cenografia, figurino, teatro e especialização técnica em dramaturgia da Escola de Teatro e Dança da UFPA, sob a direção e encenação das professoras Karine Jansen e Larissa Latif. Apresento aqui um olhar perceptivo sobre a montagem com o intuito de contribuir para este processo, tanto quanto para a cena reflexiva de crítica em Artes Cênicas de nossa cidade. Acredito na potencialidade deste diálogo para fazer emergir um lugar de recepção e compartilhamento de insights no tocante ao crescimento e reconhecimento de nossas produções.

Colegas, o primeiro sentido crítico que este espectador gostaria de pensar é a respeito da textualidade no corpo do ator, um ato generoso que o elenco de alunos atores da segunda sessão do dia 30 de junho de Senhora dos Afogados nos trouxe. O espetáculo teatral no tocante a textualidade desperta neste crítico o seguinte pensar: existe um lugar de entendimento da obra teatral, ainda que em sua crueza, e apenas em parte dela, que somente a palavra dita pelo ator consegue acessar e entregar ao público, e de fato este é o ofício contínuo do ator durante toda a sua experiência e jornada com as artes da cena. De modo que a escuta atenta por parte daquele que está para ver é comportada pelo texto mastigado daquele que está para ser visto, esmiuçando e retroalimentando a informação. O intérprete em cena, pode ser capaz de transportar o seu público ao lugar de revelação que a obra deseja quando o texto é bem dito.

O ato de dizer o texto cenicamente atravessa também uma auto escuta do fazedor da cena que só é aprofundada no exercício constante de percepção dos ângulos sonoros que a mesma possui. Na presente obra, a possibilidade de entregar ao público algo para além do que a vista alcança visualmente, reside não apenas em uma sonoridade musical e eletrônica bem compassada e acoplada em instantes previsíveis de introdução, mediante arranjos ambientes imbuídos de mistério e opacidade ao longo da obra, mas também nas entrelinhas das respirações, dos silêncios, ensejos e fluidez orgânica de resposta nas cenas e entre cenas.

Existe nesta montagem um jogo intrínseco entre uma luz azul com tons de verde que salta sobre o público ao montante que o olhar no horizonte das personagens de Moema e D. Eduarda, revelam uma história que transpassa e focaliza o drama em si, delimitando um escopo de memórias pessoais rico em detalhes, a linha traçada na construção das personagens, faz caber na cena, um jogo entre passado, presente e futuro ensimesmado pelo desejo de manter um status de vulnerabilidade ocioso, intercalado por instantes de disputa e ameaças silenciosas de descobrimento de uma verdade que está por ser revelada.

A constância da personagem de Moema revela um estudo potencialmente investigativo do lugar desta, na obra como um todo, a atriz Jessica Ribeiro traduz uma bela interpretação, crucial e enlouquecedora, uma brutalidade e sutileza vestida de um luto mentiroso e obcecado, revelando um conflito geracional dentro da família Drummond. Sidiane Nunes, desponta em uma construção sóbria e de profundidade perspicaz, um mergulho na história capaz de gerar uma identificação com o percurso da personagem, de modo que em dado momento questiona-se, quem de fato é você D. Eduarda? O trabalho de encobrimento da real natureza e dureza desta personagem por parte da atriz elucida uma bela e progressiva construção da intérprete.

Neste núcleo ainda se comportam outras três personagens: Misael, interpretado por Fabrício Lobo, que apresenta uma construção que apropria-se de um lugar onde os questionamentos o cercam de modo a aparentar até dado momento do ato, pelo tom doce e cansado de sua construção vocal, não ser ele de fato um assassino, esta personagem busca uma vitimização imbuída pelo esquecimento de sua própria vilania, o que torna ainda mais instigante a busca por um desfecho da obra; D. Marianinha, interpretada por Eduardo Domingues, e Paulo, por Raul lima, constroem um tom de interferências bruscas e revoltantes revelando ao espectador nuances do drama que fazem caminhar em prosseguimento, no ritmo que o espetáculo determina.

O conjunto apresenta mediante uma engenharia cênica de entradas, saídas, permanências e ações do elenco no campo sonoro-visual do público, uma experiência polifônica agridoce e por vezes angustiante ao tocante que as progressões textuais são capazes de desvelar o momento seguinte que a obra pede, aliás a obra pede um prosseguir contínuo apesar de por vezes ruminar instantes repetitivos e incisivos de cenas que repercutem sobre os temas levantados pela obra.

A presença dos vizinhos comporta muito bem o tom que Nelson traduz em outras obras, afinal quem está de olho, está de olho a todo momento. A construção corporal destas personagens possui um único corpo agrupado que se move pela cena, um coro que repercute o pensamento externo ao ato que ocorre, sendo ele tão interno quanto o mesmo, encarregado de uma forte contracena, por vezes a tensão em atenção a cena principal se instala, a movimentação das cabeças pouco a pouco é comprada por este núcleo, o que potencializa esta presença em cena.

O palco cenograficamente robusto de móveis e plataformas, compacta uma visão realista ao mesmo tempo que suspensa pelas sombras e sobriedade de cor que resguardam o design estético e conceitual da montagem cenográfica criada por Ajota Takashi e assistência. Os figurinos enquadram família e vizinhos numa moldura transtemporal e surreal, que apesar de possuir elementos datados historicamente em tons de preto e pastel nos figurino alinhados, repuxam uma visão econômica de um teatro feito daquilo que se tem, daquilo que se é possível, sem luxo, sem brilho, apenas o necessário para cobrir uma nudez descoberta em cena, até mesmo no contraponto existente entre a casa da família Drummond e o Café do Porto, onde tons de vermelho parecem materializar uma espécie de sangue lavado das mãos, esta decisão cobre a obra de razão ao tornar estúpido o lugar do muito para se dizer o necessário.

A capacidade de aliar a costura cênica a um lugar narrativo-discursivo que o teatro possui de modo ímpar, torna o conjunto repleto de expectativas, cujas aquelas que são supridas ao decorrer do tempo disposto, apontam o resultado como um corpo em processo tátil de descobrimento do lugar. Aliás, cabe dizer com todas as letras, como esta confluência esteve presente nesta montagem de Senhora dos Afogados, um teatro denso se expôs como uma necessidade hodierna, afinal, que expectativa tecer sobre a volta das montagens desta casa de formação em artes? Densidade, crueza e texto nos foi entregue na noite desta quarta-feira!

Na segunda obra dirigida conjuntamente pelas professoras e diretoras Karine Jansen e Larissa Latif, dentro da Escola de Teatro e Dança da UFPA, nos é trazido uma ótica sobre a morte, o luto, a família, segredos, adultério, assassinato e outras temáticas circunscritas aos tons políticos e filosóficos da obra dramatúrgica, como o destino da alma, o lugar dos mortos e ou na linguagem do próprio espetáculo, os afogados, traçando ainda que indiretamente um olhar teológico; mais especificamente teofânico, um pensar e ouvir em reza e oratória, a voz e ou a misericórdia de um deus. Para que deus se reza quando se pede pela vida em luto por alguém? A obra não nos define isso, não diretamente, pois na tentativa de introduzir uma cosmogonia yorubá ao texto cantado das mulheres do porto, um falecimento se repercute no deixar das flores cênicas aos pés do público, vejam, as flores secam, são levadas e não produzem mais do que imagem, propositalmente talvez essa oferta permaneça na imanência do sentido.

O que repuxa o pensamento de que no final das contas, se deve rezar por si mesmo, para que o que alcançou o outro, não me alcance. O importante é manter a mim intocável, minha integridade, minha castidade, minha proeza e não manchar os 300 anos de exemplo que meus antepassados deixaram. Seria essa a mensagem que D. Marianinha em suas rápidas estadias em cena estaria nos trazendo? Que mente por trás dos atos de Moema está perquirindo seus atos? Que espírito controla este enredo?

Esta forte crítica ao pensamento conservador e de direita, faz a obra se posicionar politicamente em um limiar sutil e ao mesmo tempo irreverente. A iluminação de um novo palco do lado direito do espaço revela aquilo que estava escondido nas entrelinhas contadas pela família Drummond. O cais, mais tem a ver com as presenças que surgem preenchendo a cena. Anteriormente a esta exposição, um resquício desta energia se apresenta na construção de Rubens Leal com a personagem do Noivo, uma textualidade servida de compasso e explicação que faz cair as escamas da vista do espectador, expressando toda uma impavidez, sensação de abandono e vingança, o bastardo que nem nasceu traz em seu corpo o nome daquela que atormentara Misael por uma vida desde seu casamento com D. Eduarda, a prostituta morta com um golpe na jugular.

Na cena, nenhuma mentira pode encobrir o tempo e a verdade que há de ser, o noivo entra com uma leveza que não necessariamente o deixa apenas passar, a mensagem foi entregue, mostrando que nem só nas presenças dominantes e supervalorizadas é que se pode estabelecer um sentido de justiça, de desencobrimento da mentira ou até mesmo da verdade de uma personagem. De modo que a temática do adultério, da vingança, do incesto, de um tardio assassinato, não fica ao encargo de implosões de interpretação, nem de introversões, está tudo muito escancarado através de um texto bem dado e ações bem executadas.

Enquanto Moema e Misael revelam a verdadeira face dos Drummond em uma cena fortemente construída para retratar um incesto filial e paternal, o fantasma do passado ganha corpo na presença do Noivo, o drama aglutina-se em momentos onde as informações finais e imprescindíveis são jogadas rapidamente, cena após cena. É necessário atenção, cada verbo, cada fonema, cada intenção constrói o desfecho dessa obra, um trabalho que vai soltando aos poucos a densidade da montagem, parece esta ser uma marca precisa dessas diretoras e encenadoras paraenses.

Talvez caiba pensar aqui, na retomada que diversas vezes a montagem faz na observação da prece, daquilo que se pede e por quem, como um ato de confusão, confissão, queda e transcendência do espírito humano na obra de Nelson Rodrigues, o clamor externo não parece ser pelo luto, mas por uma justiça feita pelas próprias mãos, talvez a leitura feita sobre o deus cristão neste espaço tempo, seja a mesmo com a que estamos acostumados, possuindo uma espécie de vilania acoplada no próprio desconhecimento de quem seria Deus. Reconfigura-se este olhar então, na personagem do pai, um pai que mata, um pai que mente, que esconde e oculta. Estaria esta senhora ladrilhando também sobre a omissão, a crueldade e vilania de um estado necropolítico, sexista e misógino? Estariam as afogadas mergulhadas numa luta interna por poder ante a paternidade adoecida de uma família-estado que as consome entre si, a ponto de em um dos ápices da peça descobrirmos o sangue que também cobre as mãos de Moema.

O Espaço Cênico ainda que experimental comporta gentilmente a proposta de um palco italiano, a caixa preta aberta na horizontal, expõe o polêmico e trágico drama da família Drummond, cujos desdobramentos poéticos que a obra traduz em seus deslocamentos temporais e espaciais, perquirindo a dualidade da vida, os caminhos da hipocrisia, fazem-nos questionar, nosso maior inimigo está refletido no seio familiar? A Psicanálise Freudiana diria sim!

No café do cais, o núcleo de personagens constrói uma linha de raciocínio interessante em se tratando do tom que a obra até então vem desnudando, a escolha da canção na boca das mulheres do porto, revela um luto metafórico e religioso, existe uma tônica sobre despertar o mar no público, sobre não trazer para si mesmas as escolhas que as levaram até ali, a narrativa pouco explorada pelas mulheres do cais, aponta um drama da realidade, sendo contado externamente pela presença do Noivo, Sabiá e o Vendedor de pentes. O protagonismo das experiências que legitimam a dialética empírica, literária e histórica nas obras de Nelson Rodrigues, estão nos tensionamentos observados por detalhes que dividem suas obras em momentos de preocupação íntima do autor em dizer do modo que diz, aquilo que melhor lhe cabe.

As experiências pessoais de um autor refletem em sua obra, de modo que as mesmas são capazes de expor fragmentos de suas construções sociais também. A resolução dada, onde as flores são lançadas ao mar, ao público, nos faz questionar que lugar deveríamos ocupar na realidade de uma vida retratada na mentira do teatro. Até que ponto ele é suficiente para dizer sobre o silêncio e a omissão da realidade? É claro que estamos tratando de um mundo construído e imbuído de referências que nem mesmo estas palavras alcançam, mas ainda assim, o que fazer com estas flores?

Afogados na sede dramatúrgica de Nelson em escarafunchar aquilo que há por dentro das construções sociais que se defrontam com a constante queda do humano em sua realidade de decadente miséria e mediocridade, os temas levantados, ressaltados e ou mesmo repaginados pela encenação do espetáculo apontam para a continuidade das diretoras em um olhar estético do luto que busca neste fenômeno social, a abertura de discussões e feridas profundas, que vem consolidando um tempo de reflexão para a cena teatral paraense desde 2019 com a montagem de "A Casa de Bernarda Alba", aquilo que a morte é capaz de revelar a respeito da natureza humana e seu escracho de podridão, escárnio e beleza na dualidade das relações.

Senhora dos Afogados é um reflexo do mar no qual nos encontramos depois de dois anos de reclusão e isolamento social, onde a vida se revelou profunda como o mar. O afogamento, o luto, a perda e a morte pelo patrício, pelo estado, pelo semelhante, pelo deus que deveria estar atento a guerra, esboça uma tentativa de perguntar quem mata e quem recebe estes afogados? Ao mesmo tempo que nos faz questionar a validade de nossas lutas e pautas internas, entre grupos e movimentos, nos levando a matar uma irmã, a afogá-la, o que nos intenta a não permanecer acreditando que nossas inclinações individuais, egoístas e narcísicas podem salvar nossas mãos daquilo que elas estão carregando.

No mais, esta montagem revigora o espírito incontido desta cidade, o contínuo questionar do estado da arte e do lugar que o teatro possui nesta Amazônia paraense, como uma espécie de vislumbre à uma ilha onde só entra quem possui mãos, mãos que reflitam o mar e acariciem palavras não ditas pelo texto. É de suspirar! Colegas, aqui se encerram as palavras deste espectador! Parabéns de um admirador desta belíssima, contextual e instigante montagem de Senhora dos Afogados!

04 de julho de 2022

[1] Ator; Graduado no Curso de Licenciatura em Teatro, UFPA. 

Ficha Técnica:

Elenco:

Jessica Ribeiro

Fabrício Lobo

Sidiane Nunes

Raul Lima

Rubens Leal

Eduardo Domingues

Charles Gonçalves

Carolina Rodrigues

Natan Velozo

William Marignan

Safira Clausberg

Rapha Rodrigues

Wagner Rodrigues

Rosa Rio

Edson Elias

Eliane Gomes

Mailson Siqueira

Bonelly Pignatario

Direção

Karine Jansen e Larissa Latif

Dramaturgismo

Lenon Bendelack e Adriana Pamplona

Adaptação do texto:

Lenon Bendelack

Estagiária da Especialização em Dramaturgia

Adriana Pamplona

Coordenação de Figurino

Grazi Ribeiro

Figurinistas

Dani Abreu

Jaqueline Bonheur

João Victor

Assistentes de figurino

Márcia Gonçalves e Malu Mendonça

Coordenação de Cenografia

Jorge Torres

Criação de Cenografia

Ajota Takashi

Alcinea Martins

Assistência de Cenografia

Ana Paula Mendes

Geovane Brito

Victor Moura

Josi Braga

Roberta Lima

Sonoplastia:

Lenon Bendelack